“O sistema eleitoral suíço funciona na base da confiança”
Os suíços foram às urnas no domingo (18/10) para renovar as duas câmaras no Parlamento federal. Apesar de não ter havido nenhuma denúncia de irregularidades, o evento atraiu observadores credenciados e estrangeiros interessados em conhecer um pouco mais do sistema democrático, por vezes próprio, do país. Dentre eles, um funcionário da justiça eleitoral brasileira.
Como é prática entre os países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as eleições federais na Suíça foram supervisionadas por um grupo de observadores internacionais. O brasileiro Diogo Cruvinel, 33 anos, não fazia parte dele, mas veio em viagem privada ao país para acompanhar os quatro dias que antecederam a eleição.
O secretário judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e professor de direito eleitoral encontrou representantes de partidos, cientistas políticos, visitou o Parlamento federal em Berna, discutiu com candidatos e eleitores nas ruas e até chegou a acompanhar a contagem de votos em uma escola. Em entrevista à swissinfo.ch, Diogo Cruvinel fala de suas impressões e conta por que seria difícil introduzir o sistema da democracia direta no Brasil.
swissinfo.ch: Como explicar aos suíços o que é a justiça eleitoral, um instrumento desconhecido no país?
Diogo Cruvinel: Diferentemente de outros países, a justiça eleitoral no Brasil não apenas acumula a função de decidir conflitos relacionados a candidatos e partidos, mas também tem a função administrativa de organizar, realizar as eleições e também administrar o cadastro de eleitores, candidatos e partidos políticos.
swissinfo.ch: Por que você veio acompanhar as eleições federais?
D.C.: Vim devido aos meus interesses acadêmicos e profissionais. Como trabalho na justiça eleitoral com questões operacionais relacionadas à realização das eleições – e como a Suíça é tradicionalmente conhecida pelo sistema de democracia direta – meu interesse era não só conhecer o sistema político e eleitoral do país, mas também ver como são realizadas as eleições. E assim compará-la com o sistema eleitoral brasileiro e, eventualmente, sugerir alterações e mudanças. Talvez um sistema adotado na Suíça possa se encaixar e resolver algum problema nosso.
swissinfo.ch: O que você vivenciou durante esses quatros dias?
D.C.: Foi uma experiência sensacional, pois consegui conhecer o Parlamento por dentro e seu funcionamento. Descobri também a Chancelaria federalLink externo, um órgão que não existe no Brasil. Conversei com os servidores responsáveis pelo funcionamento operacional das eleições, embora na Suíça ainda se utilize a contagem manual dos votos, algo que já não existe há mais de quinze anos no Brasil. Conversei também com mesários que trabalharam no dia das eleições, com candidatos e eleitores, e pude assim ter uma ideia melhor do papel de cada um desses atores políticos. Também encontrei representantes da imprensa e pude ver como funciona a cobertura política das eleições. Levar isso para o Brasil e comparar com o nosso sistema será certamente uma experiência muito rica.
swissinfo.ch: E quais serão as que você levará ao Brasil?
D.C.: Existem questões que consegui identificar na Suíça: a resposta está na sociedade.
swissinfo.ch: Em que sentido?
D.C.: Aqui tudo funciona na base da confiança. Desde os mínimos procedimentos rotineiros e cotidianos entre as pessoas, toda a relação é feita com base na confiança. O sistema eleitoral e sistema político do país é um reflexo disso. Se confia muitos nos eleitores, candidatos e nos partidos políticos. O que eu pude perceber é que temos no Brasil um sistema muito mais restritivo e detalhado justamente para dar conta de problemas que existem na sociedade, o que não ocorre aqui. Essa vinda minha para a Suíça foi importante, pois esse tipo de resposta e conhecimento não podem ser adquirido somente através da leitura de legislação ou artigos acadêmicos e jornalísticos.
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swissinfo.ch: Como você viu as campanhas dos partidos na Suíça?
