Democracia direta suíça pode ser o maior desafio do festival Eurovision
Enquanto a Suíça se prepara para nomear a cidade que vai sediar o Festival Eurovisão da Canção de 2025, disputas políticas e financeiras entram em jogo – uma situação corriqueira, dizem os especialistas, embora o sistema suíço de democracia direta apresente desafios únicos.
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Em um episódio de 1996 da série irlandesa de comédia Father Ted, dois padres infelizes decidem escrever uma música para a próxima competição “Eurosong” (ou seja, EurovisionLink externo). Apesar de ser uma das piores canções da históriaLink externo, na ficção ou na vida real, My Lovely Horse é escolhida como a contribuição da Irlanda no festival – e fracassa absurdamente. A série foi baseada em especulações reais de que a Irlanda havia optado pela autossabotagem: os rumores eram de que, com quatro vitórias na década de 1990, estava ficando caro organizar o festival todo ano (a nação vencedora sempre abriga o evento no ano seguinte).
Para a Suíça, que saiu vencedora em 2024, seria tarde demais para uma ação tão drástica assim. Em maio, Nemo levou para casa o troféu por uma canção amplamente aclamadaLink externo. Em decorrência disso, em maio do próximo ano, o Eurovision vai acontecer na Suíça pela terceira vez. E não há falta de cidades querendo sediar o evento: Basileia, Genebra, Zurique e Berna/Bienne manifestaram inicialmente interesse. Este ano, o Eurovision foi assistido ao vivo por cerca de 163 milhões de pessoas.
No dia 19 de julho, a Sociedade Suíça de Radiodifusão e Televisão (SRG SSR), a qual pertence a SWI swissinfo.ch, enxugou a lista, mantendo apenas as concorrentes Basileia e Genebra. A decisão final será tomada até o fim de agosto.
Vozes contrárias
Mesmo na rica – se comparada a outros países – Suíça, os debates sobre os custos do evento afloraram, muito em parte graças ao federalismo e ao sistema de democracia direta do país. Em Zurique e Berna, o financiamento público de 20 milhões e 7 milhões de francos , respectivamente, para sediar o Eurovision, foi contestado por referendos. A mesma coisa pode ainda acontecer na Basileia e em Genebra. Algumas vozes que se opõem ao festival alegam que o dinheiro do contribuinte não deveria ser usado para financiar um evento “polêmico”, que, neste ano, foi acompanhado por protestos anti-Israel. Outros opositores, ligados ao pequeno e ultraconservador partido União Democrática Federal, supõem que o Eurovision esteja ligado ao “satanismo” e ao “ocultismo”.
Considerando que os eleitores de todas as cidades que se candidataram inicialmente para sediar o evento tendem a ser de esquerda e progressistas (e, portanto, pelo menos em tese, pró-Eurovision), será que essa tática de oposição “reduz a ferramenta democrática do referendo ao absurdo”, como publicadoLink externo no jornal Tagesanzeiger? Não, diz Daniel Kübler, professor de Política da Universidade de Zurique.
Na Suíça, os desafios locais com relação às decisões financeiras são “assunto diário”, diz ele. “Eles são incluídos no sistema [político] e, dessa forma, tudo acaba acontecendo mais lentamente”, observa. Essa situação já afetou grandes eventos internacionais no passado: em 2018, por exemplo, os eleitores do cantão de Valais rejeitaram a proposta de levar os Jogos Olímpicos de Inverno para lá. No caso do Eurovision, “se você tiver que decidir rapidamente, é preciso encontrar métodos de financiamento que não estejam submetidos a um referendo”, argumenta Kübler – seja recorrendo ao setor privado ou através da SRG SSR (que já está assumindo parte dos custos).
Não se sabe ainda o que vai acontecer no próximo ano. Kübler diz que o pequeno número de assinaturas necessárias para forçar um referendo local (2400 em Genebra, 2 mil na Basileia) não seria necessariamente um obstáculo de ordem maior. Formar uma maioria para bloquear os recursos já seria mais difícil, sobretudo quando se trata de um grupo “minúsculo” como a União Democrática Federal – mesmo com o apoio de parte da bancada do amplo Partido do Povo Suíço (SVP).
A incerteza, contudo, permanece, especialmente porque até mesmo uma proposta fracassada de referendo poderia paralisar o processo por tempo suficiente e arruinar assim o planejamento de um grande evento. Enquanto isso, fala Kübler, se o governo federal interviesse, pulando no barco para garantir o financiamento, esse seria um sinal político negativo que abalaria a natureza descentralizada da democracia suíça.
