EAZ, Baby Volcano, StarrLight: hiphop com sotaque suíço
O hiphop suíço é tão grande, que pela primeira vez em meio século traz a música em dialeto para as paradas alemãs. Ao mesmo tempo, reflete a diversidade linguística do país: ele existe em albanês, italiano, romanche, francês, inglês, espanhol e até mesmo em papiamento (o idioma oficial das Antilhas Holandesas, que consiste num híbrido de holandês, inglês, espanhol, português e línguas africanas)
Muitos alemães mal entendem uma palavra do dialeto suíço e, portanto, não ouvem música em dialeto. Por isso, o apresentador no palco do Spex FestivalLink externo, em Berna, anuncia com euforia o rapper EAZ. Ele conseguiu fazer o que ninguém mais fez em 53 anos: entrar nas paradas de sucesso alemãs com um hit em dialeto.
EAZ: cruzando fronteiras com música em dialeto
Durante uma entrevista nos bastidores do festival, EAZ nos conta que agora é reconhecido quando saiu do carro em um posto de gasolina na Alemanha. Os fãs de música alemã postam vídeos em que fazem rap ao som de “Juicy”. “Eu acho isso ‘único’: viver entre a Alemanha e a Áustria. Nós entendemos todos eles e eles não nos entendem”, diz EAZ.
Sua música “Juicy” já foi ouvida mais de 15 milhões de vezes no Spotify até agora. “Oh meu Deus, ela é suculenta, eu estaria mentindo se dissesse que não preciso dela”, começa o refrão do hino da saudade. A letra é erótica, mas sem postura machista. “Juicy” fala de uma vida cotidiana diferente da classe média de “Grüeziwohl Frau Stirnimaa”, a canção em dialeto de 1969, que também foi um sucesso na Alemanha.
O rap em dialeto se estabeleceu como um gênero nos últimos 30 anos e, com ele, a música dialetal suíça saiu de sua bolinha de neve encantada.
De Sens Unik até hoje
“Quando eu tinha 10 anos e escrevi minha primeira música, ela já estava em dialeto”, conta EAZ. “Por quê? Porque era o idioma que eu dominava. Eu penso em suíço-alemão e vejo o mundo em suíço-alemão.” Naquela época, diz ele, fazia rap com as letras do novaiorquino 50 Cent sem entender uma palavra – e acreditava que era o único rapper suíço.
Ele sorri ao dizer isso. Já em meados da década de 1990, o rap francês do grupo Sens Unik, de Lausanne, comemorava o sucesso, enquanto o rap em dialeto era um fenômeno do submundo. Depois, pelos anos 2000, o rap em dialeto entrou na corrente dominante pela primeira vez com Bligg, Breitbild, Gimma, Brandhärd e Big Zis. Mas aqueles que queriam se tornar estrelas naquela época, como Bligg, disseram adeus ao hiphop e seguiram para a música pop.
Muitos fãs de hiphop consideravam o rap dialetal como folclore suíço, e o público em geral preferia o folclore de verdade. O EAZ também foi alvo de ceticismo. “Você faz um bom rap, mas o suíço-alemão é difícil – eu ouvia isso com frequência”, diz EAZ. “Agora somos a geração que pode abrir todas as portas.” E as coisas estão indo bem, ele acrescenta. “A cena do rap está se aproximando do que sempre quisemos: ser popular.”
Wetzikon: o “Compton da Suíça”
O “rap dialetal” invade as paradas suíças graças aos jovens em clubes, nos bancos das estações de trem e nas áreas de lazer. Muitas vezes este é mesclado com muito patriotismo local, pois é possível saber em cada sílaba se o MC é de Berna, St. Gallen, Chur ou Wetzikon.
Wetzikon é a base de EAZ. O nome EAZ é um código para a pequena cidade próxima a Zurique. Foi lá que Arber Rama, como o rapper na verdade se chama, cresceu. É “a Compton da Suíça”, diz ele. Uma alusão ao subúrbio de Los Angeles que moldou a história do hip-hop em todo o mundo: Wetzikon é mais rude do que a chique Zurique.
EAZ fala como faz seu rap, e como muitos na Suíça falam hoje: um dialeto intercalado com inglês, palavras emprestadas e fragmentos de gírias.
