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“Em um projeto colonial, não há troca”

Plan by Lecorbusier
Le Corbusier: projeto para Argel em 1933. F.L.C. / 2022, ProLitteris, Zurich

O que o chocolate e o arquiteto Le Corbusier têm em comum? Além de seus vínculos com a Suíça, suas histórias estão intrinsecamente ligadas ao colonialismo. Samia Henni, uma historiadora de arquitetura, explica.

Samia Henni é uma cidadã do mundo. Criada na Argélia, ela estudou na Suíça antes de concluir um doutorado lá. O tema de seu doutorado: a forma como o poder colonial francês utilizava a arquitetura para combater a revolução argelina.

Samia Henni
Samia Henni. Samia Henni

Como historiadora, Samia Henni se interessa por testes de bombas atômicas no deserto, bem como por questões de gênero e raça. Mas também por temas ligados a zonas de guerra e deportações.

Professora na Escola de Arquitetura, Arte e Planejamento da Universidade de Cornell (em Ithaca, no estado de Nova York), Sami Henni colabora atualmente com o projeto suíço NEXPO – uma iniciativa das dez maiores cidades do país, que ambicionam montar uma nova forma de exposição nacional.

swissinfo.ch: Por um tempo, a senhora viveu, estudou e trabalhou na Suíça. Com que aspectos do colonialismo se deparou lá no seu dia a dia?

Samia Henni: Com o chocolate (risos). Eu amo o chocolate, realmente. Para a Suíça, trata-se de um bem nacional. É considerado parte da cultura do país, tanto na Suíça como aos olhos dos estrangeiros. Mas se analisarmos a história do comércio e extração do cacau, as ligações com o colonialismo são óbvias. Somente através da importação de grãos de cacau – e de outros ingredientes como o açúcar – das colônias que o cacau se associou à identidade suíça e que a Suíça conseguiu apropriar-se dele.

Quando dei um curso na Escola Politécnica Federal de Zurique (ETH) sobre o tema “Colonialismo e Arquitetura”, testei meus alunos. Mostrei a eles uma vitrine de uma loja na cidade velha de Zurique com o letreiro “Kolonialwaren” (bens coloniais). “Oh, isto é em Paris!”, “Amsterdã!” ou “Londres!”, foi a reação da maioria, apesar da indicação em alemão. Na Suíça, o comércio de bens coloniais não é necessariamente tematizado como um resultado do colonialismo – o exercício de branqueamento foi bem-sucedido.

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Inversão colonial: a Suíça traz cacau para o mundo. Na imagem, um antigo cartaz do fabricante suíço de chocolates Lindt & Sprüngli, 1890. Lindt & Sprüngli

swissinfo.ch: A senhora emprega o conceito de “colonialidade” – o que quer dizer com isso?

S.H.: A colonialidade refere-se a mecanismos complexos de dominação e desapropriação, que incluem ações, hierarquias e processos muito semelhantes aos do colonialismo. A colonialidade sobreviveu ao colonialismo de várias maneiras. Certos padrões de pensamento e ação podem muito bem existir na ausência do colonialismo e das suas consequências.

A colonialidade é uma lógica embutida, construída sobre a legitimação de certas formas de exploração e desapropriação, erroneamente chamada “troca” econômica. Não é uma troca padrão entre partes iguais que garantiria um benefício para todos. Em um projeto colonial, não há troca.

swissinfo.ch: Exemplos?

S.H.: A Monsanto, a empresa agroquímica americana fundada em 1902, vende agora todos os anos novas sementes. Produzem frutos que, geneticamente modificados, não contêm sementes férteis. Desse modo, os agricultores não têm como selecionar suas próprias sementes e devem adquiri-las a cada ano. Dependem, portanto, das grandes empresas globais. Vejo isso como uma relação violenta e colonial em vez de uma troca frutífera.

Como historiadora de arquitetura, onde identifica esses traços invisíveis de colonialidade na paisagem urbana?

S.H.: A arquitetura é assimilada a um arquivo a céu aberto. Os edifícios carregam neles as diferentes camadas da história. A maioria das capitais europeias foi construída devido às condições de exploração que o colonialismo impôs ao mundo. O colonialismo deixa um legado tangível de modernidade, que decorre do mesmo projeto. Le Corbusier, por exemplo, que faz parte do cânone modernista, participou do projeto colonial.

swissinfo.ch: De que maneira?

