Uma trilogia que explora a complexidade das relações humanas
O novo filme de Ramon Zürcher, "The Sparrow in the Chimney", chega aos cinemas suíços, encerrando sua "trilogia animal", que transforma espaços apertados em tabuleiros de xadrez psicológicos. Zürcher conta à SWI como cria histórias universais a partir de suas peças de câmara.
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Ramon Zürcher é uma espécie rara no cinema suíço. A relação simbiótica com seu irmão gêmeo, Silvan, nas funções de diretor e produtor respectivamente, segue o mesmo padrão de trabalho dos irmãos Joel e Ethan Cohen. Como homem queer, sua fixação pelo olhar feminino se assemelha à do diretor espanhol Pedro Almodóvar. E sua maestria em ambientar histórias em espaços fechados, como um apartamento pequeno ou uma cozinha minúscula, leva os relacionamentos a uma profundidade que lembra Ingmar Bergman.
Essas referências, contudo, servem apenas à crítica, pois Zürcher não precisa e tampouco menciona qualquer uma delas ao falar sobre seus filmes. Durante o Festival de Cinema de Locarno em agosto, onde apresentou “The Sparrow in the Chimney”, único filme suíço na competição principal, Zürcher passava a discreta impressão de ser um garoto do interior da Suíça que foi estudar cinema em Berlim. Ele viveu na capital alemã por 17 anos, onde desenvolveu seu estilo autoral que, como disse à SWI swissinfo.ch, “é muito pessoal, mas não particular”. De volta à Suíça, Zürcher está morando no momento em Bienne.
“The Sparrow in the Chimney” é a terceira parte da trilogia animal dos Irmãos Zürcher – depois de “The Strange Little Cat” (2013) e “The Girl and the Spider” (2021), ambos filmados em Berlim. “The Strange Little Cat” foi o trabalho dos Irmãos de conclusão do curso de cinema – rodado com um orçamento apertado e quase todo ambientado na cozinha estreita de um apartamento pequeno em Berlim. O cenário de “The Girl and the Spider” foi ampliado para dois apartamentos pequenos e, finalmente, “The Sparrow in the Chimney” evoluiu para uma casa grande de campo na Suíça.
Imobilidade em movimento
Embora “The Sparrow in the Chimney” possa ser visto como um filme independente, ele se torna menos estranho, confuso e desconfortável quando visto em relação aos outros filmes da trilogia animal de Zürcher.
“Os três filmes eram um pouco como peças de câmara entre quatro paredes, e nós os víamos como irmãos, brincando com a quietude e o movimento. O primeiro filme estava mais próximo da estática. É como um retrato de uma peça de câmara sem qualquer desenvolvimento. Houve um pouco mais de movimento no segundo filme, principalmente porque a trama é sobre uma garota que se muda para um novo apartamento. E agora o terceiro filme é sobre desenvolvimento e transformação, muito movimento entra no espaço e ele começa a respirar”, contextualiza o diretor.
Nos dois primeiros filmes, a câmera nunca expande o campo de visão, mantendo-se próxima do rosto das personagens. Em “The Sparrow in the Chimney”, os cineastas finalmente se deslocam para o exterior e deixam a paisagem adentrar a narrativa. Mas, ainda assim, a paisagem permanece intimamente ligada ao humor e às características das personagens.
Há sempre muita gente se movimentando, bem como animais domésticos – gatos, cachorros, insetos, pássaros – superlotando o espaço onde as relações entre eles nunca são explícitas, tendo que ser compreendidas ao longo da história.
Os diálogos são curtos, palavras ditas de passagem, e as personagens se movem como peças de xadrez em um tabuleiro psicológico tenso, criando um ambiente de agressão passiva constante, mesmo nas interações mais ternas.
Pessoal, mas não particular
Só podemos nos perguntar se os Irmãos Zürcher estão se vingando de uma educação familiar disfuncional, mas Ramon descarta esse pensamento: “Minha família não teve os mesmos problemas nem passou pelos mesmos eventos que esses do filme”, diz ele. “Mas cada personagem e cada tema são muito pessoais, e todos próximos a mim. E uma personagem tão cruel como Karen [pivô do conflito de todas as tensões familiares em “The Sparrow…”] tem também, em sua essência, uma certa suavidade e simpatia”.
Zürcher desfruta, com essa ambiguidade, do que admira no cinema asiático contemporâneo. “As personagens não são essenciais para uma trama, elas têm sempre uma profundidade mais complexa. Eu não poderia criar uma personagem apenas com uma feição antagônica, como um monstro. Isso não é interessante para mim”, explica.
Curiosamente, o filme recebeu muito mais elogios da crítica de fora do país do que dos críticos suíços, que reagiram com força e negativamente a ele em Locarno. Talvez pelo fato de o longa tocar em questões incômodas, em um país que tem uma atitude muito reativa em relação à psicanálise?
