Como gêmeos digitais podem ajudar a salvar a democracia
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Tanto na medicina quanto em outros setores, há muita expectativa em torno do tema "gêmeos digitais". Um professor da Escola Politécnica Federal de Zurique (ETH) e um pesquisador dos EUA apresentam uma sugestão de como a tecnologia poderia revolucionar a democracia na Suíça e também em outros lugares do mundo.
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Os gêmeos digitais estão surgindo nos mais variados setores. Trata-se de uma simulação computadorizada, que experimenta tudo o que seu equivalente faz no mundo real. Nos últimos anos, isso se tornou possível graças às inovações no campo da inteligência artificial.
A modelagem por computador existe há muito tempo, mas só agora começou a haver uma capacidade de cálculo computacional capaz de fazer com que os modelos reproduzam a realidade com fidelidade plena. Tudo passa a ser simulado em tempo real: não só o histórico pregresso, mas também as influências ambientais e os efeitos da pressão do entorno.
Gêmeos digitais na medicina
Uma corredora na maratonaLink externo de Nova York já foi acompanhada por um gêmeo digital de seu coração. A estrutura e a função de seu coração foram escaneadas previamente e a inteligência artificial foi treinada com o material. Durante a corrida, foi possível ver como esse coração específico reagia ao esforço.
O objetivo de uma pesquisa como essa é, contudo, o prognóstico: Como um determinado coração reage em tal situação? Como ele reage a um determinado medicamento ou tratamento? Caso os gêmeos digitais consigam demostrar isso de forma confiável, eles deverão revolucionar a medicinaLink externo.
Na Suíça, muita gente aposta nos gêmeos digitais na medicina. Em uma enquete representativa, realizadaLink externo pela Universidade de Zurique em 2023, um percentual de 62% das pessoas entrevistadas se posicionaram a favor do uso dos mesmos.
Fortalecendo a democracia
No entanto, não é apenas no setores de medicina e tecnologia que cientistas apostam nesse conceito de simulação treinada por IA. O projeto Twin4DemLink externo, coordenado pela Universidade Erasmus de Roterdã, acredita que os gêmeos digitais podem tornar as democracias mais resistentes. Usando dados reais, o projeto simula os sistemas políticos da República Tcheca, da França, da Hungria e da Holanda – incluindo governos, parlamentos, tribunais e sociedade civil –, com o objetivo de revelar como se dá um retrocesso democrático.

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“Cidadãos gêmeos digitais”
Enquanto o projeto Twin4Dem trata de descobertas sobre o sistema democrático por meio dos gêmeos digitais, um professor suíço de Economia analisou como, um dia, esses gêmeos digitais poderiam criar um sistema democrático totalmente novo – o que se chamaria de democracia de apoio.

Hans Gersbach, professor de Macroeconomia da ETH, e seu colega César Martinelli, nos EUA, sugerem que toda cidadã e todo cidadão receba um gêmeo digital próprio. Gersbach e Martinelli chamam isso de “Digital Twin Citizen”. Com o passar do tempo, esses cidadãos gêmeos digitais deveriam ir assimilando as opiniões políticas e os valores éticos dos cidadãos reais que lhes foram atribuídos e, com base em informações factuais amplas, tomariam decisões prévias em referendos em nome de seus correspondentes da vida real.
Os referendos seriam realizados em dois turnos: primeiro, votariam os gêmeos digitais. Os resultados da votação seriam publicados e discutidos. No entanto, esses votos não seriam vinculativos, mas serviriam apenas como uma sondagem.
Depois que os votos dos assistentes de IA desencadeassem um debate público, as próprias cidadãs e os próprios cidadãos, de carne e osso, votariam digitalmente. Ou seja, as pessoas se adequariam à escolha prévia feita por seu gêmeo digital em seu nome.
Salvar democracia
Em entrevista, Martinelli afirma que esse conceito é “uma forma de salvar a democracia na esfera local”: cidadãs e cidadãos em sistemas com tantos referendos como a Suíça ou a Califórnia precisam tomar muitas decisões em nível local e regional, sobre as quais não estão informados. Além disso, “a mídia está se concentrando cada vez mais em questões nacionais”. Portanto, essa seria uma ideia para aliviar a carga mental das pessoas, completa o pesquisador.
Esse primeiro turno de votação seria “equivalente a uma sondagem baseada em informação”, explica Martinelli. Os cidadãos descobririam como seus gêmeos digitais avaliam as informações e que tipo de maioria a IA forma. Isso ocorreria antes que eles tomassem, por conta própria, suas decisões finais.
Gersbach e Martinelli esboçaram essa ideia de uma democracia de apoio em artigo publicado pela revista KOF BulletinLink externo da ETH. Nesse “modelo atualizado de democracia”, segundo eles, ninguém poderia alegar que os cidadãos seriam muito emotivos, míopes ou desinformados. E a afirmação de que eles não teriam tido os “incentivos necessários” para tomar suas decisões, baseadas em informação, também não se aplicaria mais.
