Locarno reviveu alegrias inocentes e sangrentas do cinema mexicano
Em sua 76ª edição, o Festival de Cinema de Locarno prestou uma homenagem ao cinema mexicano dos anos 1940, 1950 e 1960.
A cada ano, o Festival de Cinema de Locarno dedicou uma seção de sua programação à redescoberta de filmes do passado, que podem encontrar um lugar importante na preferência do público de hoje.
“Espetáculo cotidiano – as diferentes épocas do cinema popular mexicano”: esse foi o nome da seção “RetrospectivaLink externo” da 76ª edição do Festival de Locarno deste ano, que reuniu 36 filmes de vários diretores atuantes durante a Era de Ouro do cinema mexicano – um período caracterizado pela intensa e diversificada produção cinematográfica, com filmes que se tornaram populares tanto no México quanto no exterior.
Esse período abordado na Retrospectiva foi especialmente interessante por ser o único momento na história do cinema mexicano em que o interesse do público em geral coincidiu com as aspirações artísticas individuais de grandes diretores.
Alguns deles, como Júlio Bracho, Emilio ‘El Indio’ Fernández, Roberto Gavaldón e Alejandro Galindo, “deveriam ser colocados no mesmo nível de diretores como John Ford, Alfred Hitchcock ou Roberto Rossellini”, pois “sua grandeza é igual à deles. Deveríamos celebrá-los e mostrar suas obras em igual medida”, diz Olaf Möller, responsável pela Retrospectiva em Locarno ao lado de Roberto Turigliatto.
Retrospectiva e o cinema mexicano
A Retrospectiva dessa edição do Festival representa, portanto, uma oportunidade especial não apenas para que o público europeu se familiarize com o cinema mexicano, mas também para que os próprios espectadores mexicanos se aproximem das obras desses autores esquecidos.
Nos próximos meses, os filmes selecionados serão também exibidos pela Filmoteca da Universidade Nacional Autônoma do México, uma das várias instituições que colaboraram para que cópias de boa qualidade chegassem às telas de Locarno. “Acho que a Retrospectiva pode ajudar a enfrentar certos preconceitos, visto que, no México, temos a tendência de valorizar o que é nosso somente quando os europeus ou estadunidenses tomam a frente”, comenta Alonso Díaz de la Vega, crítico de cinema mexicano.
‘Rancho grande’
A partir da primeira década do século 20, vários empresários e artistas encontraram no cinematógrafo uma forma de arte capaz de atrair o público mexicano como nenhuma outra. A taxa de analfabetismo no país era alta, de modo que as formas de entretenimento de massa, como o rádio e o cinema, atraíam indistintamente o interesse de pessoas com níveis diferentes de escolaridade.
Durante a II Guerra Mundial, quando o número de filmes estrangeiros que chegavam aos cinemas mexicanos diminuiu consideravelmente, a indústria nacional floresceu como nunca. Grandes estúdios de produção foram abertos para atender às demandas do público, que não tardou em ocupar as salas de cinema para ver filmes mexicanos.
A resposta positiva de público aos primeiros sucessos, como Rancho grande, dirigido por Fernando de Fuentes, incentivou tanto o Estado quanto empresas privadas a investir um alto volume de recursos na indústria cinematográfica. Aproveitou-se bem o talento de atores, diretores, figurinistas e roteiristas, de forma que, em meados da década de 1940, o México já tinha uma das mais importantes indústrias cinematográficas do mundo.
Na década de 1950, a televisão afastou o interesse do público das salas de cinema, o que reduziu consideravelmente a produção cinematográfica nos anos 1960. Pouco tempo depois, nos 1970, já era muito difícil financiar filmes, exceto quando havia apoio direto de fundos estatais.
Nesta década, surgiu uma nova geração de diretores que, inspirados pelas novas ondas que renovaram estilisticamente as cinematografias nacionais, assumiram um projeto decididamente autoral, que em muitos casos os distanciou do grande público. Desde então, passou a haver, no cinema mexicano, uma clara divisão entre o cinema popular de ampla distribuição e o cinema cujo principal desejo é se destacar como obra de arte.
Era de Ouro
O número de filmes produzidos no México durante a Era de Ouro é grande, de forma que uma seleção de 36 títulos implica em deixar necessariamente muitas outras obras de fora. Möller admite que isso significa que a retrospectiva não pode ser considerada uma amostra representativa de tudo o que estava acontecendo no cinema mexicano daquela época.
