Samba e capoeira numa festa tradicional de mais de 200 anos
Suíça e brasileiro formam um casal de noivos que se apresenta na Fête des Vignerons, em Vevey. Nesta festa secular, que só acontece a cada geração, eles sambam, jogam capoeira e até plantam bananeira, apresentando referências da cultura brasileira num evento tipicamente suíço.
Quando Aline Raboud, de 30 anos, desceu as escadas durante uma das apresentações da “Fête des Vignerons”, uma das mais tradicionais da Suíça, que só acontece a cada geração, uma brasileira que estava na arquibancada falou: “Olha, ela está sambando”. E estava mesmo. E as referências à cultura do Brasil não pararam por aí. Enquanto a suíça sambava, o baiano Sival de Oliveira, de 33 anos, do outro lado da arena, descia as escadas jogando capoeira.
Em todas as apresentações da festa, considerada patrimônio imaterial da UNESCO, Aline faz par com Sival, que é também o seu par da vida real. Quando se encontram no palco principal desse evento de mais de 200 anos, eles dançam em cima da mesa, levando alegria ao público, como diz Aline. Parece até dia de Carnaval no Brasil. Porque tem alegria, mas também há grupos que se apresentam vestidos com as mesmas roupas, como se fizessem parte da mesma ala da escola de samba, usando igual fantasia. Do lado de fora da arena, há muita gente nos bares e restaurantes.
Casados há quase dois anos, Aline e Sival formam um dos tradicionais casais da Fête des Vignerons, que deve atrair cerca de um milhão de pessoas a Vevey até 11 de agosto. Vestidos de noivos – ela com vestido bordado e ele de terno branco, o casal chama atenção por onde passa. Quando circulam do lado de fora da arena, antes das apresentações, Aline e Sival costumam ser parados por quem quer uma conversa ou uma foto.
swissinfo.ch conversou com exclusividade com Aline, que é terapeuta ocupacional e professora de samba, e Sival, professor de capoeira.
swissinfo.ch: O que vocês fazem nas apresentações da Fête de Vignerons?
Aline: Nós temos dois papéis. Quando estamos juntos, representamos um casal. Somos um dos sete casais da Fête des Vignerons, onde sempre acontece uma grande festa de casamento. Cada casal tem os seus convidados. São quatro palcos em cima, com quatro casamentos, e dois embaixo. A gente não tem nenhum convidado e chega depois para bagunçar. Somos os mais agitados. O casal que traz mais alegria, mais festa para o povo. Ele chega de um lado e eu de outro, quando o casamento já está no meio. Ele desce, então, as escadas fazendo capoeira e eu desço, sambando. A gente se encontra no meio do palco principal em cima das mesas para dançar. Eu sambo em cima das mesas para levar alegria ao público. Antes disso, eu me apresento numa turma de 300 meninas, dançando com uma roupa de can can.
Sival: Antes de plantar bananeira, eu faço os movimentos de capoeira entre os músicos. O mais incrível, até onde eu sei, é que nunca teve capoeira nessa festa e eu fui chamado pelo diretor (Daniele Finzi Pasca, também diretor das cerimônias olímpicas de Sochi e Turim), que me falou para jogar capoeira para animar. Depois dessa parte, eu faço o papel do “fogo”. No momento em que está “queimando” a vinha, eu fico junto com outros acrobatas, pulando no meio e fazendo acrobacias, com gente ao redor balançando tecidos. Esse é o meu segundo papel.
swissinfo.ch: Vocês poderiam explicar melhor esses personagens de vocês? Quem é essa noiva e esse noivo? O que – ou quem – eles representam?
Aline: Acho que representa a gente mesmo (risos). Eu me vejo na noiva. Eu sou desse tipo de subir na mesa para dançar.
Sival: Para mim, representa uma surpresa. Eu ia fazer o fogo e depois, o diretor soube que eu era da capoeira e me chamou para ser o noivo e fazer isso. Quando fiz o primeiro ensaio, e tive que plantar bananeira na mesa, eu me dei conta de que estava fazendo um noivo maluco.
swissinfo.ch: Como surgiu a ideia de ter um casal que joga capoeira e samba na festa?
Sival: No início, ela seria dançarina de can can, e eu o fogo…
Aline: Mas depois, pensaram em colocar mais diversidade nos casais e, como sabiam das nossas habilidades – samba e capoeira -, colocaram essas coisas também.
swissinfo.ch: O que representa para vocês sambar e jogar capoeira, que são expressões da cultura brasileira, numa festa na Suíça tão tradicional como essa?
