Encontrei-me com o fado em Genebra
Mariana Correia começou a cantar o fado em encontros de amigos, pouco tempo depois da chegada a Genebra, nos anos oitenta, e foi o fado que a casou com o marido, guitarrista.
Mário passou a acompanhá-la em actuações em restaurantes, juntaram-se outros músicos, e o grupo que finalmente formaram, o Fado FatumLink externo Guitarras, tem corrido a Suíça inteira, cativando um vasto leque de fãs que há muito tempo deixou de ser maioritariamente português.
Recentemente, os solistas da Geneva CamerataLink externo propuseram-lhe substituir com os seus instrumentos o tradicional acompanhamento por guitarra clássica e guitarra portuguesa e Mariana Correia aceitou o desafio. O resultado foi uma experiência inédita de fusão musical que arrebatou o público presente, esgotando os dois concertos de 17 de Outubro na Comédie de Genève.
A fadista nascida em Lisboa contou à swissinfo.ch como chegou em 1984 com 20 francos na carteira, como por acaso conheceu o marido que tocava guitarra e como começou a cantar entre amigos até ser descoberta pelo público helvético.
Mariana Correia é hoje uma espécie de embaixadora do fado na Suíça. Trabalha com os Ateliers d’ethnomusicologie de GenebraLink externo e já regista na sua carreira vários espectáculos, entre os quais algumas actuações no quadro da Festa da Música da cidade de Calvino. Em 2005, uma das suas interpretações musicais foi integrada na banda sonora do filme “Trois jeunes femmes” do realizador suíço Richard Dindo.
Descoberta do fado
Teve uma primeira experiência com a Geneva Camerata em 2015, quando foi convidada a participar na Grande Maratona, um projecto multidisciplinar que reuniu artistas do mundo inteiro, oriundos da música clássica, oriental, cubana, irlandesa, jazz, reggae, rap, rock, pop e electro. Satisfeitos com o resultado da Maratona, quiseram organizar outros concertos com a fadista portuguesa. Foi assim que os espectáculos “Fado, meu amor” foram incluídos na programação de 2016.
Patrimônio da UNESCO
O fado foi proclamado Património Cultural Imaterial Link externoda Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) numa declaração aprovada no VI Comité Intergovernamental da organização, em Bali, na Indonésia, a 27 de Novembro de 2011.
As origens e história do fado são o tema de um filme do realizador espanhol Carlos Saura estreado em 2007. “Fados” conta com participações de vários cantores e compositores conceituados, entre os quais Mariza, Camané, Carlos do Carmo e Carminho. O filme recebeu o Prémio Goya para melhor canção original: “Fado da saudade” na interpretação de Carlos do Carmo.
“Tive receio, é preciso grande sensibilidade para mexer no fado sem o adulterar, mas avancei e gostei muito do resultado”, confessa. Apesar de o acompanhamento não ser feito pelos instrumentos tradicionais do fado, os tempos e os temas foram respeitados e a fadista e os solistas entenderam-se sem dificuldade em palco: “Deixei-lhes liberdade para escolherem os temas e surpreenderam-me: interessaram-se por peças tradicionais como o Fado Acácio. Ensaiámos apenas três horas na véspera do ensaio geral e entendemo-nos muito bem em palco.”
Os temas interpretados por Mariana Correia foram intercalados pela orquestra com peças do compositor barroco italiano Domenico Scarlatti e do português Vianna da Motta. Depois deste sucesso, o próximo projecto comum poderá integrar uma guitarra portuguesa: “Quero propor que toque o guitarrista Miguel Amaral, que me acompanha nos espectáculos que fazemos na Suíça”, diz a fadista.
Cantar a saudade
Divorciada e com dois filhos, Mariana viu-se obrigada a confiá-los aos cuidados da irmã, quando deixou Lisboa para procurar trabalho na Suíça. No início, fez o mesmo que muitos outros portugueses soprados pelo mesmo destino: entrava nos estabelecimentos comerciais e perguntava se precisavam de mulher-a-dias, de alguém para passar a ferro, lavar, etc. “As pessoas iam gostando do meu trabalho e recomendavam-me a outras.”
