Tesouro de guerra
Nas últimas décadas, cineastas suíços, inclusive Godard, abordaram em 20 filmes diferentes ângulos de encrencado conflito palestino-israelense.
Recente retrospectiva em Friburgo revelou que esses filmes continuam de grande atualidade, despertando interesse em outros países.
Os filmes sobre o prolongado conflito palestino-israelense – desencadeado em função da criação de Israel em 1948 – foram projetados no âmbito do Festival Internacional de Filmes de Friburgo, encerrado dia 13 de março.
O Panorama: Palestina/Israel, uma memória suíça, permitiu ilustrar através de documentários, depoimentos e até ficção, múltiplos aspectos do profundo desentendimento entre dois povos.
Essa “memória” foi enriquecida dia 18, com a estréia de um novo filme dentro da mesma temática: L’Accord, de Nicolas Wadimoff, sobre a controvertida “Iniciativa de Genebra”, lançada em outubro de 2003, como nova proposta de solução pacífica da eterna crise médio-oriental.
Segundo Alain Bottarelli, produtor de cinema que coordenou a retrospectiva, vários outros filmes sobre o assunto estão em fase de elaboração, “mostrando a excepcional atenção que um pequeno país como a Suíça – livre de guerras há cerca de 150 anos – dedica à questão palestino-israelense, que ocupa a mídia há mais de meio século”.
Filme cult
Um dos trabalhos mais em destaque da retrospectiva é o filme cult, Biladi, une Révolution, realizado em 1971 por Francis Reusser, militante maoísta na época.
Resulta de pedido feito por movimentos de libertação a Reusser – e também Jean-Luc Godard. Os dois cineastas foram, cada um por seu lado, viver entre os fedayns da Jordânia e filmar nos acampamentos os preparativos da revolução, meses antes do “setembro negro”, quando foram mortos milhares de palestinos.
No início da década de 70 não se falava ainda de palestinos, falava-se de árabes. Aliás, Biladi é considerado uma das primeiras produções cinematográficas, se não for a primeira, sobre um povo sofrido, com imagem muito embaçada, particularmente naquele período da história.
Segundo Francis Reusser, naquela época “palestino era uma palavra desconhecida, obscena, perigosa”.
Naqueles tempos eram, de fato, muito mal vistos porque comandos palestinos explodiam ou seqüestravam aviões, inclusive da neutra Suíça. Neste país havia uma vaga de xenofobia muito forte contra os árabes.
Por ter realizado o filme, Reusser chegou a ser tratado por um prestigioso jornal de Zurique de “terrorista comprado pelo Fatah”.
Hoje Biladi (que significa “meu país”) é tido pelo autor como um “arquivo, parte da história”. Tanto que ele acrescentou um preâmbulo de 3 minutos ao filme para situá-lo no tempo, antes que fosse projetado em Friburgo.
“Eu assumo”
Como tal o filme tem uma função e Francis Reussir diz assumir o que fez. Não parece, porém, excessivamente entusiasmado com seu trabalho.
“Quando vejo hoje os filmes de Dziga Vertov, Eisenstein ou Poudovkine, eles me dizem alguma coisa, conta o cineasta suíço. Menos como veiculo de idéias que como testemunho de uma época, de uma certa maneira de descrever o cinema”.
Ele dá também um exemplo mais forte que, afirma, sempre escandaliza:”Todo o mundo filma o esporte, mas a única pessoa que sabia fazer isso era um cineasta nazista, Leni Riefenstall (Triunfo da vontade). Ela era nazista, mas fez seu trabalho de cineasta”.
“Nós, conclui, tínhamos idéias generosas, fraternais e não tenho certeza de que tenhamos realizado nosso trabalho de cineasta”.
O ensaio de Godard
Jean-Luc Godard só terminará mais tarde seu filme que devia se chamar Jusqu’à la Victoire (até a vitória). Será finalmente chamado Ici et Ailleurs (aqui e alhures) e se limitará a “uma reflexão sobre a violência, a revolução e o papel do cinema e das imagens”, como destaca Bottarelli.
O genial e complicado Godard irá ainda realizar em 2004 Notre Musique (nossa música), um ensaio que entusiasma especialistas mas é menos acessível ao grande público.
Resta que o conjunto da Retrospectiva, com cada filme contribuindo com enfoques diferenciados da problemática oriental acabam dando uma idéia do conjunto. Toma-se consciência de que palestinos e israelenses são gente de carne e osso como todos nós.
Eles lutam pela vida e pela subsistência, têm seus arrebatamentos de generosidade e sentimentos e suas mesquinharias. E nem sempre optam por medidas racionais no combate por um espaço vital ou por uma vida melhor.
Uma colcha de retalhos
Exemplos não faltam. Assim “Douleur et révolte” (dor e revolta), de 2003, é um filme contra a guerra; “Ein Trommler in der Wüste” (um tambor no deserto), de 1992, traça o retrato de um jovem imigrante suíço que vive há 30 anos num kibutz; “Forget Bagdad” (esqueça Bagdá) reflete sobre a identidade judia e árabe no período de um século de cinema.
Há filmes em que o título já diz muito, como este: “Nous sommes des Juifs arabes en Israël” (somos judeus árabes em Israel). Afinal, as vinte películas representam uma colcha de retalhos que dá uma visão matizada do porquê do desentendimento de dois irmãos inimigos que mais cedo ou mais tarde estão condenados a se entenderem.
Dado o valor da Retrospectiva em seu conjunto, Alain Bottarelli que a organizou estima que o programa poderá circular em numerosos países, tendo constatado interesse em Paris, no Egito, Palestina e Israel. Esse “tesouro de guerra” poderia então transformar-se em tesouro de paz.
swissinfo, J.Gabriel Barbosa
– Uma série de filmes suíços de 1970 a 2005 permitem compreender melhor o conflito entre palestinos e israelenses.
– Dois deles foram realizados nos acampamentos da morte, na Jordânia, meses antes do “setembro negro”. E Bilade, une révolution é um filme “cult”.
Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!
Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.