Como a economia helvética se beneficiou do Apartheid
As primeiras eleições livres na África do Sul ocorreram há 30 anos. A Suíça cooperou com o regime do Apartheid por muito tempo antes disso.
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A Suíça até ajudou a construir bombas nucleares. Hoje, a África do Sul não é mais uma potência nuclear, mas o governo racista do Apartheid que regeu o país até o final da Guerra Fria produziu um total de seis bombas nucleares: com o apoio de empresas suíças, conforme revelou a investigação. Empresas industriais do leste do país forneceram componentes para o enriquecimento de urânio, bem como material que aumentou o alcance (das bombas).
“A indústria suíça também foi um dos pilares do programa secreto de armas nucleares da África do Sul”, revelou o historiador Peter Hug em seu estudo como parte do programa de pesquisa “Relações entre a Suíça e a África do SulLink externo” (NRP42+).
O programa de pesquisa nacional, cujos resultados foram apresentados no outono de 2005, chegou à conclusão geral de que, para a Suíça, o comércio era mais importante do que os direitos humanos.
Apartheid começou antes de 1948
Mesmo antes do verdadeiro regime de Apartheid, o país africano era caracterizado pela discriminação racial. Por exemplo, atos sexuais e casamentos entre não brancos e brancos eram proibidos.
Em 1948, o “Partido Nasional”, o partido dos bôeres com descendências holandesas, venceu as eleições e o novo governo instaurou o Apartheid (que na língua original, Afrikaans, significa compartimento ou divisão). A maioria não branca da população deveria viver nas chamadas terras natais e fornecer ao país mão de obra barata sem direitos políticos. Em 1973, a ONU condenou o Apartheid como um crime contra a humanidade.
ONU toma providências após o massacre de Sharpeville
Em 1960, a polícia sul-africana disparou com metralhadoras contra milhares de manifestantes negras e negros. O massacre de Sharpeville deixou 69 pessoas mortas. Como resultado, a ONU endureceu sua posição em relação à África do Sul e o Conselho de Segurança da ONU decidiu por um embargo de armas.
A Suíça também proibiu oficialmente a exportação de armas para a África do Sul no final de 1963. No entanto, essa proibição não foi aplicada.
Em vez disso, o Exército suíço estabeleceu contato com a liderança do exército sul-africano na década de 1960. Uma missão militar da África do Sul também foi convidada a visitar a Suíça, que estava particularmente interessada na guerra psicológica contra inimigos internos.
Ainda assim, a Suíça condenou repetidamente o sistema de Apartheid desde a Conferência de Direitos Humanos da ONU de 1968, e tomou medidas como a limitação de investimentos em 1974. Mas as medidas legais adotadas deram à economia uma grande margem para manobras.
Participação da Suíça nos investimentos acima de 10%
Desta forma, a economia helvética fez negócios com a África do Sul até o final da década de 1980, enquanto a ONU tentava cada vez mais isolar o país do Apartheid. De 1979 a 1990, a participação da Suíça nos investimentos estrangeiros na África do Sul ultrapassou 10% em cada ano.
Como resultado, a Suíça tornou-se cada vez mais importante para os líderes do governo do Apartheid, que intensificaram seus contatos.
A África do Sul foi centro de produção de grandes empresas suíças. Na década de 1980, as empresas da família Schmidheiny controlavam um terço do mercado sul-africano de cimento e dominavam o mercado de Eternit no país.
Outras firmas tradicionais como Nestlé, Roche, Sulzer e Brown Boveri, também produziam na África do Sul.
Em 1988, 17 mil sul-africanas e sul-africanos estavam trabalhando para estas empresas.
O lucrativo comércio de ouro dos bancos suíços
No entanto, os negócios suíços na África do Sul representavam pouco mais de 1% do comércio exterior (o comércio de ouro não está incluído nessas estatísticas).
Sandra Bott, que analisou as relações econômicas entre a Suíça e a África do Sul como parte do NRP42+, ficou surpresa com a extensão do comércio de ouro da África do Sul na época.
Os bancos suíços conseguiram substituir o Reino Unido como o centro do comércio internacional de ouro em 1968. Isso também se aplicava ao ouro da África do Sul: os principais bancos suíços importavam mais da metade do ouro extraído na África do Sul em um pool conjunto. As empresas suíças estão envolvidas no comércio de diamantes – que é fundamental para a África do Sul – desde a década de 1950.