Zürcher diz que nunca pensou muito a respeito, mas que esse pode ser um ponto. “A Suíça se tornou um país rico somente nos últimos 70 anos. Tornou-se um país rico, onde, superficialmente, tudo está resolvido e todo mundo é saudável, mas toda família carrega algum tipo de trauma transgeracional. Essas realidades psicológicas ou internas não podem ser resolvidas em um ou dois dias, é um processo longo”, reflete.
Com poucos problemas econômicos e um ambiente relativamente liberal, a sociedade suíça ainda tem muitos problemas a resolver, diz ele. Como homem queer, por exemplo, Zürcher enfatiza o fato de nunca se sentir totalmente à vontade.
“A homossexualidade é muito mais inserida, normalizada. Berlim, como a maioria das grandes cidades, é rotulada como muito aberta, mas sempre há um pouco de desconfiança. Os ataques não acontecem abertamente, mas através de microagressões. É como se fôssemos atingidos por uma agulha em vez de uma faca. Acho que a maioria das pessoas com uma biografia queer tem uma camada extra na pele para protegê-las contra as agulhas”, descreve.
Matriarcado patriarcal
O olhar queer de Zürcher torna-se mais explícito em suas personagens femininas. Em seus filmes, os homens são, na melhor das hipóteses, apêndices na constelação familiar ou, na pior, incômodos estúpidos. As mulheres, por outro lado, são retratadas como fortes, um papel correspondente ao do patriarca da família.
O cineasta concorda: “Quando se tem uma família patriarcal, o conflito é bem conhecido, mas, quando é uma mulher que comanda, o conflito é mais complexo, porque a mãe não tem essa imagem de antagonista. Quando as coisas que associamos à mãe – amor, carinho, nutrição etc – se tornam tirânicas, isso pode se tornar ainda mais cruel do que com o pai ‘típico’”, analisa.
Essa contradição parece brincar com a fixação de Zürcher pelo olhar feminino. “Agora que as mulheres estão mais empoderadas, podemos até pensar que está havendo uma transformação. Mas, na verdade, não há transformação, apenas uma mudança de gênero, enquanto as relações de poder internas continuam as mesmas”, aponta.
Esse é um campo minado no qual Zürcher se sente à vontade. “Sempre penso na perspectiva feminina, sempre me identifico com as mulheres”, diz ele. “Quando comecei a ver filmes, ficava sempre interessado em mulheres como Isabelle Hupert ou Isabelle Adjani, aquelas mulheres lindas e abissais. Eu estava sempre sentindo, pensando e vivendo os desejos das personagens femininas. Quando começo a escrever um roteiro, é sempre a partir de uma perspectiva feminina”, relata.
Para o diretor, o olhar feminino é uma porta de entrada para as questões familiares, pois o relacionamento mais básico é criado através do corte do cordão umbilical, “mas sempre haverá um cordão, um cordão invisível”.
Esse é provavelmente o ponto, no qual os filmes dos Irmãos Zürcher atingem um tom mais universal. Nunca foi sua intenção, diz Ramon, definir seus trabalhos como filmes que partem de uma perspectiva local – e é por isso que eles optaram, mesmo quando filmaram “The Sparrow in the Chimney” na Suíça, por usar o alemão ensinado nas escolas e não o dialeto suíço-alemão, falado em casa.
“Acho que o ‘Hochdeutsch’ (alto alemão) faz parte da identidade suíça. Como lemos e escrevemos nessa língua e a usamos na escola, ela soa neutra – é uma língua com a qual você pode construir um filme, porque tem algo universal”, completa.
Nós somos os animais
Alinhavar os três filmes juntos como uma “trilogia animal”, quando as histórias mergulham no que Zürcher chama de “zoológico humano psicológico”, é mais do que uma ironia sutil. Mas a piada é intencional. Zürcher diz que odeia títulos óbvios, como “The Mother” ou “The Transformation”, que revelam a história em poucas palavras.
Ele diz que transpor o foco do centro da trama ou da história para algo concreto em suas margens é uma forma de ampliar o espaço, não só fisicamente, mas também de significado e interpretação. “Afinal de contas, tudo é fauna”, diz ele, ‘e ’trilogia animal’ significa que o foco está nos seres humanos, que são animais cercados por outros animais”, explica.
Como um garoto do interior, pode-se pensar que sua relação com os animais é de longa data, já que ele viveu provavelmente muito próximo a eles. “Ah, não, nunca”, diz rindo. “Tínhamos várias alergias na família, então nunca tivemos gatos ou cachorros. Só havia as vacas dos vizinhos por perto”, conta o diretor.
Edição: Virginie Mangin/ds
Adaptação: Soraia Vilela
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