Como EUA e Suíça se tornaram repúblicas irmãs da democracia direta
Julien Jaquet comparou referendos nos EUA e na Suíça e declarou que os dois países são "Sister Republics" ("Repúblicas Irmãs") da democracia direta. Jaquet descobriu que os perdedores recorrentes nas eleições recorrem a referendos.
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Em muitos estados dos EUA, os referendos fazem parte da política. O cientista político Julien Jaquet abordou em sua dissertação as iniciativas populares e os referendos nos EUA e na Suíça. Ele considera legítimo referir-se a ambos os países como as “Repúblicas Irmãs” da democracia direta.
Jaquet fala nesta entrevista sobre referendos sobre aborto e sobre o impacto da gerrymandering (manipulação de distritos eleitorais) e das distorções ideológicas nos referendos.
Além disso, explica a abordagem promissora contra um Congresso americano cada vez mais polarizado, sobre a qual três estados dos EUA votarão em 5 de novembro de 2024.
swissinfo.ch: Cerca de 70% dos cidadãos e cidadãs dos EUA vivem em estados e cidades onde é possível lançar iniciativas populares. Por que, então, o voto democrático direito nos EUA raramente é notícia?
Julien Jaquet: Isso pode ser verdade internacionalmente. Mas uma pessoa na Califórnia vê isso de outra maneira. Lá, vota-se com a mesma frequência que na Suíça, e as votações têm grande importância na mídia.
Pegue, por exemplo, o direito ao aborto, desde que a Suprema Corte dos EUA derrubou a decisão Roe vs. Wade. Neste novembro, haverá um recorde de 11 referendos sobre direitos ao abortoLink externo em 10 estados diferentes. Esses referendos estão sendo notícias nos EUA.
swissinfo.ch: Esses referendos ocorrem porque os ativistas anti-aborto estão coletando assinaturas ou porque grupos que querem garantir o acesso ao aborto estão promovendo-os?
JJ: Isso varia. Mas os resultados dos referendos anteriores sobre aborto mostram uma tendência. Os cidadãos e cidadãs frequentemente votam pela manutenção do direito ao aborto ou contra novas restrições — mesmo em estados conservadores.
Isso faz sentido, porque, segundo pesquisas mais recentes, mais de 60% das pessoas nos EUA são a favor de alguma forma de direito legal ao aborto.
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“Aquelas que optam por abortar ainda enfrentam a estigmatização”
swissinfo.ch: Portanto, os referendos sobre esse tema acabam resultando em decisões favoráveis aos democratas. No passado, as votações diretas nos EUA tinham uma reputação diferente. Em 2004, 11 estados implementaram a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo no mesmo dia – uma decisão que foi anulada pela Suprema Corte em 2015. Naquela época, os republicanos usaram a democracia direta de maneira eficaz.
JJ: Até hoje, ambos os partidos utilizam as ferramentas da democracia direta, principalmente nos estados onde o partido oposto controla o parlamento. No entanto, em alguns estados dominados pelos republicanos, eles vêm tentando dificultar a prática de referendos – ou iniciativas – há cerca de 10 anos.
swissinfo.ch: Os democratas não fazem o mesmo quando estão descontentes com os resultados das votações, nos estados que dominam?
JJ: Na Califórnia, os democratas estão irritados com os chamados “recalls”. Um recall (revogação) permite que um grupo convoque uma votação para destituir um governador antes do final de seu mandato. Os republicanos utilizam recalls na Califórnia com bastante frequência.
swissinfo.ch: Em um dos estudos de caso da sua dissertação, você descobriu que, principalmente, conservadores em estados liberais usam os instrumentos da democracia direta quando se sentem sub-representados.
JJ: Esse resultado também pode estar relacionado ao fato de que há tantas votações na liberal Califórnia. Isso poderia explicar por que cidadãos conservadores, que se sentem pouco representados, frequentemente recorrem a referendos. Também é necessário mencionar que algumas análises adicionais não confirmam esse resultado.
Mas o que é mais interessante é que há mais iniciativas populares sempre que os cidadãos e cidadãs se sentem sub-representados de duas maneiras.
