Tupi or not tupi? Canibais tropicais invadem museu de Berna
Exposição inédita com 130 obras fundamentais procura inserir a produção artística brasileira da primeira metade do século 20 na grande narrativa do ‘modernismo global’.
A participação suíça na grande aventura modernista brasileira se deu primeiramente como guia, e agora como anfitriã. O guia foi o escritor Blaise CendrarsLink externo, que nasceu suíço (em 1887) mas preferiu morrer francês (em 1961), ao convencer um grupo de artistas brasileiros – Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mario de Andrade, entre outros – a conhecer o seu próprio país. Afinal, a visão de mundo dessa pequena clique da elite paulistana da época se restringia, de um lado, às fazendas de café no interior e palacetes na capital, e de outro, a Europa e Paris.
Em 1924, Cendrars os levou não apenas ao Rio de Janeiro, mas às favelas e ao carnaval. Na sequência, se meteram a desbravar o sul de Minas Gerais, onde descobriram o barroco mineiro. Jamais haviam interagido com tanto povo na vida. E a arte brasileira nunca mais foi a mesma.
Um século depois, a Suíça acolhe a maior exposição internacional de modernismo brasileiro desde 1944, quando uma dúzia de artistas doaram suas obras para leilão em Londres em prol do esforço de guerra britânico na II Guerra Mundial.
A exposição “Brasil! Brasil!”Link externo no Centro Paul Klee, em Berna, apresenta até 5 de janeiro 130 obras de uma seleção de 10 artistas fundamentais do movimento e de suas ramificações, incluindo vários nomes fora do óbvio cânone modernista. Em seguida, viaja para a Royal Academy of Arts em Londres (28 de janeiro a 21 de abril de 2025), acrescida de mais 4 obras inéditas que ficaram no país por ocasião do leilão de guerra.
O modernismo é global
“Brasil! Brasil!” assume uma importância muito além do feito, por si só louvável, de reunir obras fundamentais do modernismo brasileiro de coleções públicas e privadas, incluindo quadros fora de circulação há décadas.
Mais de um século depois que as primeiras pedradas modernistas quebraram as vidraças do academicismo moribundo das artes na Europa, o establishment cultural do Ocidente começa a acordar para o fato de que essa corrente dominante das artes e cultura do século 20 não foi um fenômeno restrito à Europa e à América do Norte.
As diversas correntes artísticas e culturais grosso modo embutidas no termo genérico de ‘modernismo brasileiro’ tiveram um impacto muito além do campo estético, reinventando a própria identidade cultural brasileira pós-colonial. Sua influência estendeu-se a praticamente todas as artes e deu régua e compasso para movimentos posteriores, como o da arte e poesia concretas e a Tropicália dos anos 1960/70. As gerações modernistas da primeira metade do século passado ainda são referências inescapáveis para se entender a arte e cultura do Brasil de hoje.
Mas apesar de figurações esporádicas no circuito artístico internacional, o modernismo brasileiro não faz parte do currículo das escolas de arte estrangeiras e tampouco ostenta, com raríssimas exceções (como Tarsila), blue-chips no mercado global de arte. A grande maioria das obras mais famosas e/ou valiosas continua no Brasil – o que, por si, não é uma coisa negativa, mas que limita o acesso da experiência brasileira à narrativa geral do modernismo.
Baú cheio de tesouros
Essa foi, basicamente, a constatação da curadora suíça Fabienne Eggelhöfer ao se deparar com a riqueza do modernismo brasileiro quando montava uma abrangente exposição do artista Paul Klee no Brasil, em 2020. “Eu não tinha ideia do modernismo brasileiro, e fiquei chocada ao saber que o mundo também não tinha. Era como encontrar um tesouro escondido”, disse ela a SWI swissinfo durante a montagem da exposição em Berna.
Após esse choque inicial, Eggelhöfer juntou-se a Roberta Saraiva Coutinho, diretora do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, para organizar uma coletânea de obras que desse um primeiro passo para a redescoberta do modernismo brasileiro fora do país.
A exposição contou com a feliz coincidência da Bienal de Veneza ora em curso ser curada pelo diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp) Adriano Pedrosa – o primeiro latino-americano a assumir o evento – que dedicou parte de sua exposição principal aos modernistas. Mesmo tendo levado várias pérolas do Masp para Veneza, Pedrosa foi generoso em “literalmente tirar vários quadros da parede do Masp para a mostra em Berna e Londres”, disse Roberta Saraiva Coutinho.