No entanto, a seleção em si pode ser vista como algo positivo, uma vez que a decisão de incluir alguns filmes e deixar outros de fora significa adotar conscientemente um ponto de vista sobre a história do cinema mexicano. É importante observar que não estão sendo exibidos mais de dois ou três filmes de cada um dos diretores mais famosos e estabelecidos da Era de Ouro.
Além disso, em vários casos, não foram selecionados os filmes mais conhecidos. É o que acontece com Júlio Bracho, por exemplo, cujos “Léva-me em seus braços”, “Rostos esquecidos” e “A corte do faraó” são exibidos, embora nenhum deles seja comumente considerado como um de seus filmes mais representativos.
“Não estamos exibindo apenas as obras-primas mais conhecidas”, destaca Möller. O crítico Díaz de la Vega, que trabalhou junto com o também crítico de cinema Jorge Javier Negrete Camacho na edição da brochura publicada pela Retrospectiva do Festival de Locarno, aponta que a seleção “tenta enaltecer figuras como Tulio Demicheli, Tito Davison, Fernando Méndez, Chano Urueta, René Cardona e Antônio Momplet, que eram bastante populares em sua época, mas que, com o passar dos anos, foram eclipsados por outros diretores mexicanos mais reconhecidos no exterior. Embora haja também algumas figuras canônicas na Retrospectiva, ela enfatiza obras e diretores dos quais normalmente nem mesmo os críticos e historiadores se lembram”.
Entre as qualidades mais marcantes do cinema da Era de Ouro está sua íntima relação com as tradições, os ícones e os símbolos associados à cultura mexicana. Por um lado, concentrar-se nos valores e temas nacionais permitiu que o cinema permanecesse próximo de seu público.
Por outro lado, o nacionalismo também vinculou o cinema da Era de Ouro a preconceitos sobre seu alcance. Considerado local ou representativo de uma cultura e não um conjunto de obras de arte de valor próprio, o cinema mexicano da Era de Ouro foi muitas vezes relegado a segundo plano na história do cinema mundial.
Na contramão dessa tendência, Möller optou por uma seleção que enfatizasse “o lado cosmopolita”, ou seja, a maneira como “o mundo e o México se misturam no cinema”. Sendo assim, Möller tentou superar “o discurso nacionalista”, que atribui ao cinema mexicano um valor exclusivamente local, dando a ele o lugar que ele merece na história do cinema mundial.
‘Pueblerina’
No final da exibição de Pueblerina, um dos filmes mais importantes de Emilio “El Indio” Fernández, o público presente no Gran Rex, a sala de cinema onde a maioria dos filmes da Retrospectiva é exibida em Locarno, recebeu o filme com aplausos entusiasmados.
“Em Locarno, vi um público satisfeito: uma espectadora me falou sobre a emoção que sentiu com Nos tempos de Don Porfirio, de Juan Bustillo Oro, mesmo que a comédia seja transmitida principalmente por meio de diálogos e jogos de palavras difíceis de traduzir”, pontua Díaz de la Vega.
A boa recepção dos filmes da Retrospectiva não se deve somente ao apelo imediato que despertam as tramas melodramáticas, as atuações carismáticas e o senso de humor sempre presente. Christopher Small, editor da revista Outskirts e diretor da Academia de Críticos de Locarno, afirmou ao final da exibição de Pueblerina: “É como assistir a um filme de Pedro Costa”.
Não é difícil entender as razões pelas quais o diretor mexicano pode ser associado ao multipremiado diretor português, que ganhou o Leopardo de Ouro de 2019. O cuidado, a precisão e a complexidade da composição que transbordam de cada tomada de Pueblerina, para contar uma história de amores reconquistados, lutas de orgulho e trabalho agrícola, lembram sem dúvida o trabalho emocionalmente profundo e o enquadramento meticuloso do diretor português.
É um mérito que a Retrospectiva permita ao público descobrir as relações inimagináveis entre um dos cineastas mais ousados do presente e um dos maiores diretores do passado, pois isso indica que a mostra conseguiu resgatar os filmes selecionados de arquivos empoeirados e inseri-los plenamente no presente. Dessa forma, faz-se jus ao cinema como uma arte contemporânea.
Abraham Villa Figueroa (Morelia, México, 1995) estudou Filosofia na Universidade Nacional Autônoma do México. É autor de críticas literárias e de cinema para diversas publicações culturais de seu país. Atualmente, é um dos editores da revista de crítica cinematográfica El Cine Probablemente.
Adaptação: Soraia Vilela
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