Em seu auge, em 1984, o volume de negócios dos bancos suíços totalizou quatro bilhões de francos.
Embaixador suíço para falsificações
Como Sandra Bott descobriu, as autoridades suíças também estavam envolvidas na ocultação de movimentos de capital para a África do Sul do Apartheid em 1968. “Em nome do Ministério suíço das Relações Exteriores, o embaixador em Pretória instruiu o Banco Central a falsificar suas estatísticas”, explicou Bott em 2010, “e de tal forma que cada um dos países não aparecesse mais pelo nome.”
Graças a esse truque, a Suíça aparecia nas estatísticas do Banco Central da África do Sul como “Resto da Europa”.
Arquivos bloqueados
O governo suíço causou então um escândalo próprio como parte do projeto de pesquisa sobre a África do Sul: o Conselho Federal (o conselho de sete ministros que governa a Suíça, o Poder Executivo) mandou bloquear os dossiês nos quais as empresas suíças eram mencionadas pelo nome em conexão com os negócios sul-africanos.
A restrição de um projeto de pesquisa que, afinal, era apoiado por um mandato do próprio parlamento suíço, causou enorme mal-estar.
A razão dada pelo governo em Berna foi a de que as empresas suíças com negócios na África do Sul haviam sido ameaçadas com ações judiciais coletivas nos EUA.
Um novo projeto de pesquisa Suíça-África do Sul?
A deputada-federal do Partido Verde (PV), Léonore Porchet, lançou uma proposta em 2022 para um novo estudo NRP42+ da Suíça sobre o Apartheid.
Em uma declaração, o Conselho Federal apontou que os arquivos agora estão abertos para pesquisa novamente: “A decisão do Conselho Federal de 20 de junho de 2014 suspendeu a restrição de acesso aos arquivos.” No entanto, foi considerado desnecessário um financiamento especial para essa pesquisa.
O embargo aos arquivos terminou em 2014, depois que as últimas ações judiciais coletivas relacionadas à África do Sul foram rejeitadas por um tribunal dos EUA em 2013. O Conselho Federal recomendou que a moção de Porchet fosse rejeitada. A moção foi então retirada antes que o Parlamento pudesse decidir.
Seria necessário ter fundos suficientes e vontade política
O historiador Georg Kreis, que presidiu o projeto de pesquisa NRP42+, acredita que um novo projeto para investigar as relações entre a Suíça e a África do Sul só faz sentido se houver vontade política e financiamento suficiente.
O acesso aos arquivos fornece a estrutura para “compensar o que foi impedido”. Mas para que isso realmente aconteça, seria necessário um mandato político para fazer única e exatamente isso.
Edição: David Eugster
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
Este artigo de 2010 foi complementado em 2024 com novas pesquisas e informações e reformulado em termos de estilo.
Quando a segregação racial foi consagrada por lei na África do Sul, em 1950, as empresas suíças Ciba-Geigy (atual Novartis), Roche, BBC (atual ABB) e UBS abriram filiais no Cabo.
Em 1956, foi fundada em Zurique a Swiss-South African Association, que funcionava como uma câmara de comércio.
Em 1960, a polícia matou 69 manifestantes negras e negros em Sharpeville. Após uma greve geral, o Congresso Nacional Africano (ANC) foi banido.
Em 1963, a ONU impôs a proibição do fornecimento de armas à África do Sul. A Suíça contornou essa medida.
Em 1964, o líder do ANC, Nelson Mandela, e outros ativistas foram condenados à prisão perpétua.
Em 1968, os bancos suíços criaram um pool para comprar ouro sul-africano.
Até o final da década de 1980, os bancos suíços haviam comprado pelo menos CHF 300 bilhões em ouro sul-africano.
Em 1974, o Conselho Federal limitou os investimentos anuais na África do Sul a CHF 250 milhões (CHF 300 milhões a partir de 1980). O limite máximo foi regularmente contornado.
Em 1976, cerca de 600 pessoas foram mortas em todo o país após o levante de Soweto.
Em 1986, a Suíça apoiou ONGs sul-africanas que faziam campanha pelo fim do Apartheid e pela democracia.
Em 1990, Pretória suspendeu a proibição do ANC. Nelson Mandela foi libertado em 11 de fevereiro. Em 8 de junho, ele se encontrou com o então ministro suíço das Relações Exteriores, René Felber, durante sua visita à Suíça.
Em abril de 1994, o ANC venceu as eleições de forma esmagadora e Mandela tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul.
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