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Como os americanos vivem a polarização na Suíça
Por um lado, há a distorção eleitoral, que normalmente decorre do gerrymandering, ou seja, da manipulação das fronteiras dos distritos eleitorais de acordo com os interesses da força política dominante. Por outro lado, quando há um grande fosso ideológico entre os representantes e os eleitores, mais iniciativas são lançadas.
Isso mostra que os direitos da democracia direta criam uma oportunidade para que cidadãos e cidadãs que não se sentem adequadamente representados possam preencher esse fosso de representação.
swissinfo.ch: Os direitos da democracia direta são suspeitos de ajudar forças populistas a alcançar seus objetivos. Isso é verdade?
JJ: Os direitos da democracia direta podem, às vezes, levar a que a maioria negue alguns direitos às minorias.
swissinfo.ch: Os EUA estão fortemente polarizados. Referendos nacionais poderiam, possivelmente, ajudar a conter essa polarização?
JJ: Possivelmente. A possibilidade de influenciar a política de outra forma, além da simples eleição de representantes, pode ser percebida como mais justa. Segundo um estudoLink externo realizado por Lucas Leemann e Isabelle Stadelmann-Steffen, nos estados americanos e nos cantões suíços que possuem instrumentos mais desenvolvidos de democracia direta, a diferença na satisfação entre aqueles que ganham e aqueles que perdem as eleições é menor.
Mas, no que diz respeito à representação, os EUA enfrentam outro problema.
swissinfo.ch: O que quer dizer com isso?
JJ: Em muitos distritos eleitorais, apenas 10 a 12% dos eleitores decidem quem ocupará uma cadeira no Congresso dos EUA.
swissinfo.ch: Como isso é possível?
JJ: Cerca de 90% dos distritos do Congresso americano são considerados incontestáveis, ou seja, praticamente garantidos para um dos partidos. Nesses distritos, muitas vezes, a eleição é decidida nas primárias fechadas da parte dominante, nas quais apenas eleitores registrados como Democratas ou Republicanos podem votar. Esses 10 a 12% dos eleitores das primárias são conhecidos por serem um pouco mais radicais nas suas posições políticas. Políticos que têm a reputação de transigir com o outro partido podem fracassar nessa etapa crucial.
Isso impede muitos políticos de negociar além das linhas partidárias, com medo de serem eliminados nas primárias decisivas. Se olharmos para o Congresso ao longo do século 20, podemos ver essa tendência de declínio na cooperação bipartidária.
No livro recentemente publicado, The Politics Industry (A Indústria da Política), defende-se a implementação de primárias abertas com candidatos de todos os partidos, incluindo independentes, e o uso do sistema de voto classificado (Ranked Choice).
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Nosso boletim informativo sobre a democracia
swissinfo.ch: O que é o sistema de voto classificado?
JJ: No sistema de voto classificado, por exemplo, os quatro principais candidatos e candidatas são selecionados em uma primária aberta. Os eleitores, então, podem ordenar os candidatos em uma lista de preferência nas eleições gerais – do mais preferido ao menos preferido.
Isso torna menos atraente a ideia de fazer uma campanha eleitoral atacando pessoalmente um adversário. Afinal, você está concorrendo contra vários candidatos e precisa atrair não apenas a sua base política, mas também a população em geral. Este pode ser um caminho interessante para superar a divisão entre os partidos.
swissinfo.ch: Essa ideia tem alguma chance?
JJ: No Alasca, Havaí e Maine, já se vota pelo sistema de voto classificado. Nevada e outros dois estados votarão em novembro sobre a implementação de um sistema de voto classificado. Portanto, será a democracia direta que decidirá.
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“As repúblicas irmãs”: o que uniu os EUA e a Suíça
swissinfo.ch: Por muito tempo, os EUA e a Suíça foram conhecidos como as “repúblicas irmãs”. Hoje em dia, parece estranho comparar este pequeno país alpino com os grandes Estados Unidos.
JJ: Hoje isso pode parecer estranho. Mas se recuarmos ao tempo em que essas nações foram fundadas, a perspectiva muda: no século 18, os autores da Constituição dos EUA estavam em busca de modelos para a criação de um novo Estado. Eles se inspiraram, naturalmente, em autores do Iluminismo, incluindo os escritores suíços Jean-Jacques Burlamaqui e Emer de Vattel, e também mostraram interesse pela antiga Confederação Suíça.
