Filme sobre Zoológico de Zurique mostra nuances da vida animal por trás das jaulas
Um documentário de três horas filmado dentro de um dos principais zoológicos do mundo nos convida a refletir sobre nossa relação com os animais e com as instituições. Romuald Karmakar, o diretor, conta o que o levou a focar suas lentes nos animais enjaulados depois de anos filmando festas de techno.
Longe dos protestos políticos caóticos e do burburinho do tapete vermelho do Festival Internacional de Cinema de Berlim, ocorria nos bastidores outro tipo de estreia especial, embora mais discreta. As 600 poltronas do opulento Delphi Film Palast, um importante cinema de arte reconstruído em 1949 durante o renascimento da cidade no pós-guerra, lotaram rapidamente para a estreia, em fevereiro.
Nenhuma estrela apareceu na exibição ou no próprio filme, mas a atmosfera na sala sugeria uma grande expectativa coletiva. The Invisible Zoo (O zoológico invisível), de Romuald Karmakar, um retrato do zoológico de Zurique com três horas de duração e quase sem palavras, seria exibido pela primeira vez.
“Desde o início do projeto, sabíamos o que queríamos: quatro temporadas de filmagem, sem comentários, sem música extra, sem entrevistas sentadas”, disse Karmakar depois da exibição.
Conhecido nas décadas de 1990 e 2000 como um dos cineastas alemães mais destemidos e politicamente controversos, Karmakar passou grande parte das últimas duas décadas registrando a cena de música eletrônica na Alemanha, em filmes como 196 BPM (2003) ou If I Think of Germany at Night (2017). Antes disso, o diretor passou por uma diversidade de temas, abordando em seus filmes desde histórias de mercenários dos Bálcãs, assassinos de crianças em série ou brigas de galo, até os discursos de Heinrich Himmler ou a liderança religiosa reverenciada pelos responsáveis pelo ataque do 11 de setembro.
Agora, com The Invisible Zoo, testa os limites de qualquer público. O estilo de Karmakar é duro como osso, sem floreios retóricos, e em grande parte depende de um olhar equilibrado e duradouro para causar seu efeito nos espectadores.
O novo filme mostra o funcionamento de um zoológico através de alguns detalhes: reuniões de gerenciamento, discussões entre funcionários e coquetéis oferecidos para doadores. Mas o grosso do material registra o cotidiano dos trabalhos práticos necessários para manter um lugar tão grande, complexo e mundialmente famoso.
Por que o zoológico de Zurique?
Minha primeira pergunta para o diretor depois da estreia foi “Por que Zurique?”, já que a maioria dos filmes de Karmakar se passa em Berlim e todos têm como ponto de partida algum aspecto problemático da história ou da cultura alemã. Esse padrão inclui até mesmo o Manila (2000), obra filmada nas Filipinas e que rendeu ao cineasta o Leopardo de Prata no Festival de Locarno.
“Sinceramente, o filme foi planejado e financiado para ser filmado no zoológico de Berlim Ocidental, mas depois de dez dias de filmagem lá, paramos por causa da obstrução contínua e repetida da administração do zoológico”, respondeu Karmakar em tom pragmático.
“As filmagens não funcionaram no verão de 2018, então, com as pressões econômicas que pesam sobre uma pequena produção em nossos ombros, fomos consultar o ranking Sheridan [uma classificação global compilada pelo especialista britânico Anthony Sheridan] para zoológicos na Europa. Os cinco melhores estavam todos em países de língua alemã. Viena, o número um, seguido por Leipzig e pelo zoológico da Basileia. Logo após vinha o de Zurique. Eu conhecia uma pessoa que tinha uma conexão lá e consegui a permissão com relativa rapidez. Então fomos para Zurique!”
“A única restrição que enfrentamos foi não podermos filmar os bastidores dos primatas e dos elefantes”, ele ri. “Só ontem fiquei sabendo que era por motivos de segurança, pois nunca perguntei. Mas quando estávamos em Zurique, eu estava feliz por poder filmar lá.”
Quando questionado se existe algum truque para filmar animais, Karmakar disse: “Em um filme sobre o zoológico de Zurique, você precisa buscar a essência de qualquer animal que esteja filmando. O que ele está vendo? O que ele está ouvindo? Os filmes sobre a vida selvagem raramente usam som original. Tomemos o Planeta Terra como exemplo: o urso polar que você está vendo não é acompanhado pelo som original de sua vida, seus rosnados, seus passos ou o ar. Se a captação de som fosse direta você escutaria o som do helicóptero da produção rugindo sobre o urso. Nós trabalhamos para fazer o oposto”.
