Inventor dos quadrinhos tem finalmente sua obra traduzida no Brasil
Sabe aquela revistinha de história em quadrinhos que faz a alegria de tanta gente de todas as idades? Também conhecida como gibi, ela surgiu no século XIX e teve como pioneiro o suíço Rodolphe Töpffer, considerado o “pai dos gibis”, que só agora tem suas obras traduzidas para o português e lançadas no Brasil.
Finalmente ao alcance do leitor brasileiro 180 anos depois de seu lançamento original na cidade suíça de Genebra, alguns dos primeiros gibis da história, como “Monsieur Vieux Bois” e “Monsieur Crépin”, são verdadeiras joias arqueológicas para os amantes de histórias em quadrinhos. Com traço, texto e senso de humor peculiares, Töpffer – que também era pedagogo e político – foi um cronista da sociedade suíça em uma época rica e conturbada em toda a Europa.
O lançamento das obras de Töpffer foi possível graças ao esforço do historiador André Caramuru Aubert, que é parente do autor suíço e organizador da série que conta ainda com os gibis “Monsieur Jabot”, “Monsieur Tictrac” e “História de Monsieur Cryptogame”. As traduções foram feitas por Heloisa Jahn e o lançamento é da Editora Sesi-SP.
Em entrevista à swissinfo.ch, André Caramuru Aubert conta mais detalhes sobre a interessante história por trás do lançamento da obra de Töpffer no Brasil.
swissinfo.ch: Como e quando surgiu a ideia de publicar no Brasil a obra de Rodolphe Töpffer?
André Caramuru Aubert: É uma história curiosa, e eu conto um pouco dela no prefácio do primeiro volume da série, Monsieur Jabot. Meu pai, suíço de Genebra, sempre nos trazia presentes quando nos visitava em casa (em geral, livros, para mim e para os netos). Um dia, ele chegou com uma caixa de papelão, dessas de supermercado, com uns volumes dentro, e me disse: “Fique com isso, são livros de um parente nosso, que seu avô me passou, e que têm a ver com a invenção das histórias em quadrinhos. Lá no sítio onde eu moro há muita umidade, é melhor que fiquem aqui com você.” Eu não dei muita importância, mas, de qualquer forma, guardei os volumes na estante com porta de vidro onde deixo meus livros raros.
Alguns anos depois, com meu pai já falecido, eu vi uma matéria de jornal que citava Töpffer, “o inventor dos quadrinhos”, e reproduzia um de seus desenhos. Imediatamente relacionei aquilo com os livros que estavam comigo, fui até a estante e confirmei que os volumes que estavam lá eram daquele autor, e todos eles primeiras edições. Segui pesquisando e acabei descobrindo que Töpffer era, de fato, meu tio-tetravô…
Imediatamente senti que não podia guardar aquele tesouro só para mim e minha família, que aquilo precisava ser compartilhado. Falei com uma jornalista de O Estado de S. Paulo, a Maria Fernanda Rodrigues, ela escreveu uma bela matéria e, logo em seguida, a editora do Sesi-SP (Serviço Social da Indústria, S~qao Paulo) me procurou, manifestando interesse em publicar, de maneira fac-similar, a obra. E daí em diante foi muito trabalho, mas um trabalho muito prazeroso!
swissinfo.ch: Por que Töpffer é considerado o “pai dos gibis” e qual a importância de preservar e valorizar sua obra quase dois séculos depois de publicadas inicialmente?
Ele é considerado o “pai” porque, de fato, é. Como em todas as grandes invenções, ninguém age sozinho, há sempre uma história e uma rede de pessoas que fizeram com que aquilo se tornasse possível. Gutenberg, por exemplo, baseou-se em muitas invenções anteriores, algumas antiquíssimas, chinesas, para “inventar” a impressão com tipos móveis. As caravelas portuguesas, com suas velas redondas e latinas, que permitiram contornar a África e atravessar Atlântico, não foram simplesmente criadas em Sagres por um punhado de malucos criativos, elas deveram muito às tecnologias náuticas de outros povos, especialmente os árabes.
