Flexibilidade para sobreviver às mudanças
"Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo". A psicóloga Clínica Cristina Bandeira aconselha a quem mora no exterior a seguir o conselho de Raul Seixas.
Com experiência de 30 anos em Terapia Gestalt, inclusive com pacientes brasileiros que embarcaram para o exterior e enfrentaram problemas de adaptação, ela mesma conta que foi vítima de choque cultural quando saiu do Rio de Janeiro para morar em Florianópolis. Carioca de Copacabana, estava acostumada a sair da praia e passar no supermercado somente de canga e chinelo. Em Santa Catarina, quase foi expulsa do por não estar vestida adequadamente. Nessa entrevista, Cristina divide com a equipe da swissinfo.ch seu ponto de vista, reflexões e ensinamentos.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
swissinfo.ch: Quem seriam as pessoas que mais apresentam dificuldades para se adaptar em outros países?
Cristina Bandeira: A minha experiência me mostra e estudos comprovam que os mais apegados a rígidos valores e crenças têm mais inconvenientes em se adaptar a uma nova realidade. Já os mais flexíveis, ao contrário, apresentam mais facilidade.
Não se trata de um tipo de personalidade, como a histérica ou a narcisista, por exemplo. E sim de uma forma de estar e ou de se colocar no mundo. Explicando melhor: entre oito e 80, existem várias nuances. Assim é a vida.
swissinfo.ch: De que forma essa característica afetaria o processo de adaptação de um migrante?
C.B.: O interessante é que algumas pessoas conseguem ser flexíveis em várias áreas de sua vida, mas quando envolve família, valores ou se veem em processo de profundas mudanças, como é a migração, acabam mostrando que não são tão maleáveis assim.
Por exemplo, cada país tem sua tradição e cultura, certo? Suponhamos que alguém more na Suíça e vivencie o carnaval local, que com certeza não é tão animado quanto o brasileiro. Mas não adianta reclamar, porque as coisas são como são. Então você decide o que é importante para você, o que incomoda e o que é aceitável e convive com isso. Não precisa amar o carnaval suíço, mas tampouco tem que sofrer. Se odeia, planeje suas férias nessa época do ano. Se o orçamento estiver curto, junte os amigos e celebre o seu carnaval em casa. Por que não?
Quem não consegue se adaptar, geralmente se deprime. A depressão ocorre quando ficamos presos ao passado. E o migrante incorre nesse grande risco. Ele tende a se lembrar constantemente de como era bom naquele tempo, na sua rua, com os seus amigos. Atitude tipicamente de quem deixou algo para iniciar outro, mas não se desligou.
Se eu tentar fazer tudo como fazia no Brasil ou esperar reações brasileiras em outra cultura, vou me frustrar muito. País novo, regras diferentes.
swissinfo.ch: Além da flexibilidade, algum outro ingrediente na receita de uma adaptação mais leve em culturas estrangeiras?
C.B.: Outro componente que entra nesse processo é a expectativa trazida na mala. Geralmente quem deixa o Brasil traz muitas esperanças, que será feliz para sempre e que terá um emprego maravilhoso. A própria esperança pode trazer traços de visão do seu velho mundo, já que está integrada a uma análise feita ainda sob a ótica anterior. O meu sonho é uma possibilidade entre outras inúmeras. E isso tem um poder muito impactante, que pode se transformar em limitante, se a pessoa não conseguir relaxar e curtir o que lhe é apresentado.
Dessa forma, eu proponho que se faça uma reflexão profunda sobre a sua realidade atual e os valores antigos que ainda carrega e que não combinam mais. Os valores precisam ser atualizados com o tempo, e estarem de acordo com a sociedade em que se vive. Um exemplo que trago muito comigo é o da minha tia-avó, que levou uma surra dos pais quando era jovem porque mostrou o tornozelo para o rapaz que queria se casar com ela.
Conheço uma pessoa que me relatou que foi proibida pelo pai de usar roupa de couro. Naquela época, somente prostituta usava esse tipo de vestimenta. Mas se manter nesse padrão seria de extrema rigidez, algo que não caberia mais em tempos modernos. E assim se dá o processo de adaptação em uma outra cultura, alguns itens e comportamentos precisam ser substituídos por outros nesse meio distinto do que era originalmente o seu.
swissinfo.ch: Existe uma forma de exercitar a flexibilidade?
C.B.: Talvez ficando mais atenta ao seu comportamento. Por exemplo: eu faço dessa forma, mas será que existe outra maneira de se fazer a mesma coisa? Como são as regras desse país? O que é aceitável e o que não é? Não tenha vergonha de perguntar para quem tem mais experiência do que você na sociedade na qual você agora está inserido. É importante mapear as atitudes esperadas. Engula a soberba e pratique a humildade de dar a cara a tapa. Peça explicação. Tente conhecer as leis, a cultura. O que não pode é chegar em um lugar e querer estabelecer suas próprias regras.
Afinal de contas, a forma de olhar o mundo não é igual em todos os lugares. A pior coisa é fingir que não vê e empurrar com a barriga. Não dá para fingir que o obstáculo não existe. Pode ser o aprendizado da língua, o desconhecimento das regras, a saudade, eles estão todos ali, acenando para você. Tem que encarar para remove-los.
O que nessa sociedade combina com meus valores? Como eu conseguiria integrar parte desses valores à minha vida? O que faz sentido para mim? O que eu quero, do que eu gosto? Entre em contato com você mesmo.
swissinfo.ch: Qual seria o seu recado para quem sofre com a adaptação ou que não consegue se encontrar nessa etapa da vida, vivendo em um país estrangeiro?
C.B.: Eu posso dizer que o que me deixa em sofrimento é esse conflito entre duas realidades totalmente distintas e a inaptidão em jogar fora o que não me serve mais. Eu sou feliz quando vivo o presente. O aqui e agora eu posso mudar, faça a sua escolha. Aceitar a nova cultura não significa se anular e sim aprender a conviver nesse novo contexto.
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