Presidente como hobby
Política como passatempo é a base do sistema de milícia. Prefeitos, deputados, vereadores ou outros dignitários na Suíça podem ter outros empregos enquanto exercem seus mandatos. O sistema de milícia torna mais estreito os laços entre a política e os cidadãos, mas tem suas limitações.
O político francês François Hollande declarou, antes de eleito em 2002, que desejava ser um “presidente normal”. Foi uma mensagem bem acolhida pelos eleitores confrontados a Nicolas Sarkozy, um governante visto como arrogante pela grande maioria.
Porém Hollande não era tão diferente do seu concorrente como declarava ser: os dois haviam estudado na universidade francesa mais elitista do país, a “Sciences Po” e só conheciam o mundo da economia privada à distância.
Este é um artigo da série #DearDemocracy, a plataforma de democracia direta de swissinfo.ch. Aqui contribuidores, incluindo autores externos, apresentam seus pontos de vista. As opiniões expressas não são necessariamente as de swissinfo.ch
Também suas carreiras tiveram um curso semelhante: o nível de popularidade de Hollande caiu a níveis assustadores logo após alguns meses da eleição, assim como ocorreu com Sarkozy. Os dois também acabaram não se reelegendo.
O atual presidente francês, Emmanuel Macron terá o mesmo destino? Ele também estudou na mesma universidade de elite e hoje é confrontado aos intensivos protestos dos chamados “Gilets jaunes” (n.r.: jalecos amarelos), o movimento de protesto mais duradouro das últimas décadas no país.
Político nas horas livres
Também o suíço Markus Geist pode ser definido como político eleito, porém mais bem-sucedido do que os últimos presidentes da França. Durante o dia trabalha como executivo da Companhia Suíça de Trens (SBB, na sigla em alemão) em Berna. Em casa, estuda planos de obras ou protocolos de assembleias comunais (prefeituras).
Oficialmente, Geist é vice-prefeito de Grosshöchstetten, um vilarejo localizado nas proximidades de Berna. Assim como ele, milhares de suíços também exercem mandatos em níveis locais. Ele já foi o prefeito de Schlosswil, um município que foi dissolvido e fusionado à Grosshöchstetten.
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Assembleia communal
Link externoA combinação de trabalho com mandato é a formula do sistema de milícia na Suíça. Essa é a base da política no país não apenas em nível comunal, mas também cantonal e nacional. Pelo menos na teoria, pois na entrada da região do Emmental é possível ver claramente os problemas atuais do sistema de milícia: em Schlosswil era cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a assumir cargos políticos, lembra-se Geist.
E não era uma exceção. Markus Geist admite ter sido convidado há dez anos para assumir um mandato no conselho comunal, a Câmara de Vereadores local. Ele aceitou.
Um trabalho cansativo
Porem nem todas as pessoas têm tempo e vontade de estender suas horas de trabalho para resolver problemas ou tomar decisões nas suas comunas.
Ano do sistema de milícia
A Associação das Prefeituras da Suíça (que reúne todas as 2.212 prefeituras) lançou o programa “2019: Ano do Sistema de MilíciaLink externo“. De janeiro a dezembro diversas atividades estão programadas para ocorrer em todo o país, dentre elas debates com especialistas e políticos, assim como questionamentos do próprio público à procura de soluções para a falta de vocações.
Os políticos de milícia são importantes, pois dão a base para o próprio sistema vigente, tão bem-sucedido no país. Por isso serão publicados diversos livros como “O Trabalho de Milícia na Suíça”, este à disposição a partir de maio. A swissinfo.ch é parceiro de comunicação do programa e publica nas suas páginas regulamente artigos sobre o tema.
A fusão de Schlosswil, a comuna de 600 habitantes e onde existe um famoso castelo, com o vilarejo vizinho ocorreu devido a um processo cada vez mais acelerado na Suíça. A fusão de comunas fez com que elas caíssem de 3.100 (em 1950) a 2.212 na atualidade.
Compartilhar responsabilidades
Platão sonhava com um Estado que seria governado por filósofos. A ideia é de colocar o governo nas mãos de pessoas que se ocupam em toda a sua vida a decidir o que é correto e sensato.
O famoso filósofo grego não teria prazer no sistema miliciano suíço, que contradiz diametralmente seu ideal: aqui não são reis filósofos selecionados que devem decidir sobre leis, mas sim pessoas de todas as classes sociais e com diferentes origens.
A ideia por trás do sistema de milícias é semelhante à da democracia direta: o poder é distribuído sobre muitos ombros.
E esses “ombros” devem permanecer enraizados na sua profissão original. O objetivo é frear o surgimento de uma “classe política”, representada por políticos como os presidentes franceses mencionados no início do artigo.