Às dificuldades encontradas em país estrangeiro, somou-se mais um drama familiar: “Quinze dias depois de ter chegado a Genebra, o meu pai faleceu. Fiquei destroçada.” Os amigos que a tinham acolhido viram-na naquele estado e um dia insistiram para que os acompanhasse a uma pizzaria. Ao lado do restaurante havia um bar onde estava um grupo de amigos deles. “Na altura grande parte da emigração aqui eram trabalhadores sazonais, com contratos de nove meses. Havia muito saudosismo”, recorda Mariana. “A certa altura, começaram a cantar. Quando souberam que eu cantava, um deles chamou o primo, que tocava viola. Era o Mário, com quem cinco anos mais tarde vim a casar-me.” Foi naquele bar de Genebra que teve início um percurso comum que os levou aos palcos. Pela mão da paixão pelo fado.
Embaixadora do fado
Durante muito tempo, foi só assim em festas com amigos. Um dia foram convidados para ir a um aniversário numa casa de fados em Paquis, a “Portugália”, onde estava uma parelha de guitarristas. Eram os irmãos Santos. Ficaram muito contentes quando souberam que Mário tocava, porque precisavam de um viola, e começaram a convidar também Mariana, porque não havia muitas vozes para cantar. “Cantei lá durante quatro anos, de 1988 a 1992. Quando deixou de haver ali fado, decidimos, com o Armando Santos e o meu marido, formar um grupo de fado. Com esse grupo corremos a Suíça toda durante 22 anos. Começámos pelas associações portuguesas, mas progressivamente surgiam cada vez mais convites para locais onde a clientela era também suíça. E de cidades fronteiriças da Alemanha e de França.”
No começo não tinham experiência nem domínio técnico, isso “veio com os anos”. Em 1994 gravaram um primeiro CD, “Saudade”, com composições de fado clássico, ao qual se seguiu, em 2004, o CD “Mensagens”. Nunca deixaram os empregos para seguir uma carreira exclusivamente artística, mas foram-se envolvendo progressivamente com a abordagem conceptual do fado do ponto de vista da musicologia.
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“O fado sente-se em tudo aquilo que canto”
A colaboração com os Ateliers de Etnomusicologia de Genebra marcou o início desta nova fase. Os ateliers são parte integrante do panorama musical da Suíça, trabalham na área das danças e músicas do mundo, na área da antropologia da música. Haveria muito mais trabalho a desenvolver neste campo, se não fossem certos constrangimentos: “Convidam-nos para fazer lá ateliers e cursos de fado, mas não temo aqui um músico que toque guitarra portuguesa que pudesse ensinar o instrumento”, explica Mariana. “O viola e o baixo são residentes, mas há cinco anos que vem de Portugal um guitarrista para tocar connosco em cada concerto, porque não temos nenhum cá.”
Sonho realizado
Um dos seus sonhos era organizar um festival de fado e em 2007 foi falar da ideia ao director dos Ateliers, Laurent Aubert. Disse-lhe que gostaria de trazer cá artistas de Portugal, para mostrar às pessoas na Suíça a variedade de talentos do fado, que desejava convidar especialistas que pudessem explicar o fado a este público. Laurent Aubert pediu-lhe que lhe entregasse um projecto. Três ou quatro meses depois telefonou-lhe para lhe dizer que começasse a preparar o festival de fado. “Fundámos uma associação para a divulgação do fado e pedimos uma subvenção ao município de Genebra e outra a Portugal. O festival realizou-se em Maio de 2009. Durante três dias tivemos vários artistas e conferências sobre fado, no antigo teatro Alhambra, sempre com as salas cheias”, recorda Mariana.
No ano anterior, tinham actuado na Festa da Música, em 2015 foram convidados para um espectáculo no Museu Ariana. O trio de guitarristas que habitualmente a acompanha é composto por Samuel Cabral (guitarra portuguesa), Carlos Machado (viola), Mário Correia (viola baixo). Desde há algum tempo, começaram a ser solicitados para apoiar trabalhos de fim de curso sobre fado. “Fornecemos material sobre a técnica e a história do fado”, diz a fadista, entusiasmada.
As origens africanas de Mariana Correia não são por certo alheias a este envolvimento com os Ateliers. Os bisavós maternos nasceram na Guiné: “Ele era branco e ela negra. Foram vendidos para o serviço numa casa senhorial em Cabo Verde, onde nasceram os meus avós maternos, que mais tarde deixaram a Cidade da Praia para ir viver em Lisboa, no bairro da Madragoa. Foi ali que os meus pais se conheceram, num arraial de Santo António.”
Uma aventura que veio dar frutos na Suíça, onde a bisneta de guineenses acabou por descobrir uma vocação que bem poderia ser chamada “embaixada informal do fado”.
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