Algumas de suas músicas são em albanês. “Dorë për Dore”, em alemão “Hand in Hand” (em português: de mãos dadas), é tão devocional quanto suas canções em dialeto. As irmãs mais velhas de EAZ nasceram no Kosovo. “Nós, kosovares na Suíça, somos trabalhadores convidados, refugiados e crianças que cresceram aqui. Acho que os suíços e os albaneses agora se harmonizam muito bem. Todos contribuem com algo para a Suíça – eu, por exemplo, com minha música.”
De KT Gorique a Ele A
É claro que o rap em todas as línguas nacionais é relevante na Suíça: no Prêmio de Música Suíça 2023Link externo, a rapper francófona KT Gorique foi premiada como “Best Act Romandie”. Em 2009, Liricas Analas entrou nas paradas de álbuns suíças pela primeira vez com um rap em romanche. Em 2023, a rapper do cantão do Ticino Ele A e seu rap italiano também causaram impacto além das fronteiras do país.
A diversidade linguística vai além das línguas nacionais: a diáspora kosovar na Suíça compreende mais de 200 mil pessoas – portanto, existe também algum rap albanês “Made in Switzerland”. La Nefera, da Basiléia, faz rap em espanhol, assim como Baby Volcano, do Jura.
Baby Volcano: espanhol é como massa de modelar
Baby Volcano, cujo nome verdadeiro é Lorena Stadelmann, faz música experimental, diferente do hip-hop clássico. Ela começou com projetos de dança e performance: o corpo a levou à linguagem – e a linguagem à música.
O rap é importante para ela, diz Baby Volcano, mas ela não se vê como uma rapper. “Adoro o que o rap faz com a linguagem, o ritmo e a atitude.” Ele permite que a linguagem seja descoberta de forma diferente – perto de sua sonoridade, de uma forma primitiva.
Da mesma forma faz a rapper argentina Nathy Peluso. Com ela, você também pode sentir o que o espanhol pode fazer: “Esse idioma é como uma massa de modelar – você pode mudá-lo como quiser.”
Às vezes, a música de Baby Volcano vai do espanhol para o francês em um milésimo de segundo. “Quando mudamos de idioma, quase nos tornamos personalidades diferentes. O espanhol e o francês são minhas línguas nativas, mas o espanhol flui mais. É muito corporal, como o italiano. Isso torna o rap em espanhol mais fácil para mim.”
“Ansiedade suíça” no plexo solar
No palco, ela sente como a linguagem muda a voz e o corpo. O corpóreo também se reflete nas letras de Baby Volcano. Todas as músicas de “Sindrome Pré-menstrual” são atribuídas a partes do corpo: útero, pulmões, pele, coração, garganta – e plexo solar, o entrelaçamento no peito. Essa música é chamada de “Swiss Anxiety”.
Ao vivo, ela parece – também por causa da presença corporal – uma acusação à Suíça. Baby Volcano localiza “Swiss Anxiety” no plexo solar porque ela mesma sente o medo ali. Portanto, ela não se exclui. “Essa imagem na Suíça de que tudo tem que ser perfeito nos deixa ansiosos. As pessoas não percebem que todo dia contém caos.” Isso leva a uma pouca abertura para conversar sobre saúde mental.
A conscientização e o humor são necessários para lidar com isso. “A música é dançante, não transmite ‘Oh Deus, o que vamos fazer agora’, mas sim ‘Ok, isso faz parte de nós como país’.”
Idiomas do país sentem a divisão
Baby Volcano é guatemalteca e suíça. Na casa de seus pais, em um vilarejo no cantão do Jura, falava-se uma mistura de espanhol e francês. Mas o espanhol só se tornou o idioma de sua arte na Argentina, onde ela viveu por quatro anos.
Após seu retorno à Suíça, ela passou a fazer parte da jovem cena musical indie, que descreve como experimental. Mas afirma que o Röstigraben (a divisão, o fosso) é um problema – especialmente para músicas com letras em francês.
“Como minha música é em espanhol, acho que foi até motivo de eu ter sido convidada para a Suíça de língua alemã no passado. Mas talvez isso se deva também às grandes comunidades latinas em toda a Suíça. “Estamos em toda parte”, fala divertidamente.
No verão de 2023, Baby Volcano foi convidada para muitos festivais – na Suíça e internacionalmente. Se as coisas continuarem assim, mais cedo ou mais tarde ela estará em uma encruzilhada: Suíça, França ou o mundo de língua espanhola. “Na Suíça, se você diz que faz música, eles acham que você está desempregado.”