Aline: Eu gosto muito, porque, pra mim, o samba traz alegria para o povo. É uma surpresa também, ninguém espera ver uma noiva sambando. Normalmente, o suíço é mais fechado, mas durante a festa, todo mundo está muito aberto, gritando pra gente. Na rua, como você viu, as pessoas chamam a gente, pedem para tirar fotos. É uma coisa que não acontece em tempo normal. Essa festa é o carnaval da gente. E faz as pessoas estarem mais abertas, mais livres, falando com todo mundo. Parece que a gente está no Rio de Janeiro, no carnaval. É muito emocionante participar de uma coisa assim. São 20, 25 anos, para refazer uma festa tão grande. A arena pode acolher mais pessoas do que a população da cidade durante três semanas. Eu me emociono muito. Mas é ainda mais emocionante poder mostrar minha paixão, que não é daqui, que é brasileira, numa festa que é da minha raiz, do meu sangue. Então, posso colocar o meu país de sangue junto com o meu país de coração. Para mim, é maravilhoso. É a minha raiz junto com a minha paixão.
Sival: É incrível, uma abertura de espírito tanto do povo suíço quanto minha de ir lá, participar, e fazer coisas que, digamos assim, não tem nada a ver com a cultura daqui. É uma abertura de espírito dos dois lados e eu acho que não tem outro caminho para a humanidade. A abertura de espírito é o destino.
Eu estou ao mesmo tempo surpreso e contente de participar de uma festa dessas. É uma socialização intensiva. Para mim, é uma mistura de felicidade, de alegria, com surpresa. Eu estou feliz de estar aqui. Há um público de 20 mil pessoas por dia. É encantador. Isso pode me projetar para outras experiências. Como eu venho de uma cultura que celebra a ancestralidade o tempo todo, para mim, é sempre bom ver em outras culturas festas que têm 200 anos, como essa. Ver as pessoas se preparando para uma festa que acontece a cada 20 anos me faz lembrar certos conceitos festivos da minha cultura ancestral. A capoeira, o candomblé e o próprio samba têm momentos para relembrar um ancestral. Lá na Bahia, todo ano, no mês de setembro, minha família faz um prato que a gente chama de caruru. É uma tradição de 160 anos. Minha avó, que morreu com 100 anos, levou adiante o que tinha aprendido com a mãe dela, que tinha aprendido com a avó. E agora os netos continuam. Esse olhar para o passado, celebrando no presente, é lindo.
swissinfo.ch: Aline, você falou que essa festa se parece com o Carnaval do Brasil. Por que você acha isso?
Aline: Parece nessa questão da correria. Correr para ajustar a fantasia, para ensaiar, não dá tempo de dormir, de comer. Então, me faz me sentir no Rio, porque quando eu estou lá, corremos de um lado pro outro. Parece aquela confusão do Rio. Mas a festa em si é diferente, porque aqui não é um desfile, não tem várias escolas fazendo um show, mas uma estrutura só que, como no Rio, tem regras que devem ser respeitadas.
swissinfo.ch: O que o samba e a capoeira trazem para a festa? Qual a contribuição de cada um?
Aline: Alegria e surpresa. Quando eu desço as escadas, eu estou me divertindo muito. E as pessoas me respondem com muita alegria.
Sival: A presença da capoeira aqui, na minha opinião, pode abrir para outras questões da mistura que já é presente na Suíça. A Fête des Vignerons fala das vinhas, dos vinhos, da cultura daqui, mas a Suíça é um país com uma presença forte de migração. E acho que a presença da capoeira e do samba nessa festa estão abrindo um pouco uma brecha para outras representações culturais.
swissinfo.ch: Como você aprendeu a sambar, Aline?
Aline: Na Suíça, encontrei uma pessoa que dava aula de samba fitness, que foi quando eu comecei a ter o básico do samba. Me formei como professora e, quando comecei a dar aula, sempre procurei mais o samba do que o fitness. Fiz aulas com professores do Rio e fui para lá também. Já estive no Carnatal, no Carnaval da Bahia e desfilei duas vezes como passista no Rio.
swissinfo.ch: Você já morou no Brasil? Como aprendeu a falar português?
Aline: Já morei seis meses no Brasil, em Natal. Eu me apaixonei antes pelo Brasil depois pelo baiano (risos). Conheço o país desde criança, quando eu tinha 5 anos. Tenho uma tia que mora lá, que tem um trabalho social, e três primos da minha idade. Quando eu tinha 18 anos, fui trabalhar nesse projeto, num bairro popular. Eu dava aula de francês e de pintura para crianças e de artes, para idosos. Foi aí que eu aprendi o português. Fui para ensinar o francês e aprendi o português.
swissinfo.ch: Aline é suíça e Sival, brasileiro. Vocês são o exemplo de que Brasil e Suíça podem se entender bem?
Aline: Eu acho que a gente mostra essa mistura do Brasil com a Suíça e também quebra os preconceitos. As pessoas acham que ele, por ser brasileiro, é mais agitado, gosta de fazer festa. Mas ele só quer ficar em casa. E todo mundo acha que eu sou parada, mas não paro nunca (risos).
Sival: Para mim, a vivência com o diferente é tão natural quanto respirar.
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Uma viagem no tempo na Fête des Vignerons
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