Democracia direta atraente?
Gersbach e Martinelli acreditam na possibilidade de que a tecnologia dos gêmeos digitais não consiga mudar apenas a democracia direta na Califórnia ou na Suíça, mas que ela possa tornar o sistema atraente para “o resto do mundo”.
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Como a desinformação ameaça a democracia nos EUA e na Suíça
Para tomar suas decisões, o gêmeo digital de um cidadão deve, segundo Martinelli, levar em conta qualquer fonte através da qual seu equivalente humano procuraria para se informar. É evidente que não há garantias de que a IA não será influenciada por desinformação ou por propaganda. No entanto, acrescenta o pesquisador, a IA pode ser treinada para reconhecer a desinformação e a propaganda como tais.
“Gosto de saber que há cada vez mais pessoas trabalhando com essas ideias”, diz César Hidalgo, ao ser apresentado pela SWI swissinfo.ch ao conceito de Gersbach e Martinelli. Hidalgo é atualmente professor da Universidade de Toulouse. Há alguns anos, ele ficou conhecido de um público mais amplo por meio de uma TED-Talk, na qual sugeria substituir políticos por gêmeos digitais de cidadãos como um exercício de pensamento. Hidalgo acredita que haverá cada vez mais inovações como essa no futuro: “Acho que o crescimento explosivo da IA está inspirando cada vez mais pessoas a pensar sobre o uso de assistentes digitais como possibilidade de expandir a participação cívica, e deveríamos incentivar o pensamento livre e a experimentação nesse campo”, completa.
Reação às consultas
A ideia de uma democracia com cidadãos gêmeos digitais soa futurista – e desperta diversas indagações. Há quem sinta um incômodo com o fato de que o Estado disporia de uma reprodução digital detalhada das atitudes políticas de cada indivíduo.
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Além disso, essa “democracia apoiada por IA” pode também desencadear temores, visto que a tomada de decisões passaria a ser automatizada: Se meu gêmeo digital escolheu dessa forma, por que eu deveria me preocupar em decidir diferente? Ou seja, o conceito pode gerar preocupações, porque a consciência política seria de certa forma terceirizada para um piloto automático.
Martinelli reage com tranquilidade a esses questionamentos. Na realidade, os gêmeos digitais teriam que ser adaptados “às instituições e às normas de cada país”, explica. É possível pensar neles de forma análoga à da contagem de votos. Essa seria uma tarefa básica das autoridades eleitorais, “um dispositivo coordenado, mas também controlado e monitorado pelas autoridades eleitorais”, aponta o pesquisador.
Decisivo nesse caso seria, segundo ele, que mesmo com esse recurso de apoio à democracia, as “decisões finais” fossem tomadas por pessoas, de maneira que informações não levadas em conta pelo gêmeo digital pudessem fazer parte da decisão de voto da mesma forma que as emoções. Pois toda decisão política, como aponta Martinelli, é também uma decisão emocional.
Faltam publicações científicas
Gersbach e Martinelli ainda não divulgaram artigos científicos sobre essa proposta de IA. “É claro que ainda é necessária uma pesquisa considerável para desenvolver cidadãos gêmeos digitais confiáveis e introduzi-los em democracias diretas”, acentua Gersbach, que, além de professor da ETH, é também codiretor do Instituto Econômico Suíço KOF.
Gersbach acredita que a democracia precisa continuar evoluindo com urgência. Em um artigo para a revista acadêmica Social Choice and Welfare, ele escreve que, na terceira década do século 21, a democracia está enfrentando desafios derivados da digitalização e da inteligência artificial, mas também aqueles oriundos de Estados autoritários. Esses desafios, segundo ele, “vão forçar a democracia a se reinventar”. Na publicaçãoLink externo, Gersbach apresenta diversas formas de inovação da democracia.
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Neurotecnologias e implantes cerebrais que utilizam IA sem regulamentação preocupam estudiosos em Genebra
Sonsagem sem gêmeos digitais?
Uma das ideias de inovação propostas pelo pesquisador, o assessment voting (votação por avaliação), está calcada no mesmo conceito central que sedimenta o projeto dos Digital Twin Citizens. No entanto, segundo essa proposta, no lugar dos gêmeos digitais que votam primeiro para desencadear um debate público, um grupo representativo de pessoas, selecionado aleatoriamente, faria isso. Dessa forma, haveria uma sondagem da opinião pública antes da votação real, inpulsionando, portanto, uma discussão sobre o assunto em questão, sem que fossem necessários gêmeos digitais que conhecessem as preferências das cidadãs e dos cidadãos.
No momento, a ideia de uma democracia com cidadãos gêmeos digitais seria dificilmente apoiada pela maioria da população suíça.
Na pesquisa da Universidade de Zurique sobre o uso de tecnologia na medicina, 87% foram contra a obrigatoriedade de gêmeos digitais de seus corpos.
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Nosso boletim informativo sobre a democracia
Edição: Mark Livingston
Adaptação: Soraia Vilela
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