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Filme sobre os relojoeiros anarquistas da Suíça leva grande prêmio na Coreia

O diretor Cyril Schäublin em Jeonju
O diretor suíço Cyril Schäublin conversou com a SWI swissinfo.ch enquanto passeava pela margem do rio Jeonjuchun: "Não há atores no filme. Todos eles são meus amigos ou relojoeiros de verdade". Christopher Small

O filme Unrest (agitação, ou desassossego, em inglês), do suíço Cyril Schäublin, colheu essa semana seu segundo prêmio internacional meses antes de seu lançamento nos cinemas, previsto para outubro. Num passeio com o crítico britânico Christopher Small alguns dias antes da premiação, Schäublin divagou sobre cinema e a paisagem de Jeonju. 

Em fevereiro, o cineasta suíço Cyril Schäublin levou para casa o prêmio de melhor direção na seção Encounters do Festival de Berlim por seu filme Unrest, um singular retrato em longa-metragem do florescimento rápido do anarquismo entre os relojoeiros suíços nas colinas de Saint-Imier, cantão do Jura, no século XIX.

Na esteira deste triunfo em Berlim, o filme de Schäublin foi selecionado para a competição internacional do Festival Internacional de Cinema de Jeonju, na Coréia do Sul – sem dúvida o primeiro de muitos outros grandes festivais no horizonte.

Graças ao seu generoso aparato de financiamento e sua ênfase arriscada na experimentação radical, o festival é uma prestigiada incubadora de filmes internacionais independentes. Em pouco tempo Schäublin deixou sua marca em Jeonju: na quarta-feira (4 de maio), o filme levou o prêmio de melhor filme na competição internacional.

Schäublin recebendo seu prêmio na Coreia
Schäublin (ao centro) recebendo o prêmio de melhor filme em Jeonju, aplaudido pelos membros do júri, o curador romeno-canadense Andrei Tănăsescu (à dir.) e a atriz coreana Haseon Park. JEONJU IFF OFFICIAL PHOTO TEAM

Conversa de passeio

Encontrei Schäublin no lobby de nosso hotel durante sua estada na Coreia e partimos para um passeio pelo Jeonjuchun, o rio que atravessa o centro da cidade. No final do dia, a luz que atravessa Jeonjuchun, uma cidade baixa com abundantes fachadas de vidro viradas umas para as outras, é espantosa.

Enquanto caminhávamos e falávamos, Schäublin foi eloqüente ao discutir seu filme, mas distraído, sua atenção atraída por muitas das formas de luz solar pálida que se refratava como grades nas paredes cinzentas ao nosso redor.

O rigoroso, mas be-humorado filme de Schäublin, é tão rico quanto estranho, para emprestar a expressão shakespeareana. A Europa de 1876 era marcada pelo rápido avanço do capitalismo e pelo espectro do comunismo libertário na consciência coletiva. Poucos lugares no continente experimentaram, nesse período, uma democracia radical e uma industrialização tão profunda e abrangente como a Suíça, que aqui é retratada como um lugar de grande convulsão política, mas também prenhe de emoções reprimidas.

A “agitação” do título, no original ‘Unruhe’ (em alemão) ou ‘unrest’, é a mesma palavra usada para um componente indispensável na relojoaria, também conhecido como ‘roda de balanço’.

A protagonista (Clara Gostynski) passa seus dias encaixando com mãos firmes cada novo mecanismo com uma pequena pinça. Sem a agitação, o sistema orquestral de relojoaria nesses relógios deixaria de funcionar; a própria cronometragem perderia seu significado.

As transformações paralelas que moldam o mundo dos relojoeiros são as do tempo padronizado – contra o qual o próprio município resiste, com seus quatro fusos horários – e da anarquia, representada pela chegada do cartógrafo e pensador anarquista Pyotr Kropotkin à região. (O filme se inspira em suas memórias).

A perspectiva anarquista

Sobre Kropotkin, Schäublin fala dele com carinho, mas, sobretudo, como um vetor para outras idéias. Quando você começa a investigar essa história do anarquismo, da relojoaria e da região, “você se depara com ele muito rapidamente”, diz-me ele. 

“Nas memórias de Kropotkin ele fala muito sobre a Suíça, sobre essas oficinas de relojoaria, sobre a quantidade maciça de seu pensamento político e filosófico que ali se desenvolveu”.

No entanto, Kropotkin não é uma figura heróica, mas sim um observador de bom humor, trabalhando pacientemente em seus mapas e interagindo com os habitantes da cidade, inclusive com a polícia local, que freqüentemente e educadamente bloqueiam sua passagem por várias ruas da cidade por razões as mais arcanas.

“Com certeza, a idéia de que deveríamos falar tanto sobre esses anarquistas famosos – Bakunin, Kropotkin, Emma Goldman – é questionável de uma perspectiva anarquista”, diz Schäublin. “Eu sabia que tinha que resistir a esse impulso de centralizar meu filme em torno de figuras específicas em vez de no movimento coletivo, ou nas pessoas simples que tentam trazê-lo à sua realidade”.