Assim, no limite, pode-se dizer que os hieróglifos egípcios são os precursores dos quadrinhos, assim como há antepassados japoneses, chineses e assim por diante. Mas a verdade é que a linguagem que costumamos chamar de “HQs”, ou gibis, que pode ser definida como a integração completa entre imagem e texto, em algo que antecipa os storyboards do cinema, foi criada por um cidadão suíço chamado Rodolphe Töpffer. Que, aliás, sempre teve plena consciência disso.
swissinfo.ch: Tanto em Monsieur Vieux Bois quanto em Monsieur Crépin, as histórias giram em torno dos conflitos de relação entre marido e mulher. Este é um traço comum em toda a obra de Töpffer? Como as histórias de Töpffer ajudam a descrever a sociedade suíça do século XIX?
Por um lado, sim, mas ele foi muito mais longe. O Töpffer dos quadrinhos era um piadista, tanto quanto permitia o ambiente calvinista da muito conservadora Genebra da primeira metade do século XIX. Ele faz piadas com a política, o cientificismo, a busca pela nascente do Nilo, o arrivismo social, os militares, a polícia, a pedagogia, a Igreja (católica, claro, pois com as protestantes ele não se atreveu a mexer).
Töpffer nos mostra, com um humor ácido e agudo, não apenas a sociedade suíça, mas a europeia como um todo, naqueles anos em que Napoleão Bonaparte acabara de ser derrotado, e ainda não se sabia se haveria uma restauração do Antigo Regime, ou se um novo arranjo acabaria por ser (como foi) atingido. A própria Genebra, conquistada pelos franceses, recobrara havia pouco sua independência e só aderiu à Confederação Helvética uns poucos anos antes da publicação de Jabot.
swissinfo.ch: É possível avaliar como está sendo a recepção do público brasileiro ao lançamento da coleção com as obras de Töpffer?
Todos os feedbacks que chegam até mim têm sido muito positivos. Me parece que as pessoas estão gostando bastante. Muita gente fica surpresa com a história, tanto com a história de Töpffer propriamente dita, como com a história pessoal, de como as primeiras edições, guardadas pela minha família, chegaram até mim. Para completar, as edições estão muito bonitas, muito caprichadas, o que naturalmente ajuda bastante. E eu fiquei muito feliz em ter proporcionado o conhecimento desta obra ao público brasileiro.
swissinfo.ch: Devido às diferenças na linguagem utilizada na época do lançamento dos gibis de Töpffer, houve um esforço especial de tradução para o português? Qual a importância do trabalho da tradutora Heloisa Jahn para o lançamento da coleção do autor suíço?
A Heloisa tem feito um trabalho maravilhoso, sensacional, e em cada obra nós discutimos bastante, pois sou eu quem faz a revisão das traduções. A tendência dela é manter-se mais fiel ao estilo original, e eu às vezes tento puxar um pouco mais para a fala de hoje em dia, para que o leitor jovem não estranhe muito. É um processo muito rico, muito divertido. E, no vai e vem de nosso debate, acho que o resultado acaba por ficar bem equilibrado, bem legal.
swissinfo.ch: Além de desenhista, escritor e pedagogo, Töpffer também teve atuação na vida política suíça. Como isso se deu e qual a influência dessa militância em sua obra?
Como todo grande artista, Töpffer foi uma figura complexa, múltipla e, até mesmo, contraditória. A Genebra da primeira metade do século XIX era um ambiente muito conservador, ainda marcado por um fortíssimo calvinismo. Devemos nos lembrar que, apenas algumas décadas antes, Jean Jacques Rousseau – incidentalmente, de família católica – passou por maus bocados por ali… Töpffer era calvinista, politicamente conservador, mas era também muito inteligente, arguto, até mesmo ácido.
De modo que, eu penso, sim, é possível dizer que o ambiente político genebrino acabou por limitar um pouco o alcance das críticas que, por intermédio dos quadrinhos, ele fazia. Mas, por outro lado, também é possível dizer que ele criticou, em tom de piada, muito mais do que teria sido prudente para alguém na posição dele fazer. E, eu acredito, se ele foi tão longe nas “piadas”, foi porque, desde o começo, ele recebeu o aval de Goethe, a maior unanimidade na cultura europeia naqueles anos. Foi o “imprimatur” de Goethe que deu a Töpffer a confiança para seguir em frente.
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