D.C.: Percebi que elas são muitos mais claras e respeitam o eleitor. Elas têm mais a finalidade de informar do que convencer. Não existe aquela propaganda no sentido de criar um estado emocional no eleitor. Existe uma propaganda no sentido de informar o eleitor sobre as propostas de cada um dos partidos. E como o número de partidos na Suíça é muito reduzido, é possível identificar mais claramente a linha ideológica de cada um deles, o que facilita ao eleitor tomar a sua decisão. Um fato muito interessante que percebi aqui é que, como o eleitor tem a possibilidade de participar diretamente em decisões tomadas pelo Parlamento, isso acaba esvaziando a importância de escolher os representantes naquele Parlamento. Já que o eleitor pode diretamente tomar uma decisão, ele se preocupa menos com as pessoas que serão eleitas.
swissinfo.ch: Seria um sistema então mais avançado do que o do Brasil?
D.C.: Eu não diria mais avançado, mas sim que são sistemas com características diferentes e aplicáveis às suas realidades. Pelo que pude perceber, o sistema suíço funciona muito bem na Suíça, mas não sei se funcionaria no Brasil. O sistema brasileiro tem sofrido alterações tentando se adaptar à realidade brasileira. Algo muito interessante que ouvi de um representante de partido político na Suíça é que essa democracia participativa não foi dada ao cidadão, mas sim conquistada. Foram anos de evolução e muita luta. Se dependesse dos parlamentares, eles teriam preferido tomar as decisões sozinhos sem serem incomodados pela população, embora o discurso político seja o contrário. Mas não se sabe se isso é só um discurso já que a situação é assim ou se estão de fato incomodados por não poderem tomar as decisões sozinhos e sempre ser submetidos a um plebiscito ou referendo popular.
swissinfo.ch: Como foi viver a apuração dos votos na Suíça?
D.C.: Achei até bastante parecido com o que a gente fazia no Brasil quando a contagem dos votos ainda era manual. Estive em uma escola onde estavam sendo apurados os votos enviados pelo correio – que também não deixa de ser uma curiosidade, pois os eleitores não têm só um dia para votar presencialmente no domingo da eleição, mas podem fazê-lo duas semanas antes por carta. Percebi que existe um controle e uma organização muito grandes na contagem desses votos. Pelas conversas que tive com alguns eleitores, vi que eles confiam nesse sistema de contagem, mesmo sendo manual. Ouvi que já ouve algum tipo de questionamento trinta anos ou quarenta anos atrás, mas que isso não existe hoje em dia. Outro detalhe importante é que o eleitor na Suíça tem a possibilidade de escolher tantos nomes quanto são os representantes do seu cantão no Parlamento. No Brasil é diferente: o eleitor só tem a possibilidade de escolher um nome e então, pelo cálculo do sistema proporcional, os partidos colocam seus representantes de acordo com as suas votações. Mas o fato é o seguinte: o eleitor suíço pode manifestar sozinho como ele gostaria de ter a composição do parlamento. No Brasil, o eleitor tem de optar por um partido, legenda ou um nome.
swissinfo.ch: Você considera então que o Parlamento suíço teria mais representatividade que o brasileiro?
D.C.: Não necessariamente. O fato de um eleitor suíço poder escolher todos os representantes para todas as cadeiras não significa necessariamente que façam dessa forma. Eu percebi que o comparecimento às urnas, pelo fato do voto ser facultativo, é muito menor do que no Brasil, onde o voto é obrigatório. E, dos eleitores que de fato votaram, percebi que muitos preenchiam apenas a metade da lista e atribuíam um valor dobrado a cada um dos nomes. Ou seja, eles preferem aumentar a chance de eleição de cada um dos seus candidatos – e um número menor de candidatos – do que de fato exercer esse direito de manifestar qual seria a composição total do Parlamento.
swissinfo.ch: E o que problemas você identificou no sistema eleitoral suíço?