Custos e benefícios do Eurovision
Entretanto, mesmo que a democracia direta da Suíça seja uma exceção, no sentido de permitir votações sobre tais assuntos, a oposição ao Eurovision – seja por motivos financeiros ou políticos – é parte integrante da história da competição, diz Dean Vuletic, historiador e autor de Postwar Europe and the Eurovision Song Contest (A Europa do Pós-guerra e o Festival Eurovison da Canção).
Os custos para sediar o evento têm sido um dos principais problemas, diz Vuletic. Com o passar do tempo, a União Europeia de Radiodifusão (EBULink externo, na sigla em inglês), principal organizadora do evento, foi tentando tornar os valores “mais toleráveis”, seja levantando recursos, abrindo o festival para patrocinadores comerciais ou vendendo ingressos para shows em grandes espaços. Mas a questão permanece. Nas primeiras décadas da competição, lembra Vuletic, alguns países – geralmente menores, como Luxemburgo ou Israel – optaram por não sediar o evento devido aos custos. Mais recentemente, a inflação e a recessão econômica não ajudaram e fizeram com que algumas nações desistissem completamente da competição.
Vuletic aponta, porém, que sempre haverá cidades e países interessados em sediar o evento, não importa o quanto isso custe: em termos de turismo, marca ou imagem, o Eurovision simplesmente “traz muitos benefícios”, diz ele. No caso de Liverpool, a cidade anfitriã de 2023, o benefício de marketing global foi estimado em quase 800 milhões de euros, de acordo com um estudo citado pelo jornal NZZ. Há quem digaLink externo, contudo, que a vantagem de sediar eventos de tão grande porte é apenas de curto prazo. Mas há vencedores claros: em Zurique, por exemplo – que pode nem ser escolhida como sede – alguns hotéis já estão lotados para maio próximo, enquanto outros estão aumentando vertiginosamente seus preços.
Exemplo austríaco: Conchita Wurst
Quanto à ampla cobertura da mídia suíça e aos debates, isso também é “absolutamente normal”, observa Vuletic. Entre 2013 e 2015, o historiador trabalhava na Universidade de Viena, exatamente no momento em que a vitória de Conchita Wurst no Eurovision levou o evento para a Áustria. “Durante todo aquele ano, entre a vitória e a realização do festival, tudo girava em torno de como organizá-lo e do que isso significava para a imagem internacional da Áustria”, relata Vuletic. Houve críticas da extrema direita à Conchita, uma artista drag, mas também debates sobre como ela poderia ajudar a Áustria a desempoeirar a tradicional associação do país com montanhas, música clássica e a história dos Habsburgos.
Nem todos os países abordam o Eurovision da mesma forma, analisa Vuletic. Ele espera, porém, que a Suíça – como outro país moderno da Europa Central – passe nos próximos dez meses por um processo semelhante ao da Áustria há uma década. O Eurovision, segundo o historiador, é uma maneira de se fazer perguntas tais como: “o que falta na percepção internacional sobre nosso país?” ou “o que queremos enfatizar?”. No caso da Suíça, será que são os sinos de vacas, os Alpes, as imagens turísticas estereotipadas? Ou seria esta uma oportunidade de mostrar a diversidade e a criatividade da sociedade suíça – um debate que Nemo, concorrente não binário, que venceu o evento deste ano, também conseguiu instigar?
Eurovision como agente de mudança
Em última análise, contudo, o Eurovision não é necessariamente a força motriz de mudança que seus detratores parecem temer. A competição é cheia de contradições, adorada tanto por “ditadores quanto por drag queens”, e com um impacto apenas “questionável” sobre democratização e abertura, analisa Vuletic. Em 2009, por exemplo, Moscou sediou a edição mais luxuosa do festival; três anos mais tarde, o Azerbaijão rivalizou, esbanjando dinheiro para sediar seu primeiro megaevento internacional. Em ambos os casos, o Eurovision foi usado como chance para impulsionar a imagem internacional de cada um desses países, mas nenhum deles se tornou, depois disso, exemplo de liberdades civis.
Seja como para-raios para debates políticos, guerras culturais ou finanças públicas apertadas, o Eurovision sempre contribuiu mais para “gerar reflexão do que para efetuar mudanças sociais”, conclui Vuletic.
Edição:Veronica DeVore
Adaptação: Soraia Vilela
*Artigo atualizado em 19 de julho para refletir a escolha das possíveis cidades-sede Basileia e Genebra pela Sociedade Suíça de Radiodifusão e Televisão (SRG SSR).
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