Em meio a uma frase, Schäublin avança para tirar outra fotografia, com sua Leica de 35mm, de um retângulo de luz solar empoeirada iluminando o entulho em um terreno baldio entre dois edifícios. Ao voltar, ele pede desculpas e murmura palavras impressionadas sobre um poste de iluminação nas proximidades, antes de voltar à sua linha de raciocínio: “Sim, é o 150º aniversário do nascimento do movimento anarquista em Saint-Imier este ano, que cai exatamente quando nosso filme estará sendo visto pela primeira vez. Uma estranha e feliz coincidência”.

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Quando a Suíça abrigava a revolução

Schäublin pesquisou o assunto intensamente, aproveitando-se do trabalho de seu próprio irmão antropólogo, assim como de várias fontes acadêmicas altamente credenciadas de toda a Suíça.

“Bakunin morreu em Berna. Estudantes russos vinham em hordas a Zurique. A Suíça foi um dos primeiros lugares onde mulheres podiam estudar na universidade, por exemplo. Eles vieram e tiveram acesso à literatura revolucionária dos anos 1870, o que era proibido na maioria dos países europeus, especialmente em monarquias como a Alemanha e a Itália”. Ele se afastou novamente antes de acrescentar: “Na Suíça, os anarquistas imprimiam jornais e os contrabandeavam por toda a Europa. “Até mesmo”, disse ele sorrindo e olhando diretamente para mim, “para a Inglaterra”.

Nossa conversa é fragmentada; as idéias, num contínuo vai-e-vem, se misturam entre as inúmeras distrações do mundo, às quais Schäublin moistra-se sobrenaturalmente sensível. Esse caos delicado parece apropriado para o realizador de um filme sobre como suportar um pouco de caos pode reequilibrar uma vida de trabalho, sobre como caminhos ocultos só se revelam quando de alguma maneira são reencenados.

Além disso, as cenas feitas com diálogos simples têm um caráter inusitado em ‘Unrest’; Schäublin dispensa os cenários típicos, costurando suas imagens para que os intérpretes não apareçam em cena enquanto falam, mas somente depois de terem deixado de falar.

Estamos agora nos aproximando do rio, deixando para trás as ruas frenéticas do centro da cidade, passeando como os dois personagens aristocráticos que discutem seriamente a teoria anarquista na cena de abertura do filme.

Quando observo que nunca vi pessoas falando – resmungando, na verdade – dessa maneira em um filme histórico, ele parece feliz. “Bem, algo que me surpreende na maioria dos filmes históricos é que as pessoas parecem falar de maneira excessivamente empolada – como se cada palavra importasse, e muito. Mas eu apenas tentei imaginar que no século XIX havia tanta casualidade na linguagem como hoje”.

Pyotr Kropotkin
Access Rights From The History Collection / Alamy

Pyotr Alexeyevich Kropotkin (1842-1921), foi um geógrafo, anarquista e príncipe russo. Era descendente do fundador da dinastia Rurik que governou Kievan Rus, mas deixou de usar seu título aos doze anos de idade. Ele entrou para um partido revolucionário nos anos 1870, e foi preso, escapando em 1876. Ele então viveu na Suíça, França e Inglaterra. Seus últimos anos foram passados na União Soviética, após a revolução de fevereiro de 1917.

História como ficção científica

Ele aprendeu algo essencial com o famoso cineasta português Rui Poças: tratar filmes de ficção histórica como se fossem ficção científica. “Ele quis dizer: com a mesma liberdade. Fazer filmes em qualquer dos gêneros é como fazer uma construção completa. Muitos cineastas se sentem naturalmente obrigados, ao realizarem um filme histórico, a fazer justiça a alguma coisa. Mas não, você tem que assumir que se trata de uma experiência livre também”.

Vemos uma garça descer o rio, tomar um breve banho perto da margem, e depois decolar novamente. E o elenco não-profissional, pergunto eu, formado por amigos e verdadeiros relojoeiros do vale?

“Com certeza é intimidante encontrar-se de repente com uma equipa de vinte e cinco pessoas e mais outras cinco vestindo você com trajes de todos os lados, ainda mais quando você nunca esteve diante da câmera. Mas algumas dessas pessoas, mesmo amigos de toda a vida, eu só considero os seus rostos”.

Durante a nossa conversa, Schäublin sempre fala de seus intérpretes desta maneira, com profundo amor e respeito. “Sei o que me toca neles, depois de incontáveis jantares juntos, incontáveis noites partilhadas. Fazer o filme é procurar esses detalhes que vejo em nossa vida de amigos”.

Retrato do crítico Christopher Small
Carlo Pisani

Christopher Small é escritor, curador e cineasta nascido no Reino Unido e que vive em Praga, República Tcheca. Ele dirige a Academia de Críticos do Festival de Cinema de Locarno (Critics Academy).

swissinfo.ch/ets

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