Os quadrinhos entram na terceira idade

No início da indústria, quadrinhos eram coisa de criança. Mais tarde, na década de 1960, os 'comix' chegam à adolescência, anárquicos e transgressivos como os jovens adultos daquela época, acabando por conquistar o público adulto nas décadas de 1970 e 1980. Guardião da maior coleção de quadrinhos da Suíça - e a segunda maior da Europa -, Cuno Affolter também está todo grisalho: “A história em quadrinhos é agora uma mídia antiga”, diz ele à swissinfo.ch, durante uma visita à Bibliothèque Municipale de Lausanne, onde discutimos o passado, presente e futuro dos quadrinhos.
Esta semana, Lucerna recebe o 27º festival Fumetto, atraindo milhares de entusiastas, artistas e especialistas de quadrinhos de toda a Suíça e além, inclusive quatro autores brasileiros. O festival encerra no domingo, mas não muito longe dali, em Lausanne, Cuno Affolter abre seu tesouro em um depósito subterrâneo da biblioteca da cidade.
Somos confrontados com pilhas de quadrinhos em várias línguas e de todas as idades: números raros da Zap Comix, revista underground do final dos anos 60, encontram-se em perfeitas condições ao lado das primeiras edições de Tintin, com representações escandalosamente racistas de africanos; originais dos primeiros quadrinhos americanos nos jornais do início do século passado, além de uma versão pirata do herói belga, “Tintin in Suisse”, publicado na Holanda nos anos 80, repleto de cenas de sexo e drogas envolvendo um Capitão Haddock gay, uma ninfomaníaca Bianca Castafiore e um Tintin muito junky.

Ao lado de algumas edições de Mickey Mouse, publicadas em Zurique em 1936, encontra-se uma pasta com desenhos infantis do personagem da Disney, que parecem um pouco fora de lugar, exceto pelo fato de que a criança era H. R. Giger, o excêntrico artista suíço que ganhou um Oscar, e notoriedade global, pelos cenários e monstros do filme “Alien – o Oitavo passageiro”. “Provavelmente ‘Alien’ nunca teria existido se não fosse pelo Mickey Mouse”, diz Affolter.
Qualquer entusiasta de quadrinhos poderia facilmente passar semanas sem fim degustando as raridades e coleções espalhadas pelo bunker de Affolter e em outro grande arquivo no prédio anexo, onde os volumes se encontram provisoriamente armazenados, esperando por uma nova biblioteca, atualmente em construção, que abrigará todo o tesouro em melhores e mais visíveis condições.
Invenção suíça
O gibi foi inventado na Suíça – mais precisamente no final da década de 1820 em Genebra, pelo pedagogo e político Rodolphe Töpffer. Suas “histórias ilustradas” satíricas destinavam-se, inicialmente, a simplesmente entreter seus amigos, J.W. Goethe entre eles. O poeta alemão estimulou Töpffer a publicar suas ‘brincadeiras’ – e quem poderia imaginar que os quadrinhos foram apadrinhados do próprio Goethe em pessoa? O padrinho, porém, morreu antes de ver uma dessas obras publicadas.
Töpffer chegou a elaborar alguns princípios teóricos para as histórias ilustradas, baseadas no efeito de misturar texto e ilustração: “as imagens, sem o texto, teriam apenas um significado obscuro; o texto, sem as ilustrações, não significaria nada ”.
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Cuno Affolter
O formato logo se tornou bastante popular, especialmente na Alemanha, onde uma próspera indústria editorial de “histórias ilustradas” logo se expandiu para os EUA. “O gibi moderno começou nos Estados Unidos, naqueles jornais de boulevard publicados pelas empresas de Hearst e Pulitzer. Foi a primeira vez que milhões de pessoas liam a mesma história todos os dias, por todo o país, e depois jogavam o jornal fora, e no dia seguinte vinha outra história, ou a continuação do dia anterior, e assim por diante ”, diz Affolter. “Esses primeiros quadrinhos eram um produto simples de consumo, enquanto o que Töpffer fazia era mais sofisticado, livros ‘de verdade.”
A história dos quadrinhos, ou ‘comix’, no entanto, é um pouco mais complexa. “É como com a fotografia – podemos achar que nós (os suíços) a inventamos, mas também sabemos que, ao mesmo tempo, ela estava sendo desenvolvida em outros lugares, como o Japão, então é muito difícil dizer que foi tal pessoa que teve a grande ideia em uma determinada data”, diz Affolter.
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Ponto de inflexão
Com mais de 40 anos dedicados a essa mídia, Affolter vê o desenvolvimento dos quadrinhos em uma perspectiva mais ampla.
“No começo, na virada do século passado, os quadrinhos eram feitos para os proletários. E eles também eram bem anarquistas. Os editores queriam vender jornais para pessoas que não tinham o hábito de ler. Os quadrinhos modernos, como temos hoje, começaram na década de 1960, quando eles se tornam adultos.”
É certo que, na era do rádio dos anos 1920 e 30, já havia histórias direcionadas a jovens adultos, como Dick Tracy. Essa mídia popular usou a linguagem visual como a televisão faria mais tarde, onde cada história termina com um gancho, para continuar no dia seguinte. Essa importância dos quadrinhos, lembra Affolter, costuma ser deixada de lado, mas esse formato acabou se tornando uma mídia familiar que estabeleceu os fundamentos não apenas para os quadrinhos modernos, mas também para os meios de comunicação de massa desenvolverem narrativas com controle sobre o público”.
Duas culturas
Os quadrinhos na Suíça já eram muito populares na década de 1930, graças ao Globi, personagem inventado como peça de marketing para a loja de departamento Globus, que ainda hoje é um sucesso entre as crianças. Mas quando se trata do segmento adulto, as diferenças entre as partes francesa e alemã da Suíça vêm à tona.
“A Romandie (Suíça francófona) sempre foi influenciada pelo estilo francês e os quadrinhos franceses ainda são o maior mercado da Europa, um dos mais importantes do mundo, ao lado da América e do Japão”, diz Cuno.
Mas hoje virou tudo uma grande indústria, e eminentemente internacional. De acordo com Cuno, os quadrinhos suíços nunca existiram como tal, exceto por um breve momento. “Nos anos 70, quando Derib, Cosey e Ceppi começaram, eles de alguma forma conseguiram definir um estilo suíço, diferente do parisiense, no sentido em que esses artistas foram dos primeiros a fazer histórias pessoais, sobre como eles foram como hippies para a Índia, por exemplo. Mas isso durou pouco tempo porque, em primeiro lugar, na Suíça os quadrinhos realmente não existiam [como mercado]”.
Cuno vê, no entanto, uma cena interessante acontecendo em Genebra. Muitos jovens estão publicando suas coisas independentemente, fazendo fanzines, e até mesmo a Escola de Artes de Genebra acaba de iniciar um curso especificamente para quadrinhos.
A Escola de Zurique
No lado alemão, contudo, a história é completamente diferente. Historicamente, os suíço-alemães foram, até a primeira metade do século passado, muito influenciados pelos quadrinhos da vizinha Alemanha. Os alemães tinham uma produção de quadrinhos bastante significativa, mas que desapareceu com a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto os franceses continuaram a publicar seus quadrinhos durante a ocupação nazista, e após a guerra ainda havia uma indústria de pé, os alemães do pós-guerra tinham problemas mais urgentes para resolver. Mas quando voltaram a aparecer, os quadrinhos alemães vieram com toda força, conta Cuno, observando que essa nova geração começou a desenhar sem referências anteriores e sem grandes mestres. E essa liberdade foi muito bem vinda.