Enquanto falava, Karmakar ria muito, como se estivesse descobrindo como o filme que fez, em toda a sua complexidade, pode ser interpretado em tempo real. “Quando meu editor ouviu o filme pela primeira vez com som sincronizado, seu comentário foi: ‘É incrivelmente alto'”, lembrou. “E, no caso do zoológico de Zurique, que fica perto do aeroporto, temos ruídos constantes de aviões sobrevoando o local.”
A morte de uma zebra
Ao longo de The Invisible Zoo, vemos os animais em seus vários habitats artificiais. Assistimos sua comida sendo preparada, dividida industrialmente e servida em tubos e cones. Vemos os rostos impassíveis dos animais. Encaramos suas rotinas e, em um caso marcante, assistimos uma morte.
Uma cena longa e angustiante mostra os tiros, a decapitação e o carneamento de uma zebra Chapman que depois é servida aos leões. A zebra sacrificada estava saudável mas não poderia viver sem um companheiro O filme mostra que o zoológico teria feito de tudo para transferir a zebra solitária após a morte de seu parceiro. Depois de uma busca infrutífera por outra instituição que a aceitasse, o zoológico tomou a decisão de matar o animal. Nessa longa sequência, Karmakar retrata a violência necessária para manter um lugar calmo e tranquilo.
“Você tem a beleza e a iconografia dos animais muito presentes em nossa sociedade – pijamas infantis, animais no cinema, o que for”, diz ele. “Mas essa face “pública”, essa representação, é resultado de decisões. E mostrar ambas faces da vida animal é uma parte essencial do trabalho do cineasta. As zebras também são codificadas – por meio dos filmes Madagascar [uma série de animação infantil produzida pela Dreamworks], entre outros – como animais adorados. E essa zebra que é morta estava saudável, o que a torna sua morte ainda mais bizarra. Essa cena levanta, portanto, questões cruciais sobre as relações entre humanos e animais e a maneira como elas funcionam institucionalmente”.
E Karmakar continua, como se estivesse se agarrando à tensão irresolúvel do mistério do projeto: “A pessoa que filmou a zebra não queria ser filmada, mas também não queria que eu filmasse a zebra caindo, em seu momento de morte. Posso aceitar e entender o primeiro pedido, mas tive muita dificuldade em entender por que ele não queria que eu filmasse a zebra morrendo”.
Ecos da Covid
“Quando se filma em um zoológico como o de Zurique, sempre se gera uma intervenção na rotina diária das pessoas que trabalham lá, especialmente os tratadores”, diz Karmakar. “Isso é difícil porque você precisa encontrar uma maneira [de trabalhar] com essas pessoas. Você encontra os personagens dez minutos antes do início das filmagens e precisa estabelecer ali uma relação”.
Parte do efeito poderoso de seu estilo simples e deliberado chega no último ato do filme, quando a Covid-19 intervém do nada. Durante os 140 minutos anteriores, não havia sinais visíveis do período em que o filme foi filmado, nenhuma antecipação de uma pandemia iminente que interviria dramaticamente na vida das pessoas em tela.
Karmakar nos mostra o espetáculo desses animais organizados em elaboradas exibições artificiais para zero espectadores; apenas corredores vazios e sem nenhum visitante. De repente, seu projeto hiper-realista parece uma peça de Samuel Beckett – pense em Esperando por GodotLink externo, por exemplo. “Os macacos não sabem por que as pessoas não estão mais vindo”, diz ele. “Ninguém pode lhes dizer. Algo para eles simplesmente não é comum; nem para nós.”
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Do colonial ao natural
Quando foi que o zoológico se tornou invisível para ele? “No século XIX, a maioria dos grandes zoológicos da Europa adotou uma certa arquitetura de pavilhão proveniente da herança colonial. Mas no início do século XX, com o Zoológico de Hamburgo, houve uma mudança de estratégia, o que eu chamo de ‘Tornar um zoológico invisível'”, explica ele.
“Você quer tirar a estrutura dos pavilhões, do templo indiano, do ambiente egípcio. O zoológico de Zurique tem recintos interessantes que não têm construções. Eles são totalmente construídos na paisagem natural. Você não vê nada. Você se confunde, tendo a sensação de que está vendo uma cena de floresta. É de certa forma o zoológico tentando desaparecer como uma instituição. Mas, como sabemos, tudo o que parece simples precisa de muita mão de obra. Pode dar ainda mais trabalho”.
“O que você quer ver quando vai a um zoológico? Isso é importante”, diz ele, antes de citar um poema do filósofo pré-socrático Empédocles, que abre o filme: “‘Você só pode ver o que reconhece‘. Fazemos parte do zoológico invisível, porque decidimos o que queremos ver”.
Edição: Virginie Mangin & Eduardo Simantob/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)
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