Parlamentares são os lobistas mais poderosos da Suíça
Os eleitores suíços irão eleger os deputados e senadores do novo Parlamento federal em outubro. Todavia os representantes do povo também defendem cada vez mais interesses particulares de empresas, federações e outras organizações. Uma tendência que faz parte de uma mudança no trabalho e função do Parlamento helvético.
Este artigo é parte de #DearDemocracy, a plataforma para a democracia direta da swissinfo.ch.
“Como se o diabo estivesse atrás delesLink externo“: Quando o Parlamento está exercendo as suas funções e o jornal Tages-Anzeiger o intitula dessa forma, algo dramático deve ter acontecido sob a cúpula do prédio histórico no centro de Berna.
De fato: em março de 2019, o Parlamento aprovou uma nova – e controversa – lei para regulamentar o trabalho dos chamados “detetives sociais” (detetives que investigam abusos do sistema de ajuda social). Detalhe picante: a lei foi aprovada com uma rapidez bastante suspeita de apenas uma semana.
Qual o motivo da pressa, se uma das características mais importantes da democracia é legislar de forma equilibrada e independente?
A resposta é simples: lobismo, os grupos de pressão que tentam atingir determinados objetivos ou defender interesses particulares. Nesse sentido, as operadoras de planos de saúde e a Instituição Suíça de Seguro contra Acidentes (SUVA) são bastante ativas no Parlamento. Elas utilizaram todo seu poder de influência para defender a luta contra os contribuintes que abusam do sistema de ajuda social.
Parlamentar e lobista
Mas como funciona o lobismo? De fato, são os representantes do povo, eleitos por um período de quatro anos, que terminam por representar de forma crescente interesses particulares. Juntos, os 246 membros do atual Parlamento suíço representam dois mil diferentes relações de interesses oriundos de 1.700 diferentes organizações. Esse é o resultado de um estudoLink externo recente feito pela seção suíça da Transparência Internacional. Assim poderíamos dizer que, se 246 parlamentares debatem um projeto de lei, 1.700 empresas que estariam influenciando diretamente o processo legislativo.
200 diferentes mandatos
Um parlamentar suíço tem, em média, oito diferentes mandatos. Entre os 246 membros, dois seriam campeões: um de um partido de esquerda e o outro, de direita. No total, os dois representam, respectivamente, 31 e 29 diferentes interesses.
O fenômeno se tornou mais acentuado na passagem do século: de 2000 até 2011, o número médio de mandatos dos parlamentares praticamente dobrou. Entre 2007 a 2015 o crescimento foi de mais de 20%.
Traduzido no caso concreto da nova lei de seguro: para 38 membros das duas comissões (uma da Câmara dos Deputados e a outra do Senado) de Segurança Social e Saúde (SKGLink externo, na sigla em alemão), onde se regulamentou a atuação dos detetives “sociais”, a Transparência Internacional Suíça identificou 90 relações de interesse.
A comissão onde o trabalho de lobby é mais intenso é de Economia e Impostos (WAKLink externo) do Conselho Nacional (Câmara dos Deputados). Durante as consultas preliminares de novas propostas de lei, entre 150 a 200 relações de interesse estavam presentes na mesa de discussão ao longo dos últimos quinze anos. É o que mostra uma análiseLink externo da Universidade de Ciências Aplicadas de Zurique.
As empresas, associações e outras organizações defendem seus interesses no processo legislativo através dos próprios parlamentares, ao invés de enviar lobistas profissionais para circular nos corredores do Parlamento.
Portas abertas para intervenções não democráticas
“O lobismo atingiu hoje proporções alarmantes na Suíça”, diz Alex Biscaro, vice-diretor da Transparência Internacional Suíça.Link externo
Como um dos autores do estudo, alerta: “O lobismo na Suíça não funciona de forma transparente e é desiquilibrado em muitos setores. Se abre, assim, portas perigosas para riscos de influência antidemocrática e de corrupção.”
Produto do sistema de milícia
Mas como parlamentares podem ser lobistas ao mesmo tempo? Uma das razões: o princípio de políticos de milícia, um sistema que lhes permite exercer uma ocupação profissional junto ao cumprimento do mandato, que inclui a participação em quatro sessões parlamentares anuais.
Um típico mandato de deputado ou senador na Suíça ocupa entre 60 a 90% do seu tempo de trabalho, mostram diferentes estudos. Os parlamentares podem ter então a sua empresa, exercer um mandato como consultor ou até ser membro de um conselho de administração e receber, por isso, salários. Um sistema não apenas legal, mas também até desejado no sistema político do país.
“O lobismo não é por si só danoso. Ele é uma parte importante e legítima da democracia pluralística e do sistema de milícia”, avalia Biscaro. A Suíça dispõe deliberadamente de um aparelho parlamentar bastante magro, que não oferece muito apoio aos políticos no sistema de milícia.
Canais de lobismo
Na política suíça existem diferentes tipos de lobistas e a forma como atuam. Dentre eles:
Dentro do Parlamento federal
– Lobistas internos: os próprios parlamentares defendendo interesses particulares.
– Lobistas externos: associações e organizações como empresas, ongs ou sindicatos, mas também representantes dos cantões, influenciando parlamentares nos salões do Parlamento federal e durante o processo legislativo.
