Legislação suíça deve ter primazia sobre o direito internacional?
Os eleitores suíços votam sobre a iniciativa popular (projeto de lei levado à plebiscito) intitulada "Direito suíço ao invés de juízes estrangeiros". Ela propõe dar primazia à constituição federal suíça sobre o direito internacional. Em sua essência, a iniciativa quer evitar que o resultado de plebiscitos seja anulado por tratados internacionais. Críticos veem nesta proposta riscos para os direitos humanos.
Este artigo é parte de #DearDemocracy, a plataforma da swissinfo.ch dedicada a temas de democracia direta.
A iniciativa popular “Direito suíço ao invés de juízes estrangeiros (iniciativa pela autodeterminação)” foi lançada pelo partido conservador de direita Partido Popular Suíço (SVP, na sigla em alemão). Ela visa incluir artigo na constituição suíça que determine que a própria constituição seja a fonte primária do direito, e não o direito internacional.
A iniciativa prevê basicamente que o resultado do voto popular deva estar acima do direito internacional. Dito de outra maneira, a democracia direta não deve falhar face ao direito internacional. Segundo seus proponentes, a iniciativa é uma reação à forma displicente com que governo, parlamento e corte suprema têm lidado com os resultados de plebiscitos na tentativa de evitar conflitos com o direito internacional.
Qual é a situação atual?
O direito suíço vigente não define de maneira clara e definitiva a hierarquia entre o direito internacional e a constituição suíça. A doutrina e a jurisprudência partem do princípio que o direito internacional tem primazia em geral, apesar de isto não estar previsto explicitamente na constituição.
Como a constituição é vaga no tema, as cortes têm grande margem de manobra em sua interpretação. A Suprema Corte teve que esclarecer repetidas vezes a questão da primazia entre leis federais e direito internacional em caso de conflito. A constituição define ambas as fontes como normativas e determinantes para as cortes.
A constituição suíça propriamente dita não é mencionada como fonte normativa e determinante. Isso faz com que o parlamento possa facilmente sabotar iniciativas que não lhe agradem ao implementá-las de forma negligente. É importante lembrar que um plebiscito pode apenas mudar a constituição; as leis ficam a cargo do legislador, ou seja, do parlamento. Para as cortes, é essa implementação “diluída” que é normativa, e não a emenda constitucional aprovada no plebiscito. Este é precisamente ponto contencioso.
O que prevê a iniciativa?
Entre outras coisas, a iniciativa prevê que a constituição suíça tenha primazia sobre o direito internacional com a exceção de questões mandatórias como a proibição da tortura e a escravidão. Em caso de conflito entre constituição e direito internacional, a Suíça deveria alterar o texto dos tratados ou denunciá-los. Para as cortes, a novidade seria que apenas tratados internacionais sujeitos à primazia dos referendos suíços teriam valor normativo.
Quais são os argumentos dos proponentes?
Os proponentes da iniciativa avaliam que a democracia direta está em perigo, e que esta iniciativa seria uma forma de defendê-la ou de restaurá-la. Segundo o partido SVP, a “autodeterminação sem par no mundo” que os suíços têm na forma de sua democracia direta foi nulificada desde a decisão de 2012 da Corte Suprema que colocou o direito internacional acima da Constituição Federal Suíça. Como consequência, o executivo e o parlamento simplesmente não teriam implementado decisões plebiscitárias citando o Acordo de Livre Circulação de Pessoas com a União Europeia, ou ainda a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDHLink externo). Ao mesmo tempo, outras organizações e autoridades internacionais teriam estendido suas áreas de ação e competências sem que o povo suíço tivesse sido consultado.
Os responsáveis pela iniciativa veem sua proposta como “um ‘sim’ para a democracia diretaLink externo“. O resultado de plebiscitos não poderá mais ser derrubado com base em tratados internacionais como teria sido o caso nos referendos sobre a imigração em massa e sobre a expulsão de criminosos estrangeiros. Portanto, neste referendo seria decidido se a Suíça deseja continuar sendo uma democracia direta.
Quais seriam as repercussões desta iniciativa?
Há controvérsia quanto às possíveis repercussões desta iniciativa. Eis aqui alguns pontos contenciosos:
• Denúncia de tratados. Segundo os opositores da iniciativa, cerca de cinco mil tratados internacionais deveriam ser revistos, renegociados ou denunciados. Em torno de 600 tratados importantes para a economia estariam em risco. O partido SVP contesta estes números. Segundo o partido, nenhum dos tratados mais importantes para a economia suíça estaria em risco por não conflitarem com a constituição suíça.