A Suíça e os EUA não são os únicos países que dispõem de instrumentos de democracia direta, mas estão entre aqueles em que esses instrumentos são mais utilizados. Além disso, o desenvolvimento da democracia direta nos EUA foi inspirado pelo modelo suíço.
swissinfo.ch: No entanto, sua dissertação tem o título “Sister Republics of Direct Democracy” (Repúblicas irmãs da democracia direta). Esse título tem uma base factual?
JJ: Com relação à democracia direta: sim.
A Suíça e os EUA não são os únicos países que têm instrumentos de democracia direta, mas estão entre aqueles em que esses instrumentos são usados com mais frequência. Além disso, o desenvolvimento da democracia direta nos EUA foi modelado de acordo com o da Suíça.
No entanto, a ideia de democracia direta nos EUA é anterior à fundação do país: na Nova Inglaterra, desde o século 17, já existiam assembleias de cidadãos, comparáveis à Landsgemeinde na Suíça.
Na virada para o século 20, a percepção de que a democracia representativa tinha suas limitações começou a ganhar força. Os cidadãos sentiam que, às vezes, não estavam sendo devidamente representados pelos seus eleitos.
Particularmente no oeste dos Estados Unidos, onde hoje todos os estados possuem instrumentos de democracia direta, muitos legisladores eram vistos durante essa era progressistaLink externo como fantoches de poderosos interesses econômicos.
Por volta de 1900, esses estados e suas instituições ainda eram jovens. O movimento de reforma progressista, portanto, pressionou pela introdução de mecanismos de democracia direta, com o objetivo de contornar o parlamento quando a lacuna de representação entre os cidadãos e seus representantes se tornasse muito grande.
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Karl Bürkli, o suíço que ensinou a democracia direta aos EUA
swissinfo.ch: Então é correto afirmar que as votações populares podem ser usadas para contornar o parlamento?
JJ: Uma ideia fundamental por trás da minha dissertação é como os mecanismos da democracia direta e da democracia representativa se complementam mutuamente.
Alguns comentadores políticos tendem a apresentar essas duas formas de democracia como opostas. Ou representantes eleitos que atuam em nome do povo, ou uma democracia direta que coloca o poder nas mãos dos cidadãos. No entanto, os atores e mecanismos da democracia direta e da democracia representativa estão interligados.
Na Suíça, o governo e o parlamento geralmente se posicionam sobre uma iniciativa popular e podem respondê-la com uma contraproposta. Os instrumentos de democracia direta são um complemento à democracia representativa, não um substituto para ela.
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Como suíços e suíças emigraram aos EUA
swissinfo.ch: Onde é que encontrou pela primeira vez o termo “repúblicas irmãs”, referindo-se à Suíça e aos EUA?
JJ: Eu encontrei o termo no livro de James Hutson, que você citou em um artigo anterior. Na Suíça, aparentemente, foi um conselheiro municipal de Biel que, em 1778, mencionou pela primeira vez as duas repúblicas irmãs em uma carta para Benjamin Franklin.
Nas minhas pesquisas adicionais, percebi como o termo está intimamente ligado à Revolução Francesa. A partir de 1789, a revolução moldou o conceito: a França queria reunir à sua volta os estados como repúblicas irmãs – ou seja, não monarquias, mas sim estados com governo popular.
Edição: Balz Rigendinger
Adaptação: Karleno Bocarro
Transparência: Julien Jaquet trabalha como analista no departamento de estratégia da radiodifusão da Suíça francesa RTS, que, assim como a SWI swissinfo.ch, faz parte da SRG.
Os cidadãos americanos votam em 5 de setembro nas eleições presidenciais.
Os dois candidatos, Kamala Harris (Partido Democrata) e Donald Trump (Partido Republicano ) consideram essa data como a eleição “fatídica” que irá definir o futuro do sistema político e da democracia nos Estados Unidos.
A Suíça e os EUA tem muitos pontos em comum. Nesta série de artigos, analisamos a história compartilhada dos dois países e observamos como o passado continua a ter um impacto no presente.
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