A história de quem escapou por pouco do nazismo e do terror do Vel d’Hiv
A França rememorou em meados de julho o 80º aniversário da operação Vel d'Hiv, a maior prisão em massa de judeus na França durante a Segunda Guerra Mundial. Edmond Richemond, que escapou por pouco da tragédia e fugiu para a Suíça, compartilha suas memórias.
Edmond Richemond, de 93 anos, foi a Sarcelles, perto de Paris, no sábado 16 de julho para os eventos que rememoram a operação Vel d’Hiv. Richemond se programou para comparecer à cerimônia apesar da onda de calor e apesar da onda de emoções. Neste mesmo dia, oitenta anos atrás, ao amanhecer, a polícia francesa sequestrou sua mãe, que ele nunca mais viu, e virou sua vida de cabeça para baixo.
Para entender a tragédia, é preciso voltar ao contexto de 1942. Em junho desse ano, Adolf Eichmann, que era o responsável pela logística da “Solução Final” – nome dado ao plano que previa o genocídio de todos os judeus dos países ocupados pela Alemanha Nazista – , e seu delegado na França, Theodor Dannecker, exigiram a deportação de 30.000 a 40.000 judeus que tinham entre 16 e 45 anos e viviam na França. A exigência incluía cerca de 20.000 judeus da região parisiense.
As autoridades francesas que colaboravam com as autoridades nazistas que ocupavam seu país e compartilhavam mais ou menos do antissemitismo alemão, se curvaram à exigência. Desde que, como resumiu o historiador Laurent Joly em seu recente livro La Rafle du Vel d’Hiv, esses judeus “fossem estrangeiros (ou de origem estrangeira) e que as forças francesas da ordem de Vichy atuassem com total autonomia.
Em suma, a polícia francesa aceitou cuidar de tudo. Naquele mês, o pai de Edmond, Rachmil Richemond, nascido Reichman na Polônia em 1897, foi assegurado por inspetores de polícia que as mulheres e crianças não corriam risco. Por isso, Rachmil e seu filho mais velho, Jack, deixaram sua casa na Rue Braille, no 12º distrito de Paris, em 1941 e se esconderam. Eles deixam Edmond e sua mãe, Rachel, sozinhos no apartamento.
O Inferno do Vel d’Hiv
No dia 16 de julho de 1942 a polícia tocou a campainha na casa dos Richemond. O oficial pediu à Sra. Richemond para preparar comida e roupas por três dias. Com 13 anos, Edmond fingiu que ia para o seu quarto recolher suas coisas mas fugiu para casa de seus vizinhos, os Richards. Rachel então foi levada sozinha ao Vélodrome d’Hiver (Velódromo de Inverno), um estádio coberto localizado perto da Torre Eiffel.
No total, 12.884 pessoas foram presas em dois dias, das quais mais de 8.000 foram enviadas para o Vel d’Hiv (o restante para o campo de Drancy). As condições dantescas no estádio foram descritas por uma jovem assistente social ao pai. “É uma coisa horrível, demoníaca (…) que aperta sua garganta e te impede de gritar (…) Quando você entra, a atmosfera rançosa te deixa sem fôlego e você se encontra neste grande velódromo preto com tanta gente amontoada. Os poucos banheiros estão bloqueados. Não há ninguém para liberá-los. Todos são forçados a se aliviar ao longo das paredes…”
O regime de Vichy nem sequer cumpriu sua promessa de entregar ao ocupante apenas “judeus estrangeiros ou apátridas”. Como assinala Laurent Joly, cerca de 3.000 crianças do Vel d’Hiv “tinham nacionalidade francesa, eram verdadeiros pequenos parisienses chamados Albert, Janine, Henri, Marie…”
Cerca de dois terços das pessoas procuradas escaparam do cerco policial. Entre as muitas explicações de Laurent Joly, está a relativa complacência dos agentes, que às vezes até avisam os judeus. Mas no 12º distrito, onde viviam os Richmonds, o comissário Boris era um defensor furioso do regime de Vichy. O militar dessa área esbanjou a taxa recorde de prisão de judeus no episódio: 61% foram sequestradoa pela polícia.