S.H.: Em 1930, por ocasião dos cem anos de colonização francesa na Argélia, as autoridades coloniais da França organizaram vários eventos com base nas celebrações. Na sequência desses eventos, Le Corbusier foi convidado pela influente Associação de Planejamento Urbano, Les Amis d’Alger (Os Amigos de Argel). Ele deveria apresentar um projeto de modernização de Casbah, o centro histórico secular da capital. Em um grande gesto autoritário, ele exibiu uma megaestrutura que minaria completamente o tecido urbano de Argel e os hábitos sociais e religiosos da época.

swissinfo.ch: Mas que nunca foi construída…

S.H.: Nunca viu a luz do dia, mas seu plano modernista não era de modo algum contrário ao projeto colonial. Além disso, sua visão postulava “uma cidade muçulmana” e “uma cidade europeia”, duas partes claramente dissociadas da mesma cidade. O projeto em sua amplitude visava essencialmente produzir uma transformação abrupta da disposição espacial e garantir “lei e ordem”, como era chamado na época.

swissinfo.ch: Mas esta tentativa de estabelecer uma ordem também não se encontra nas cidades europeias? No século 19, por exemplo, o urbanista Georges-Eugène Haussmann arrasou partes inteiras da cidade de Paris a fim de impor mais ordem…

S.H.: É um exemplo fantástico. Quando o exército deles chegou a Argel em 1830, os franceses assimilaram Casbah a “desordem”. Demoliram uma grande parte desse tecido urbano para impor uma “ordem” bastante rigorosa à cidade. Eles traçaram uma avenida, ruas retas e um grande espaço chamado “La Place d’Armes”. Isso permitiu que os soldados se tornassem mais visíveis e pudessem controlar mais facilmente a população.

Tais práticas de planejamento foram mais tarde transferidas para Paris, e foram particularmente adotadas após a Revolução de 1848. Dentro de uma cidade “ordenada”, é difícil organizar e sustentar uma revolta. Nesse sentido, Argel serviu como laboratório.

A noção de “ordem” que o urbanismo moderno defende deve tudo a uma perspectiva militar totalmente eurocêntrica. As pessoas que viviam em Casbah sabiam como se deslocar e chegar às praças e mercados. O desejo de “ordem” veio do exército colonial francês, que privilegiava a padronização. Ofereceu visibilidade e a possibilidade de as pessoas e o tráfego circularem mais facilmente.

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Publicidade para o zoológico humano em Genebra, 1896. Bibliothèque de Genève

swissinfo.ch: O escritor afro-americano James Baldwin, em um famoso texto sobre Leukerbad, no Cantão Valais, nos anos 50, perguntava-se como é que os habitantes desta pequena comuna suíça vieram a vê-lo como um ser humano desprezível...

S.H.: Os zoológicos humanos criados em Genebra em 1896, em Zurique em 1925 e no zoológico de Basileia em 1926 ilustram como essa percepção dos negros como “perigosos” foi popularizada. Este é um contra-argumento para aqueles que afirmam que a Suíça não participou do projeto colonial. Tais zoológicos humanos transformaram seres humanos – de territórios colonizados na África e na Ásia – em espetáculos para consumo e em atrações lucrativas. Propagaram preconceitos racistas e construções discriminatórias.

swissinfo.ch: Por que é que essas pessoas foram exibidas como parte de uma Exposição nacional suíça?

S.H.: O objetivo das exposições nacionais ou internacionais era impulsionar o comércio, dominar a narrativa sobre o colonialismo europeu e desumanizar os corpos colonizados. Essas exposições também serviram como vitrine para o que esses países podiam acumular, não só em termos de capital econômico, mas também em termos de cultura, bens, objetos, edifícios etc. Um dos objetivos dessas feiras era discriminar os visitantes europeus e as populações colonizadas, que eram consideradas inferiores.

A questão é quem decide o quê e quem é inferior a quem e em que base? Tais avaliações e categorizações são a expressão mais clara da colonialidade que permeia atos e pensamentos humanos – que ainda hoje persistem. Embora muitas instituições trabalhem arduamente para pôr em causa alguns dos sistemas históricos que suscitam e instauram divisões, desigualdades e injustiças, ainda não chegamos lá.

Raça, gênero, classe e orientação sexual – para citar apenas algumas categorias – continuam a desempenhar um papel crucial em nossas vidas cotidianas, tanto sobre o aspecto profissional como pessoal. Influenciam a distribuição de oportunidades e riqueza e reforçam a omnipresença da colonialidade. Dito isto, criticar essa mesma colonialidade permite-nos imaginar, preconizar, implementar e abraçar os vários caminhos da mudança.

Adaptação: Karleno Bocarro

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