Na França, diz ela, há mais reconhecimento, mais recursos e instituições para crescer como música. O setor musical de língua espanhola, por outro lado, é muito maior do que o de língua francesa.
StarrLight: invasão pacífica de alienígenas
O EAZ fará em breve uma turnê pela Suíça e realizará o último show em sua cidade natal, Wetzikon. Mas, qualquer pessoa que faça rap em inglês com sucesso também quer ir para a “terra-natal do hip hop”, como expressa StarrLight.
StarrLight faz rap em inglês com uma velocidade, entonação e vocabulário tal, que pode ser capaz de competir com os grandes nomes do rap nos EUA.
Se sentindo em casa
A pandemia impediu a turnê já planejada nos EUA, conta StarrLight em Basel. Ela fará uma nova tentativa em outubro. A Basileia é seu lar adotivo.
A holandesa se sentiu inexplicavelmente à vontade na Suíça desde sua primeira visita. “Graças à minha música, tive a oportunidade de conhecer toda a Europa. E sempre havia algo sobre a Suíça: eu me sentia em casa, não importava onde me apresentasse, em Chur, Schaffhausen, Genebra, em todos os lugares.”
Em um determinado momento, ela fez tantos shows no país alpino que as pessoas começaram a perguntar se ela já morava aqui. Então, há dois anos, ela se mudou para a Basiléia.
Rap como terapia
StarrLight nunca quis ser convencional, mas sim transmitir sua própria mensagem – e para essa mensagem, diz ela, a Holanda é pequena demais. “Faço rap como uma alienígena. Me sinto alienada deste mundo, não tenho problemas com as pessoas, mas com a humanidade em si. Sinto-me conectada com a natureza e com poucas pessoas próximas a mim.”
Suas letras geralmente tratam da visão de uma pessoa de fora sobre a humanidade, às vezes no contexto de uma invasão pacífica, às vezes do espaço sideral. “Criei meu próprio mundinho, o planeta Starrazoid, onde todos que quiserem podem entrar e, assim, se tornar fãs da StarrLight, não importa quem sejam ou onde estejam.”
Ouvir que StarrLight consegue expressar o que os fãs sentem – mas não conseguem expressar por eles mesmos – é incrível. “Porque eu mesma comecei a fazer rap para expressar como me sentia. O rap era uma terapia antes de eu perceber que podia fazer isso muito bem.”
Aqueles que também se sentem alienados, se sentem conectados por meio da parte alienígena. Aqueles que se sentem humanos se conectam com seu fluxo e suas letras. “Se você é uma mulher forte, você se conecta com essa parte. Se você é negro, você se conecta a essa parte. Se você está em um relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, você se conecta com isso.” Todos os fãs e ouvintes escolheriam aquilo com o que se sentem conectados.
“O rap em suíço-alemão não tem nada a ver com vacas”
StarrLight tem uma imagem aberta do hiphop. “Acho legal que o hiphop exista e como ele viaja pelo mundo. Gosto do fato de ele ter chegado cedo à Holanda e, portanto, estar aberto para nós. E que ele cruza gêneros – no hiphop não importa quem você é.”
Assim, o rapper Shape, que fala dialeto, também participa de uma música da StarrLight. “O rap em suíço-alemão é legal, não tem nada a ver com vacas. Rappers como Shape personificam o hiphop, não importa o idioma, ele tem que vir de dentro.”
O holandês não é uma opção para Starrlight. No entanto, ela gostaria de misturar mais papiamento em suas músicas em inglês. Papiamento é a língua materna de sua mãe. A língua crioula da ilha caribenha de Curaçao tem menos de 300 mil falantes. “Gosto do fato de o papiamento confundir as pessoas, porque primeiro elas pensam que é espanhol.”
Escolha do idioma
StarrLight descreve a escolha do idioma em que o hip hop é expresso como algo muito pessoal: “Faço rap em inglês porque sempre pensei em inglês. Se você pensa em espanhol, deve fazer rap em espanhol. Você deve escolher o idioma que mais lhe agrada.”
A diversidade multilíngue do hiphop da Suíça provavelmente mostra quantos idiomas as pessoas desse pequeno país têm perto de seus corações, seja como músicas e músicos ou como ouvintes.
Edição: Marc Leutenegger
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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