D.C.: É muito difícil para alguém vindo de outra realidade criticar a democracia suíça, mas algo que me chamou muita atenção foi o fato do financiamento das campanhas eleitorais ser estritamente privado e não haver nenhuma transparência sobre isso. É um indício de que existe algo diferente. Não se sabe exatamente quem é que está financiando a campanha de cada um dos candidatos. Por trás desse financiamento podem existir interesses políticos e econômicos. E o eleitor na hora de decidir não tem acesso a esse tipo de informação. Já no Brasil, quando o financiamento era feito de forma mista, ou seja, também sendo possível o financiamento privado, sempre havia uma preocupação em saber quem é que estava financiando os candidatos. Mas conversando com os próprios candidatos e representantes de partidos menores na Suíça, eles mesmo dizem não ver problema nisso, pois é assim que funciona e os eleitores o sabem. Mas, do meu ponto de vista, se houvesse mais transparência, seria melhor para o eleitor tomar a sua decisão, sabendo de onde vem e quais interesses que defendem aqueles candidatos.
swissinfo.ch: A campanha eleitoral nas ruas da Suíça difere das realizadas no Brasil?
D.C.: Como a população aqui é menor e também o país, geograficamente, é menor, então existe a possibilidade de um contato mais próximo do candidato com o eleitor. O candidato está disponível para explicar ao eleitor suas propostas. O Brasil, como é um país muito grande – até em nível estadual o candidato tem de percorrer o estado todo – não há esse contato direto com o eleitor. No Brasil o contato ocorre muitas vezes através dos cabos eleitorais. A propaganda eleitoral brasileira também tem um víeis mais apelativo.
swissinfo.ch: Seria possível aplicar a democracia direta no Brasil?
D.C.: Na prática isso seria bastante complicado. Na teoria, o sistema da democracia direta é fantástico ao permitir o eleitor opinar diretamente sobre questões relevantes. Mas para que isso funcione na prática, é necessário que o eleitor tenha um conhecimento e seja capaz de refletir e identificar as propostas. Num país muito grande como o Brasil, com sua diversidade cultural e diferentes graus de instrução, a mídia teria de ter um papel muito importante em informar esses eleitores. Não sei se seria possível informar toda a população em um nível razoável de esclarecimento para que essas decisões possam ser tomadas de forma refletida. Mas não sei. Não tenho uma resposta pronta sobre essa questão.
swissinfo.ch: Como professor de direito eleitoral, o que você contará aos alunos ao retornar para o Brasil?
D.C.: É muito bom visitar outros países para poder ilustrar as aulas sobre o direito eleitoral brasileiro, no sentido de mostrar para os alunos que existem possibilidades diferentes. Alunos que em toda a vida de eleitor só votaram em um sistema, muitas vezes não tem ideia que aquilo pode ser de outra forma. O que posso levar para o Brasil como algo curioso é justamente o fato do Poder Executivo na Suíça ser exercido em uma lógica de consenso: neles, os sete representantes, escolhidos não diretamente pelo povo, mas pelo Parlamento, tomam decisões colegiadas e não individualmente. Isso seguramente contribui para uma estabilidade do sistema político na Suíça. As negociações e acordos não são feitos institucionalmente na figura de um só político. É algo interessante para mostrar no Brasil.
swissinfo.ch: O que o sistema político no Brasil melhorou desde o final da ditadura em 1985?
D.C.: O que vejo de avanço no sistema político brasileiro tem a ver também com os avanços das novas tecnologias. Elas permitiram ao eleitor controlar mais de perto a atuação dos parlamentares. Hoje as sessões nos Parlamentos, tanto na Câmara como no Senado, são transmitidas ao vivo. Também os portais na internet de cada uma das casas legislativas permitem uma interação muito maior dos eleitores com os seus representantes. Num país de extensões territoriais muito grande como o Brasil, isso faz muita diferença, especialmente no momento de cobrar a atuação de algum político. Hoje em dia as pessoas se mobilizam com mais facilidade por meio das redes sociais. Assim elas podem ir às ruas se manifestar sobre um tema qualquer e isso influenciar o Parlamento.
Pequena biografia
Diogo Mendonça Cruvinel, 33 anos, se formou em direito, tem mestrado em ciências políticas pela UFMG e especialização em direito público. Servidor concursado do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG), órgão no qual ocupa o cargo de Secretário Judiciário. É professor de direito eleitoral em Belo Horizonte.
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