75 anos de direitos humanos: o que há para comemorar?
Há 75 anos, o mundo se uniu em torno de um documento inovador. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) refletia uma crença compartilhada no "nunca mais", uma crença de que a humanidade precisava estabelecer regras e princípios para si mesma, a fim de garantir que os horrores da II Guerra Mundial nunca mais se repetiriam.
Há algo a comemorar neste 75º aniversário? Vale lembrar o que a declaração promete: o direito à liberdade de expressão, à educação, a não ser torturado, ao asilo se formos perseguidos e muito mais.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos da ONU, existem atualmente 55 conflitos em todo o mundo. Em muitos deles, da Ucrânia ao Sudão, passando por Gaza, há provas convincentes de que crimes de guerra estão sendo cometidos.
192 países, ou seja, basicamente todos, assinaram a declaração. Isso significa que nossos governos devem nos garantir esses direitos e proteções. Mas será que sim? A resposta curta: não. A resposta longa: nem todos, nem o tempo todo.
Bom de ter ou obrigatório?
As Nações Unidas, no que parece ser a busca do impossível, têm a tarefa de defender a Declaração Universal e lembrar, e até condenar, os governos que estão abusando dos direitos de seus cidadãos.
A responsabilidade final fica com o Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, um cargo que a ONU nem tinha até a década de 1990, quando a Guerra Fria descongelou, e houve, ainda que brevemente, um otimismo genuíno de que o multilateralismo poderia funcionar.
Ao longo deste ano de aniversário, tive o privilégio de entrevistar os homens e mulheres que lideraram o trabalho de direitos humanos da ONU ao longo das décadas. Você pode ouvir todas essas entrevistas exclusivas em profundidade em nosso podcast Inside GenevaLink externo.
Hoje com 91 anos, o equatoriano José Ayala Lasso, foi o primeiro comissário de direitos humanos da ONU. Ele me disse que, quando os Estados-membros da ONU estavam negociando os termos do trabalho, alguns governos achavam que os princípios contidos na declaração eram bons objetivos, enquanto outros achavam que deveriam ser obrigatórios e defendiam alguma forma de mecanismo para mantê-los ou mesmo aplicá-los. “Tentei apoiar a segunda posição”, disse.
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José Ayala Lasso: “Não devemos perder nossa fé”
Grandes desafios
Mas, como sabemos, mesmo com o direito internacional e as convenções a apoiá-lo, a ONU tem grandes dificuldades em fazer cumprir qualquer coisa. Quando Ayala Lasso assumiu o cargo, na Primavera de 1994, a guerra na ex-Iugoslávia estava em curso e o genocídio no Ruanda tinha acabado de começar.
Apesar de ter um escritório minúsculo e um orçamento ainda menor, Ayala Lasso estava determinada a ir para Ruanda, em uma tentativa de parar a violência. “Eu tinha que ir”, ele me disse. Mas quando chegou ao Ruanda já era maio, e o líder tutsi Paul Kagame queixou-se amargamente de que o genocídio infligido ao seu povo estava “perto de terminar”.
O fracasso da ONU em Ruanda, embora não seja culpa do recém-criado comissário de direitos humanos, teve um impacto na sucessora de Ayala Lasso, Mary Robinson. Como presidente da Irlanda, ela visitou Ruanda várias vezes e foi calorosamente recebida. Quando foi representar a ONU, ela lembra que “quando cheguei usando meu chapéu da ONU, eles desconsideraram completamente e, na verdade, meio que me humilharam”.
Sua experiência demonstra a lacuna ainda enorme entre as esperanças investidas nas Nações Unidas e o que seus funcionários podem realmente alcançar. Essa lacuna ficou ainda mais bem ilustrada após o 11/9, quando os Estados Unidos, a maior superpotência mundial, começaram a questionar os princípios mais fundamentais dos direitos humanos.
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Mary Robinson: “Todos têm direitos humanos fundamentais”
Dois pesos e duas medidas
Nessa época, a canadense Louise Arbour era a alta comissária de Direitos Humanos da ONU. A advogada, que integrou o tribunal da ex-Iugoslávia, já tinha feito manchetes ao acusar Slobodan Milosevic por crimes de guerra. Essa acusação foi, segundo ela, “uma prova para mim da importância do direito. Do Estado de Direito, como princípio organizador da sociedade moderna”.
Mas o comissário de direitos humanos não é juiz nem promotor, então quando os Estados Unidos, na esteira do 11/9, questionaram se a lei que proíbe a tortura deveria ser aplicada na guerra ao terror, Arbour tinha apenas o poder da ONU de persuasão ou condenação.
Embora hoje ela questione o quanto “gritar no deserto” faz bem, ela também se preocupa com o fato de que a percepção de dois pesos e duas medidas das superpotências ocidentais cause frustração entre outros países, que se sentem pressionados. “À medida que o Ocidente promovia seus chamados valores”, explica Arbour, “outros começaram a notar que, felizmente para o Ocidente, seus valores sempre coincidiam com seus interesses”.
Algum resultado?
É justo perguntar, ouvindo a frustração expressa por tantos ex-comissários, se a arquitetura de direitos humanos da ONU pode surtir algum efeito. Mas essa seria uma visão pessimista. Veja o trabalho da ONU Direitos Humanos enquanto Navi Pillay, e seu sucessor Zeid Ra’ad al Hussein estavam no cargo, sobre a Síria. Vários relatórios aprofundados foram preparados. Estes relatórios examinaram todas as facetas sombrias do conflito, com provas que poderiam, em algum momento, ser usadas em processos por crimes de guerra.
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Zeid Ra’ad Al Hussein: “A ONU não existe para se tornar amiga dos países-membros”
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Uma intrépida lutadora pelos direitos e pela igualdade
Ou veja, por exemplo, Michelle Bachelet, que deixou o cargo no ano passado. Ela sofreu uma enorme pressão por causa de um relatório muito atrasado sobre o tratamento dado pela China à sua comunidade uigur. Ela confessa ao Inside Geneva que sofria “pressão diária” de quem queria publicá-lo e de quem não o queria.
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Michelle Bachelet: “Uma declaração relevante até hoje”
Ou veja, por exemplo, Michelle Bachelet, que deixou o cargo no ano passado. Ela sofreu uma enorme pressão por causa de um relatório muito atrasado sobre o tratamento dado pela China à sua comunidade uigur. Ela confessa ao Inside Geneva que sofria “pressão diária” de quem queria publicá-lo e de quem não o queria.
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José Ayala Lasso: “Não devemos perder nossa fé”
Arbour acredita que qualquer pessoa que chegasse de outro planeta e lesse a declaração universal “pensaria que havia chegado ao céu”. Navi Pillay ressalta que nenhum dos 192 países que a assinaram se afastou dela.
Zeid Ra’ad al Hussein explica que “o que estamos fazendo é tentar fazer um ser humano melhor. Quem poderia disputar isso?” Bachelet é um pouco mais pragmática, “a Declaração Universal ainda é válida. Porque dá um padrão mínimo, de como podemos viver juntos.”
E Türk, lançando um olhar para esses 55 conflitos ao redor do mundo, diz que devemos “aprender com essas crises” e colocar os direitos humanos no centro de tudo o que fazemos. As Nações Unidas, como sempre, têm aspirações. Espero que, este ano, ela possa também ser inspiradora.
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Volker Türk: “Precisamos colocar os direitos humanos no centro de nossas vidas”
Adaptação: DvSperling
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