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A arte de Anna Sommer
Este mesmo contexto “órfão” deu um novo impulso à cena de Zurique que floresceu no final dos anos 70 e 80. Os “Zürchers” fizeram a sua arte e não tiveram medo de grandes nomes e escolas. Cuno lembra que, na França, isso era impensável, pois o peso dos velhos mestres era muito forte. “Ninguém poderia desenhar quadrinhos sem conhecer ou se relacionar com Hergé, por exemplo. ”
A cena de quadrinhos suíça costumava ser muito empolgante em Zurique, em parte por causa de revistas como Strapazin (que ainda é uma referência importante) e os valentes esforços da Edition Moderne, a única editora na Suíça com escala, graças também ao mercado expandido de língua alemã.
Mas Cuno lamenta que “agora todas essas pessoas estão ficando velhas, e embora haja uma nova geração chegando, os quadrinhos feitos em Zurique não são tão interessantes quanto costumavam ser, porque não há muitos jovens tomando a dianteira. “Mas isso é simplesmente um reflexo do mercado. Há coisas chatas demais hoje em dia, o estilo é cada vez mais ‘bacana’, ‘sofisticado’, ‘moderninho’… e chatíssimo”.

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Thomas Ott – Reflexões
“O grande problema”, diz ele sobre o cenário germânico, “é que eles têm um mercado muito pequeno, dificilmente vendem mais de um ou dois mil exemplares”. E esse é um grande problema agora para os quadrinhos em todo lugar: as tiragens estão caindo vertiginosamente.
Autores que costumavam vender 60.000 cópias há alguns anos agora vendem 20, 25.000 cópias. E conviver com esses números não é fácil, diz Cuno. “Cosey me disse que seu último livro vendeu cerca de 25.000, o que não é muito para um autor bem estabelecido. Mais e mais livros estão no mercado, mas não necessariamente mais leitores. ”
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Fumetto International Comics Festival
Essa semana, Lucerna é palco do 27° Fumetto FestivalLink externo, com lançamentos de livros, estandes de editoras, exposições de artes visuais feitas por quadrinistas, e eventos correlatos. O evento termina no domingo, 22 de abril.

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