Em busca de Marias das Dores
A artista plástica carioca Leca Araújo homenageia as 11 milhões de Marias brasileiras com exposição na Semana de Direitos Humanos da ONU.
Se você se chama Maria das Dores e gostaria de emprestar o seu rosto para representar o Brasil, entre em contato com a artista plástica Leca Araújo até o dia 25 de maio. Ela está à procura de mulheres com esse nome para a exposição da série As Marias, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra. Leca tem interesse em fotos, vídeos e nas histórias das personagens, que serão exibidas em uma videoinstalação batizada de Meu nome é Maria das entre os dias 18 a 28 de junho, período em que será debatido o tema Direitos Humanos.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
O projeto Maria das Dores integra a série As Marias, uma ideia artística maior que retrata e homenageia vários tipos de mulheres brasileiras. A videoinstalação “Meu nome é Maria das Dores” foca nessas inúmeras das Dores brasileiras. Idealizada por Leca e a convite da Embaixatriz Maria Nazareth Farani Azevêdo, Representante da Missão Permanente do Brasil junto a ONU em Genebra, a exposição pretende contar por meio de telas, gravações e imagens a força, as vidas, ideais, histórias, vitórias, perdas e sentimentos de todas as brasileiras ali representadas.
O convite de retratar o Brasil durante a Semana de Direitos Humanos aconteceu pelo enfoque social dado por Leca à série As Marias. Além de tentar trazer à tona as diversas brasileiras que sofreram violência, racismo e exclusão social, também retrata diversos perfis de mulheres admiráveis, como Fernanda Torres e a própria Maria da Penha, uma das mulheres mais importantes no cenário feminino nacional. A vítima de violência doméstica Maria da Penha inspirou na criação da Lei homônima de Proteção à Mulher. Na série, a homenageada é pintada com o cabelo repleto de tomadas, que representa a tentativa de assassinato por choque de descarga elétrica. A ONU reconhece a lei Maria da Penha como uma das melhores legislações do mundo para combater a violência contra a mulher
Todas as Marias de Leca são negras e a maioria traz um recado de diversidade. De acordo com a autora, o nome Maria é simples e comum, retratando facilmente a ideia de beleza genuína. “Por isso pintei todas negras, coloridas e cheias de vida, mas sempre com fundo escuro, para não haver muita diferenciação. Elas podem ser vítimas e heroínas ao mesmo tempo, assim como Maria da Penha. Eu procuro pintar Marias, Fernandas e Clarices como se todas tivessem o mesmo nome; e negras, brancas e amarelas como se tivessem a mesma cor. O objetivo é trazer a mulher brasileira para um contexto comum e ali falar da sua beleza, que está na alma, e não no tom de pele ou profissão. A ideia do fundo e rosto preto é para traçar um paralelo com o fato de sermos similares porem diferentes”, explica.
Leca partiu de alguns estudos para criar suas Marias. De acordo com uma pesquisa feita pelo IBGE em 2010, existem 11,7 milhões de Marias no Brasil e 54% da população brasileira é negra. Outro dado que chamou a atenção da artista foi o fato de o novelista Felipe Miguez, que escreveu a novela sobre empregadas domésticas na TV Globo, informar que a maioria das domésticas brasileiras é negra e se chama Maria. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), dos 52 milhões de trabalhadores domésticos no mundo, 7 milhões são brasileiros, e deste 7 milhões, 93% são mulheres.
Leca descobriu que há mais de 11 milhões de homônimas brasileiras, com variações somente no segundo nome. Segundo os Correios, existem mais de 230 ruas e cidades com nome de Maria das Dores no Brasil. “Historicamente, é dado geralmente a uma mulher guerreira, capaz de sofrer por uma causa nobre. Também pode ser uma referência à Nossa Senhora das Dores. O interessante é que reflete o nosso rico imaginário popular, com uma simbologia que propõe a transformação de um ser em uma pessoa virtuosa”, conta a artista.
Especializada em Maria de uma forma geral, Leca viaja pelo mundo com a exposição itinerante As Marias. Na série, a artista apresenta de forma criativa as histórias de muitas dessas personagens que marcaram época ou que estão presentes no nosso cotidiano. A série conta com quadros premiados internacionalmente.
Entre as 27 obras, apenas 20 serão expostas. Algumas já foram vendidas ou doadas. Entre as que poderão ser vistas na ONU, o público terá acesso aos quadros Maria Fernanda, uma homenagem a atriz Fernanda Montenegro; ao Maria do Alagoas, que simboliza as lavadeiras de Alagoas; Maria Sara, inspirada em Sara Kubitschek; Maria Dandara, que foi esposa de Zumbi dos Palmares, entre outras.
Heroína e vítima: quem é Maria da Penha
A cearense Maria da Penha Maia Fernandes é a responsável pela promulgação da Lei N. 11.340, que protege as mulheres contra crimes de violência doméstica no Brasil. Trata-se da famosa Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, e que garante proteção de vítimas de agressão física, psicológica, sexual e patrimonial.
Por contemplar esses e outros tipos de agressão e buscar atender a vítima de modo integral, a Lei é uma referência, segundo o relatório do Banco Mundial. Resultou em diminuição do número de femicídios. De acordo com o Mapa da Violência 2015, o índice de crescimento caiu a 2,5% ao ano no período após a adoção da lei, contra os 7,6% do período anterior a ela. A lei Maria da Penha é a base para os compromissos adquiridos pelo Brasil em resposta à Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (da Organização dos Estados Americanos – OEA) e à Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (da Organização das Nações Unidas – ONU).
Na prática, alterou o Código Penal brasileiro, fazendo com que os agressores sejam presos em flagrante ou que tenham a prisão preventiva decretada. Outra grande mudança foi a eliminação das penas alternativas para os ofensores, que antes eram punidos com pagamento de cesta básica ou pequenas multas. Com a nova legislação, pode ser condenado a três anos de reclusão.
O ponto de partida para sua criação foi baseado na história da farmacêutica Maria da Penha, que sofreu violência doméstica por aproximadamente 23 anos. O professor universitário e ex-marido tentou matá-la duas vezes. A primeira tentativa deixou-a paraplégica, após levar um tiro enquanto dormia.
A segunda tentativa de assassinato, quando foi vítima de eletrocussão e afogamento, foi o estopim para a coragem de denunciar o seu agressor e começar o processo que demoraria quase 20 anos para ser finalizado: o da criação da Lei Maria da Penha e a proteção de mulheres em situações de risco e vulnerabilidade.
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Vítimas de violência doméstica terão mais proteção
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