Quando o príncipe encantado se transforma em carrasco
A semana da conscientização contra o tráfico de seres humanos, que tem início todos os anos no dia 30 de julho, traz à tona um assunto que precisa ser discutido sem tabu: o casamento com pessoas de outro país.
Com exceção das uniões baseadas no amor e no respeito, que são a maioria, o relacionamento com um estrangeiro e a consequente migração pode significar a porta de entrada para a vulnerabilidade ou até mesmo o início de uma realidade de escravidão sexual, de trabalhos forçados ou de violência.
O tráfico de seres humanos pode acontecer também por meio de casamentos ou uniões. É mais comum do que se imagina homens viajarem, trazerem uma mulher estrangeira para viver em seu país e depois escravizá-las.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
O governo brasileiro está ciente do problema e criou material de orientação na sua página. O Ministério das Relações Exteriores afirma que vem recebendo numerosas queixas de cidadãs brasileiras vítimas de roubos, fraudes e violência cometidos por cônjuges estrangeiros que conheceram pela internet e com os quais tiveram pouco ou nenhum convívio presencial antes do casamento.
De acordo com os relatos recebidos, que incluem denúncias de cárcere privado, é frequente, nesses casos, que os maridos estrangeiros mudem completamente de comportamento, logo após a formalização do matrimônio, tornando-se agressivos e manipuladores ou interrompendo repentinamente o contato com as vítimas, após obterem visto de permanência no Brasil.
E a Suíça não está imune a isso. Matéria publicada no último dia 30 de julho mostra que o país lidera, junto com Portugal, a nação com maior número de brasileiros traficados internacionalmente.
O objetivo dessa matéria não é falar mal dos casamentos binacionais, mas alertar para alguns riscos que esse tipo de situação pode gerar e como a mulher brasileira em país estrangeiro deve se prevenir. É claro que violência doméstica pode acontecer com qualquer casal. Mas a migração expõe às mulheres a situações mais arriscadas.
Além do tráfico de seres humanos e a escravização de mulheres, outro problema enfrentado por brasileiras ao se casarem com estrangeiros é a vulnerabilidade que a própria situação migratória já traz: dificuldade com a língua, falta de uma rede de ajuda, família distante, dependência financeira, problemas culturais, desconhecimento dos seus direitos e da nova realidade e assim por diante. Para homens mal-intencionados, é a combinação perfeita.
Vulnerabilidades
Caso a união tenha gerado filhos, isso pode as colocar para sempre atadas ao país do marido. Mesmo que se divorcie e queira ir embora, a princípio terá que permanecer no país, caso o pai da criança não permitir que ela retorne para o seu país de origem com o menor de idade. Nessa situação, a única solução jurídica viável será requerer uma autorização judicial, a qual se baseará sempre no melhor interesse da criança. E caso ele a deixe sem dinheiro após a separação, ela poderá passar por situação de dificuldade financeira. Em alguns casos, o abandono e faz com que a pessoa precise deixar o país. Em outros, o que é o pior, a mulher simplesmente aguenta situações de maus tratos, violência e de humilhação por desconhecer os seus direitos.
Para esclarecer melhor a situação de relacionamento, direitos e divórcio, a advogada Fernanda Pontes Clavadetscher, presidente e coordenadora geral da Associação Saber Direito, conversou com a swissinfo.ch sobre as vulnerabilidades, o que pode ser feito para amenizar o problema, e o que mulheres que se divorciam no país devem prestar atenção ou podem pleitear.
A advogada atende pelo Saber Direito inúmeros casos de mulheres que sofrem violência ou que querem simplesmente se separar, mas não têm ideia sobre o que fazer por desconhecerem os seus direitos na Suíça. “Muitas têm um grande receio de entrar com a separação por acharem que perderão a guarda dos filhos ou por se sentirem desamparadas num país que não é o delas. É muito triste ver que mulheres se submetem a situações de maus tratos por desconhecerem seus direitos”, afirma a advogada.
swissinfo.ch – Como fica a situação de uma mulher que se divorcia na Suíça?
Fernanda Pontes: É difícil generalizar. Direito de Família é muito casuístico. O que eu quero dizer com isso é que cada caso deve ser avaliado individualmente. O juiz normalmente analisa como o casal vivia financeiramente. Se a mulher nunca trabalhou fora, sempre cuidou dos filhos e da casa e o marido era o provedor da família, em regra, numa separação essa estrutura familiar deverá permanecer. Na prática, a mulher tem o direito de permanecer com o mesmo estilo de vida, mas claro que isso vai depender muito da situação financeira do marido, pois a sua existência mínima terá que ser garantida.