Pelo contrário, a fronteira entre os políticos e a população deve permanecer permeável. A ideia por trás do sistema de milícias é semelhante à da democracia direta: o poder é distribuído entre muitos ombros, a responsabilidade não está com poucos profissionais, mas com muitos cidadãos individuais.
No entanto, muitas prefeituras estão ameaçadas em sua existência porque, tal como Schlosswil, dificilmente conseguem encontrar voluntários suficientes dispostos a assumir responsabilidades à serviço da comunidade. Na última pesquisa com chefes administrativos das comunas, realizada regularmente na Suíça, metade disse que era difícil ou muito difícil encher preencher as vagas dos cargos políticos.
Cada vez menos comunas (municípios)
Ao ser criada em 1848, a Suíça contava 3205 municípios. Este número permaneceu praticamente inalterado até 1990.
No início de 2019, ainda existiam 2212 municípios. Nos últimos 30 anos, quase 800 municípios ou mais de um quarto desapareceram.
O declínio massivo é o resultado de fusões políticas. Estes ocorrem a fim de resolver os problemas financeiros e de pessoal a nível da democracia local.
No entanto, as concentrações de municípios têm o seu preço, como demonstra uma pesquisa atual. Uma delas é que o declínio da participação política do cidadão, que dura há 30 anos, aumenta cada vez.
Uma das razões é a diminuição da atratividade da política local: muitos prefeitos e outros eleitos locais queixam-se de que as autarquias estão a tornar cada vez mais órgãos puramente executivos dos cantões e da Confederação (governo federal). As autoridades locais, por outro lado, não têm mais margem de manobra para tomar suas próprias decisões.
Não é de se espantar que, nesse contexto, o interesse do cidadão de participar do processo de decisão nas suas comunas diminua, sobretudo porque a compensação é geralmente modesta. Além disso, o político local precisa suportar as frequentes críticas ou até mesmo insultos quando os temas são controversos.
Políticos egocêntricos
No entanto, o princípio da milícia não enfrenta apenas desafios em nível local, mas também em nível cantonal e nacional. No Conselho Nacional (n.r.: Câmara dos Deputados) e no Conselho de Estados (Senado), o sistema das milícias não funciona mais na prática.
Qualquer pessoa que exerça conscienciosamente seu cargo no Parlamento federal, que estude cuidadosamente os dossiês e seja ativa nas diversas comissões, tem dificuldades de conciliar esse trabalho com um emprego normal.
Uma razão para o aumento da carga de trabalho é o número crescente de regras internacionais, advindas do processo de globalização e sua influência na política nacional.
O trabalho da administração pública aumentou consideravelmente. Todavia os próprios políticos são muitas vezes os responsáveis por isso: o número de iniciativas parlamentares (propostas de emendas) aumenta ano após ano. Por isso os políticos criam para si mesmo mais trabalho. Um estudo recente mostrou que, em média, os deputados e senadores investem cerca de 80% do seu tempo de trabalho cumprindo às obrigações ligadas diretamente aos seus mandatos. O resto de tempo é dedicado, entre outros, a uma atividade profissional distinta.
Flexibilidade como característica de seleção
O político que ainda também tiver um emprego paralelo, geralmente o faz em uma profissão com horários de trabalho mais flexíveis. Os advogados e empresários estão super-representados no Parlamento federal. Outros trabalham para uma associação, partido ou sindicato, combinando assim seu mandato com a profissão.
Por si, essa situação não pode ser considerada negativa. Talvez a complexidade das questões políticas atuais torne imperativo que os parlamentares invistam efetivamente todo seu tempo de trabalho na política.
Mas a profissionalização tem o seu preço. No cotidiano, os políticos profissionais lidam sobretudo com outros políticos com quem elaboram as leis. Em contrapartida, têm menos contato com as pessoas que sentem os efeitos destas na sua vida quotidiana.
Além disso, os próprios políticos são menos afetados pelas consequências do seu próprio trabalho político. Assim, a fronteira teoricamente permeável entre políticos e eleitores torna-se cada vez mais fraca.
Série “Instrumentos da democracia”
A Suíça é uma combinação de democracia indireta e direta. A última é mais desenvolvida do que em qualquer outro país. Isso se mostra, entre outras coisas, em mais de 620 eleições/votações nacionais – “recorde mundial.”
No especial #DearDemocracy, Lukas Leuzinger destaca os instrumentos, mecanismos e processos mais importantes e fundamentais da democracia direta na Suíça.
O autor estudou Ciência Política na Universidade de Zurique. Ele trabalha como jornalista e é co-operador do blog político “O Pesadelo de NapoleãoLink externo.”
Adaptação: Alexander Thoele
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