Em vista da multiplicidade de obras, artistas e períodos, o grande desafio era como fazer os cortes e escolhas. Para dar conta dessa proposição ambiciosa sem perder de vista as limitações de orçamento e espaço, as curadoras optaram por dividir a mostra em duas partes: uma dedicada ao cânone modernista, ou seja, obras e artistas criticamente reconhecidos como fundamentais do movimento; e uma outra parte fora do cânone, mas que se ligam à onda modernista seja como satélites, influências ou ‘filhotes’.
É essa segunda parte que eleva “Brasil! Brasil!” a uma leitura mais contemporânea, fazendo justiça a artistas que, seja por questões de classe, raciais, ou de pensamento, ficaram de fora até há pouco tempo da narrativa crítica estabelecida no Brasil. É o caso de Flavio de Carvalho, Djanira da Motta e Silva, Rubem Valentim, Alfredo Volpi e Geraldo de Barros.
Além destes, há também a presença invisível de Lina Bo Bardi, a arquiteta italiana que emigrou ao Brasil no fim da Guerra e cuja trajetória é emblemática de como o modernismo foi tropicalizado no Brasil. Ao contrário do que se poderia pensar, Lina não “trouxe” o modernismo para educar os nativos, mas foram a arte e tecnologia de sobrevivência popular que moldaram suas mais profundas concepções do moderno. As curadoras posicionaram as etiquetas de legenda das obras no verso em um discreto aceno a Lina, que estabeleceu esse procedimento na expografia da coleção do Masp.
Ruptura Dupla
Quando se fala hoje em dia em ‘modernismo global’, observa-se que o desenvolvimento do modernismo nos “países periféricos” como Brasil, México ou Índia, operaram um movimento duplo de ruptura. As vanguardas europeias do começo do século 20 – cubismo, fauvismo, expressionismo, surrealismo, entre tantos outros ismos – representaram uma ruptura radical com tudo que se relacionava à produção artística, questionando o próprio conceito de arte, sua função, seu valor, e as ideias de ‘beleza’.
Como pode-se ver em Berna, o início de carreira dos cânones – Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Vicente do Rego Monteiro, assim como Lasar Segall que viveu em Berlim antes de emigrar ao Brasil – foi fortemente influenciada pelos movimentos europeus como expressionismo e futurismo.
Porém, simplesmente replicar as novas tendências europeias não resolvia a questão da dependência cultural do Brasil em relação aos grandes centros. Foi necessária uma segunda ruptura, dessa vez com o próprio modernismo estrangeiro, elaborada de maneira mais articulada nos manifestos de Oswald de Andrade, notadamente o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto da Antropofagia, traduzido para o inglês como Manifesto Canibal. Oswald, em resumo, argumentava que o era preciso devorar e digerir o estrangeiro, absorvendo seus nutrientes e defecando o que não presta.
Porém, essa atitude moderníssima e radical esconde outras problemáticas. Como conclui a pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira em seu ensaio publicado no catálogo da exposição, “o paradoxo modernista, ou seja, a tentativa de ‘descobrir o Brasil’ através de paradigmas europeus, induziu a busca pela ‘Brasilidade’ e pela identidade do ‘povo brasileiro’. No entanto, artistas e escritores recorreram ao ‘primitivismo’, muito popular nos círculos vanguardistas, para afirmar que o original, o primitivo e o ‘nativo’ residem nas populações negras ou indígenas […] e se posicionaram como ‘guias culturais’ para esse ‘povo’”.
Ondas de choque no tempo
Antes que esse caráter leninista do modernistmo (a vanguarda branca do rebanho negro, pardo, indígena) começasse a ser questionado seriamente, a antropofagia foi atualizada e recanibalizada pelos tropicalistas dos anos 1960/70 que se alimentavam de rock’n roll, cantigas populares e música sacra.
Se a música é onde a Tropicália se alçou mais evidente, há de se destacar os trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark nas artes visuais (para citar apenas os mais famosos fora do Brasil) ou o cinema de Rogério Sganzerla e Julio Bressane. E nem começamos a falar da arquitetura e do design, que renderia mais uma dúzia de tomos.
A exposição ora em Berna abre uma fresta inédita para todo um continente a ser (re-)explorado. Oxalá ela possa, assim como Blaise Cendrars há 100 anos, abrir novas portas para a herança do modernismo brasileiro para além de suas fronteiras.
Editado por Alexander Thoele
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