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A hora do chefe pouco querido

Nos últimos anos cidadãos europeus utilizaram esse novo instrumento de exercício da democracia por mais de cinquenta vezes. Porém a Iniciativa de Cidadania Europeia, concretizada após o recolhimento de mais de um milhão de assinaturas, provoca dores de cabeça, especialmente ao combater o acordo de comércio livre e investimento (TTIP, na sigla em inglês), negociado atualmente com os Estados Unidos.

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Por Bruno Kaufmann

A promessa da Comissão Europeia parecia indicar um bom caminho: “Ela marca a agenda política!, ressaltou na época Maroš Šefcovic, vice-presidente, ao anunciar em 1° de abril de 2012 a entrada em vigor do primeiro instrumento de democracia direta transfronteiriço do mundo, a chamada “Iniciativa de Cidadania Europeia”.

Partidários da União Democrática Cristã (CDU, na sigla em alemão) protestam em 2014 em Düsseldorf contra o tratado de livre-comércio negociado entre a UE e os EUA. Keystone

O direito conquistado pelo movimento democrático europeu depois da queda do Muro de Berlim (“Nós somos o povo”) no contexto do convento europeu de 2002/03 corresponde à competência do Parlamento Europeu de apresentar propostas legislativas. Com a entrada em vigor da atual legislação da União Europeia, o chamado “Tratado de Lisboa”, esse primeiro direito fundamental de democracia direta entrou na alçada constitucional em aplicação transfronteiriça.

Dois anos depois, os membros da UE e o Parlamento Europeu chegaram a um acordo na criação de regras práticas de aplicação do instrumento: elas preveem que um milhão de cidadãos europeus (que no prazo de um ano assinem uma iniciativa e que venham de pelos menos sete países-membros) possam apresentar uma proposta legislativa e, dessa forma, participar “na vida democrática da União”, como prevê a legislação europeia vigente.

Bruno Kaufmann Zvg

Uma pequena revolução

A exigência desse princípio e a sua aplicação legal foi e continua sendo elevada: finalmente é reconhecido e aplicado o princípio da soberania popular também no contexto de uma união política transnacional. De fato, só a simples existência desse novo direito é equiparável a uma pequena revolução. Ela influencia também cada um dos países membros, onde até então os cidadãos estavam limitados a observar a política da tribuna de visitantes, entre uma eleição e outra. Mais do que isso: com a introdução da possibilidade de recolher as assinaturas necessárias pela via eletrônica (através de um sistema online de recolhimento oferecido pela UE), Bruxelas deu um passo além do já realizado por democracias desenvolvidas com o direito de participação direta nas decisões políticas como é o caso da Suíça.

Bruno Kaufmann

Bruno Kaufmann exerce o cargo de presidente do Conselho da Democracia e Comissão de Eleição em Falun, na Suécia. É também presidente do Instituto Iniciativa e Referendo Europa, bem como co-presidente do Fórum Mundial de Democracia Direta Moderna. É ainda correspondente na Europa Setentrional e editor-chefe de ‘people2power.info, portal sobre democracia direta, criado por www.swissinfo.ch que o integra.

Privatização da água, pesquisa das células matrizes…

Até hoje já foram registrados aproximadamente mais de 50 iniciativas de cidadania europeia, das quais apenas três conseguiram cumprir todas as exigências legais para uma análise política conclusiva por parte da Comissão Europeia. Duas iniciativas – uma contra a privatização da água e a outra relativa à pesquisa das células matrizes, também já foram respondidas.

Isso já seria e é um sucesso bonito na busca da democracia. Se não fossem todos os problemas, barreiras e oposições, que terminaram por torpedear o interesse inicial da opinião pública. Elas levaram duas iniciativas atuais – e que ainda se encontram no estágio do recolhimento de assinaturas – a terem recebido o apoio de menos de oito mil cidadãos europeus. Ou com outras palavras: o instrumento da iniciativa europeia encontra-se atualmente em sua crise mais grave. Sem uma reforma ou esforços políticos, ele enfrentará um final lento e amargo.

Não é só a base da democracia moderna e da razão pelo desenvolvimento da participação ativa dos cidadãos na UE: também existe um grande número de pessoas e organizações que gostariam de utilizar o novo instrumento, se isso fosse possível. Porém, enquanto a antiga Comissão Europeia, sob a liderança de José Manuel Barroso, não poupou esforços para enfraquecer a participação imposta dos cidadãos europeus, o novo chefe no edifício central Berlaymont, o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo, Jean-Claude Juncker, ainda não se pronunciou sobre a questão da iniciativa popular.

Quase a metade foi refutada

Sob Barroso, pelo menos o vice-presidente Šefcovic demonstrou abertamente ser favorável às iniciativas, como demonstrou através da escolha de alguns competentes funcionários. Quase a metade das iniciativas registradas não foi aprovada pela secretária-geral do gabinete de Juncker, Catherine Day. Como justificativa, ela alegou em cada ocasião falta de competências para a Comissão Europeia de considerar as propostas legislativas trazidas pelos cidadãos europeus. Foi tão pouco consequente, que o Tribunal de Justiça da União Europeia em Luxemburgo já tem seis recursos a julgar nas iniciativas refutadas. O caso mais recente: a Iniciativa Europeia para um Acordo Europeu de Livre Comércio com os EUA (TTIP, na sigla em inglês, de Transatlantic Trade and Investment Partnership).

O comitê por trás da iniciativa “Stop TTIP” não se deixou frustrar e conseguiu reunir mais de um milhão de assinaturas por caminhos não oficiais. Portanto é justificável querer saber por que a Comissão Europeia e os iniciadores não conseguiram, durante as conversas preliminares, entrar em acordo na formulação necessária, que teria sido possibilitada por um diálogo formal no contexto de uma iniciativa popular registrada. Ao mesmo tempo, o caso atual mostra ser possível levantar questões interessantes e engajadas no calendário político europeu no contexto do novo direito.

E o que fazer? Por sorte ocorrem no seio da UE algumas mudanças e é preciso ver se o novo braço-direito de Juncker, Hand Frans Timmermanns, o ex-ministro do Exterior da Holanda, será capaz de quebrar o atual bloqueio e permitir a entrada de um pensamento mais favorável ao cidadão dentro da Comissão.

E por sorte, a atual Lei em vigor relativa à Iniciativa de Cidadania Europeia deve passar por uma primeira revisão, programada para ocorrer em 2015. Essa é a chance de dar uma nova vida a esse prometedor instrumento, diminuindo algumas das várias barreiras, facilitando a sua aplicação e analisando também a sua atual aplicação. E disso, tirar lições. É o momento de todos nós, cidadãos e cidadãs, chefes pouco amados da Europa!

“Ponto de vista”

A nova série da swissinfo.ch acolhe doravante contribuições exteriores escolhidas. Tratam-se de textos de especialistas, observadores privilegiados, a fim de apresentar pontos de vista originais sobre a Suíça ou sobre uma problemática que interessa à Suíça. A intenção é enriquecer o debate de ideias. 

Adaptação: Alexander Thoele

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