Formas intermediárias
– Lobistas externos em interfaces formais com o Parlamento – por exemplo, atuando como secretários de grupos formais, ou seja, grupos parlamentares oficiais (PG).
– Lobistas externos em interfaces informais com o Parlamento – atuando como iniciadores de grupos informais: grupos de trabalho, círculos de lobby, etc.
Externamente
– Lobistas externos convidando membros do Parlamento para participar de palestras, eventos esportivos ou viagens.
Portas abertas para intervenções não democráticas
“Eles dependem de conhecimentos concretos e informações práticas. Ambos são frequentemente trazidos por pessoas que representam interesses especiais. No caso ideal, o lobista contribui para que o Parlamento aprove leis adequadas e praticáveis ao trazer consigo conhecimento especializado”, defende Biscaro.
Pegada legislativa
Porém “o lobismo precisa de transparência e regras claras. Em primeiro lugar é preciso mostrar claramente quem está representando interesses especiais. A relevância financeira, ou seja, o rendimento dos mandatos especiais, também deve ser divulgada”, afirma o especialista.
Em segundo lugar, é necessário que exista um código de conduta para os parlamentares e representantes de grupos de interesses. Este dá orientações sobre como lidar com conflitos de interesses ou benefícios oferecidos, tais como ofertas e viagens.
“Em terceiro lugar, precisamos de uma “pegada legislativaLink externo“. Em outras palavras, uma documentação clara e compreensível e transparente sobre quem influenciou o processo legislativo, quando e como.”
A Eslovénia e a Comissão EuropeiaLink externo, por exemplo, são exemplares a este respeito. “Elas mantêm registos de transparência significativos que fornecem informações sobre as atividades dos membros dos grupos de interesse no que diz respeito aos membros da Comissão e à sua legislação.
Interface importante
Na Suíça, porém, são precisamente as decisões das comissões parlamentares que permanecem nessa caixa negra: um velho princípio diz que nada sai das comissões.
“Influências opacas e delicadas são um perigo para a democracia”, critica Biscaro. “Isso vale para o nosso sistema de referendo. Muitas vezes não se sabe quem tenta influenciar a opinião dos eleitores através do financiamento de campanhas de votação. “
Lobismo à medida
O setor da saúde, com a indústria farmacêutica agindo ao fundo, é particularmente sensível à essa forma pressão. As duas multinacionais Novartis e Roche são particularmente ativas. O jornalista Viktor Parma, atuante no Parlamento federal há cerca de 40 anos, observou o fenômeno. “No caso da lei dos detetives sociais, as comissões na Câmara e no Senado funcionaram como um braço estendido das seguradoras de saúde, por assim dizer”, diz.
Juntamente com Oswald Sigg, antigo porta-voz do governo suíço, Parma publicou em 2011 um livro para explicar como funciona o lobismo no Parlamento.
Parma observou mudanças fundamentais nos últimos anos. Em sua opinião, ela se afastou do lobismo tradicional das grandes associações empresariais para uma estratégia de “individualização”. Assim, as empresas e organizações passaram a enviar seus próprios funcionários à Berna e querem influenciar o processo legislativo da forma que melhor lhes convém.
Segundo Parma, um exemplo é o setor financeiro – outra área onde atuam os lobismos no Parlamento federal. A Swiss Banking (Federação Suíça de Bancos) era um dos grupos mais poderosos. Nos últimos anos, o setor sofreu uma atomização – especialmente devido à pressão internacional. “Como resultado, o setor bancário suíço se dividiu em atores individuais. Os grandes bancos e outros grupos têm agora seus próprios lobistas”, avalia o jornalista suíço.
Uma situação semelhante ocorre na política econômica, um campo tradicional de atuação de interesses particulares por excelência. Antigamente a “Vorort”, como se chamada a mais importante organização empresarial da economia suíça, era tão poderosa que seu presidente chegava a ser considerado o “oitavo” ministro do Gabinete Federal, o corpo de sete ministros que governa o país.
Hoje a organização sucessora se chama “Economiesuisse”. Ela é nada menos do que a federação agrupando associações empresariais de todos os setores da economia. Porém hoje as empresas agem cada vez mais por conta própria. “Quase podemos ter pena dos lobistas das associações industriais clássicas, pois têm de justificar o tempo todo sua existência”, diz Parma.
Sem controles
Os membros do Parlamento suíço declaram suas ligações e mandatos no chamado “Registo de interessesLink externo“. No entanto o registro não é fidedigno, pois não existe uma autoridade que o controle.
Os parlamentares podem fornecer crachás de acesso ao Parlamento federal a até duas pessoas, o que dá aos lobistas acessos privilegiados à casa.
Se um parlamentar for “comprado” por lobistas, o Parlamento pode retirar a sua imunidade. A pena foi aplicada pela primeira vez em setembro de 2018: o ex-deputado-federal Christian Miesch (do Partido do Povo Suíço) foi processado por suborno passivo.
Segundo Viktor Parma, porém, a maioria dos casos em que os parlamentares se deixam seduzir em demasia, terminam sendo punidos através por acordos de cavalheiros, longe dos olhares da opinião pública.
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Adaptação: Alexander Thoele
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