A louca travessia da fronteira
Após ter sua mãe levada, Edmond ficou um mês com os Richards, que anos depois ganharam o título de Justos entre as Nações. Em setembro, o menino foi buscado por organizações judaicas clandestinas – especialmente pela Colonie Scolaire – que se encarregavam de levar os jovens judeus para a “zona livre” e depois para a Suíça.
“De Annemasse, quinze crianças marcharam em direção a Genebra. Cantamos Maréchal nous voilà para evitar qualquer suspeita”, lembra Edmond Richemond. Seguimos pela estrada ao longo da fronteira vendo a cerca de arame farpado duplo de 2,5 metros de altura. As instruções que recebemos foram muito claras: atravessar a cerca de arame farpado na altura do grande carvalho.
Quando atravessaram a cerca, as crianças viram um soldado alemão se aproximando. “Vamos ser presos”, um disse. “Não!” gritou o menino mais novo. E emendou: “Olhe bem, ele usa uma cruz branca no uniforme”. O homem que se aproximava era um guarda de fronteira suíço com uma aparência bem alemã. “Quando chegamos na base militar de Veyrier, os homens estavam ouvindo um jogo de futebol. Que contraste e que alívio!”, relembra.
Edmond foi encaminhado para o campo de classificação de Cropettes na cidade de Genebra. Por lá passaram 2.526 pessoas, incluindo 1.622 refugiados judeus. Desse total, 80 foram rejeitados e mandados de volta. Em agosto de 1942, a Divisão de Polícia emitiu uma circular confidencial declarando que desertores, prisioneiros de guerra e outros militares, bem como refugiados políticos, deveriam ser recebidos na Suíça. No entanto, especificou que “aqueles que fugiram apenas por causa de sua raça, os judeus, por exemplo, não devem ser considerados refugiados políticos”.
A Suíça dos palácios
Quando criança, Edmond permaneceu na Suíça e passou por vários campos em condições “muito duras”. Em Varembé, “escrevi ao rabino-chefe de Berna pedindo-lhe que nos enviasse uma cesta básica. O resultado: recebemos cinco Bíblias e 5 francos suíços…”
Depois, transferido para o Hotel des Dents du Midi em Champéry, Edmond teve medo de ser enviado para um campo de trabalho. Ele então sugeriu ao gerente, Sr. Turini, que ele começasse a limpar os quartos. Encantado, o homem pediu ao menino que o encontrasse em sua casa, em Crans-sur-Sierre, para que fosse trabalhar na hotelaria do Hotel Golf. Era tudo o que o pequeno Edmond precisava.
“Foi mágico, extraordinário. Eu nunca tinha visto nada parecido na minha vida. Despreocupação, paz”, conta no belo filme Opa (avô), dedicado a ele e produzido por seu neto Simon Maller. “Encontrei reis, o Príncipe de Mônaco”, diz. “E o grande diplomata e historiador suíço Carl Jacob Burckhardt”.
“As filhas dele me ensinaram a esquiar. Surpreso, Burckhardt me chamou em seu quarto e me perguntou sobre meu passado.” O vice-presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) prometeu perguntar às autoridades alemãs sobre seus pais. Promessa que ele cumpriu.
Rumo a Auschwitz
No início de setembro, quando Edmond estava a caminho da Suíça e da liberdade, seus pais e irmão foram deportados do campo de Drancy e enviados para a Polônia ocupada. Rachmil e Jack foram detidos no campo de trabalho Blechhammer, de onde retornaram ao final da guerra. Rachel foi transportada para Auschwitz, onde morreu em uma câmara de gás em 9 de setembro.
Das 12.884 pessoas presas entre 16 e 17 de julho de 1942 na região de Paris, 12.400 foram deportadas. Apenas algumas centenas sobreviveram aos campos nazistas.
Muito mais tarde, por ocasião de seu casamento, Edmond Richemond retornou ao Hotel Golf. E teve o prazer de ser atendido por um funcionário antissemita, que lhe dissera em 1944: “Você está ocupando o lugar de um suíço!”
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“Muitos sobreviveram porque alguém decidiu fazer a coisa certa”
Adaptação: Clarissa Levy
(Edição: Fernando Hirschy)
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