Caso essa mulher fique desprovida de recursos, o que acontece com certa frequência quando a pensão alimentícia aplicada não dá para cobrir as suas despesas essenciais, quem assume as despesas dessa mulher e do filho é o Departamento Social. Porém, depender da ajuda do Estado é sempre perigoso para a mulher migrante, pois poderá caracterizar a sua falta de integração no país, fator essencial para a sua permanência na Suíça. É por isso que é tão importante manter-se bem informada sobre os seus direitos e deveres.
Outro detalhe muito importante: se a pessoa está casada há menos de três anos, em caso de separação, provavelmente terá que deixar a Suíça.
swissinfo.ch: A Senhora acredita que a mulher que se casa com um estrangeiro precisa tomar mais cuidados?
F.P.: Eu diria que é necessário tomar decisões com cautela, principalmente quando o casamento envolve mudança de país. Isso significa que ela deixará o seu meio social, a sua família, profissão e muito mais.
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Vítimas de violência doméstica terão mais proteção
Migração, por si só, significa vulnerabilidade. Afinal de contas, emigrar é pisar em um terreno que não se conhece, salvo raras exceções. Quando uma brasileira pega o avião e cruza o oceano, ela precisará de dinheiro para comprar a passagem de volta, caso algo dê errado. Se ela não trabalhar e depender financeiramente de alguém que deveria ser parceiro, mas se tornou algoz, está realmente nas mãos dessa pessoa. Mas o importante é saber que para tudo tem jeito e ficar atenta a sinais.
swissinfo.ch: E quais seriam esses sinais?
F.P.: Sem querer generalizar ou culpar alguém especificamente, a brasileira deve ficar atenta quando o marido não permite que ela aprenda a língua da região onde vive e não a estimula a se integrar no país. Fique atenta também ao comportamento dele quanto ao salário. Marido que não deixa a esposa saber quanto ganha não é bom sinal.
swissinfo.ch: Então, mesmo em 2018, ainda temos mulheres acreditando em príncipes encantados?
F.P.: Com certeza. Muitas mulheres se mudam para a Suíça achando que irão viver um conto de fadas. É aquela velha história de supervalorizar o estrangeiro. Não é à toa que o tráfico de seres humanos mexe tanto com esses sonhos ingênuos de tantas brasileiras e brasileiros.
Muitas dessas mulheres fantasiam que a vida delas será um luxo, afinal de contas vêm morar na Suíça, o país encantado dos alpes e do chocolate. Muitas se apaixonam mesmo, tanto pelos homens quanto pelo promissor futuro. E o pior, muitos desses relacionamentos começam pela internet, na maioria das vezes sem qualquer aprofundamento. Imagina o perigo.
E mesmo que essa migrante não enfrente uma situação tão séria quanto maus tratos ou tráfico, ela pode sofrer um choque simplesmente pela expectativa e realidade. A gente sabe que a vida de uma dona de casa aqui não é como no Brasil, quando a pessoa pertence à classe média. Some-se a isso as diferenças culturais, a frustração da perda da autoconfiança e autonomia, temos aí uma probabilidade para que uma situação não dê certo ou sofra fortes crises.
swissinfo.ch: E como advogada, qual seria o seu conselho a essas pessoas que pensam em deixar o seu país para se casarem com estrangeiros?
F.P.: Eu diria que principalmente à mulher, que é a maioria nesse processo de migração, deve procurar se empoderar. Isso significa que ela necessita aprender o idioma local e procurar informações sobre vários assuntos.
Deixar a zona de conforto e tomar as rédeas da própria vida é fundamental. É importante não deixar para começar a se informar só quando já estiver numa crise. Informação é importante sempre. Outro aspecto essencial é estar ciente do orçamento familiar. É preciso saber questões simples, como por exemplo, quanto custa o seguro de saúde, o aluguel. Não espere o marido resolver tudo.
E se ainda não deixou o Brasil, aproveite para se informar sobre a cultura do país e como a vida funciona; não somente sobre questões jurídicas, mas culturais também. Converse sobre temas importantes com o futuro cônjuge. Pergunte o que ele acha sobre ter filhos, o que pensa em relação à mulher trabalhar e como você poderá aprender a língua do país. Com essas e outras respostas mais específicas, já dá para começar a ter uma ideia de como o seu futuro cônjuge pensa. Então, eu finalizo com a máxima: seja consciente, bem informada e, de resto, aproveite para ser feliz.
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