• Direitos humanos. Os opositores da iniciativa avisam que a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) teria que ser denunciada e que cidadãos suíços não mais teriam recurso à Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) situada em Estrasburgo. Segundo o SVP, o objetivo da iniciativa pela autodeterminação não é a denúncia da CEDH, mas que uma denúncia neste caso teria que ser considerada.
Mesmo que a CEDH não fosse denunciada, para os críticos da iniciativa os vereditos da Corte Europeia de Direitos Humanos perderiam a validade pois a ratificação da CEDH em 1974 não foi matéria de referendo e, assim sendo, as decisões da corte de Estrasburgo não teriam mais valor normativo para as cortes suíças. Para o SVP isto não seria um problema pois os “juízes estrangeiros” de Estrasburgo seriam supérfluos, já que os direitos humanos já estariam garantidos pela constituição suíça.
• Segurança jurídica. Para seus proponentes, a iniciativa contribui para a segurança jurídica por definir a Constituição Federal Suíça como a fonte suprema do direito. Hoje, não haveria clareza jurídica em caso de conflito entre direito constitucional suíço e direito internacional. Já para os opositores, as contradições da iniciativa levariam à insegurança jurídica pois não haveria clareza quanto a quais tratados internacionais deveriam ser renegociados, denunciados ou quebrados, ou ainda quem decidiria sobre a questão.
• Parte contratante inconfiável. Os opositores da iniciativa afirmam que a imagem da Suíça como parte confiável de contratos internacionais seria arranhada uma vez que quebra de contratos internacionais por parte da Suíça teriam que ser admitidos. O SVP aponta para o registro histórico indicando que a Suíça raramente quebrou pactos internacionais. Tratados internacionais de vulto sempre estariam submetidos à aprovação em referendo e teriam, também no futuro, caráter normativo para as cortes suíças.
• Problemas com a União Europeia (UE). Opositores temem que os tratados bilaterais com a UE tenham que ser denunciados. Com efeito, o SVP claramente não faz questão de manter tais tratados a qualquer preço, e já encaminharam uma nova iniciativa que visa explicitamente a denúncia do Acordo de Livre Circulação de Pessoas com a UE.
• Consequências econômicas. Para associação de indústrias Economiesuisse, a iniciativa pela autodeterminação coloca em risco a Suíça como praça econômica. O SVP por outro lado vê a democracia direta como garantidora de uma praça econômica estável e atraente.
Por que o governo rejeita esta iniciativa?
O Executivo suíço recomenda votar pelo ‘nãoLink externo‘, pois a iniciativa colocaria acordos internacionais em risco, traria insegurança jurídica e ameaçaria a praça econômica suíça. Também a proteção aos direitos humanos seria enfraquecida.
O que diz o Parlamento suíço?
O Parlamento rejeita a iniciativaLink externo: a Câmara de Deputados (Nationalrat) com 129 votos contra e 68 a favor, e o Senado (Ständerat) com 38 votos contra e 6 a favor. Dentre todos os partidos, apenas o partido SVP apoia a iniciativa.
Você pode entrar em contato com a autora @SibillaBondolfi no FacebookLink externoTwitterLink externo.
Ampla aliança dos opositores
Não apenas o governo, o parlamento e os partidos rejeitam majoritariamente a iniciativa pela autodeterminação. Também na sociedade civil se vê a formação de uma ampla aliança de opositores. As várias organizações rejeitam a iniciativa por diferentes razões. Para a associação de indústrias EconomiesuisseLink externo, a iniciativa é um ataque frontal aos interesses econômicos do país. Professores universitários advertem sobre a insegurança jurídica. Organizações Não-Governamentais veem riscos para os direitos humanos e o movimento “Operation LiberoLink externo” teme repercussões negativas na política externa.
Os representantes dos cidadãos suíços no exterior votaram unanimemente em agosto contra a iniciativa pela autodeterminação no Conselho de Suíços do Estrangeiro. Suíços residentes no exterior são diretamente afetados por convenções internacionais e são tendencialmente favoráveis aos laços internacionais da Suíça.
Adaptação: D.v.Sperling
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