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A loja que se transformou na embaixada da lusofonia

A Livraria Camões está apenas alguns passos distante da estação de trem de Genebra. swissinfo.ch

Há mais de duas décadas uma pequena livraria de Genebra é a única a oferecer na Suíça sucessos e clássicos da literatura lusófona. Ela é a concretização do sonho de um migrante português, que chegou a ser considerado louco ao abandonar um emprego lucrativo para concretizar uma paixão. Até que um dia o escritor português, e Prêmio Nobel, José Saramago foi conhecer a livraria pessoalmente. 

A embaixada literária de Portugal está localizada em uma pequena lojaLink externo na esquina da avenida James-Fazy e da rua Argand, quinhentos metros distante da estação de trem de Genebra, em um bairro repleto de pequenos comércios, moradias populares e tráfego intenso. A frase em francês “A cultura portuguesa ao alcance da mão”, colada no vidro em letras garrafais, convida os pedestres a conhecer um universo misterioso para a maioria dos suíços. “Galveias”, de José Luís Peixoto; “Serpentina”, de Mário Zambujal ou “Os velhos também querem viver”, do escritor angolano Gonçalo M. Tavares são alguns dos títulos exibidos na vitrina.

Esse é o reino de Antônio Pinheiro, um português de 60 anos originário do Porto e radicado no país há trinta e cinco anos. O corpo franzino, os cabelos embranquecidos e os óculos de leitura pendurados no pescoço dão a ele a imagem perfeita do livreiro que conhece a fundo o mundo das letras. Sentado atrás de um balcão coberto por pilhas de livros, jornais, revistas e um grande vaso com cravos vermelhos artificiais, ele aconselha um cliente por telefone. Entre as prateleiras de madeira de lei repleta de obras e estantes com peças de artesanato à venda, o ambiente fica ainda mais caseiro graças ao tapete persa, já escuro pelo tempo, e antigos cartazes pendurados na parede, com dobras nas pontas, retratando personalidades rebeldes como o trovador Pedro Barroso ou o compositor José Afonso.

Imigrante por acaso

A história de Pinheiro começou em março de 1980 ao chegar na Suíça. Formado como desenhista técnico de engenharia civil, ele havia acabado de ser dispensado do serviço militar e se preparava para começar a trabalhar. Foi quando um amigo lhe convidou para conhecer Genebra. “Queria ver o mundo e não exatamente emigrar”, conta. Ao acompanhar o amigo à empresa onde trabalhava como operário da construção civil, o patrão percebeu sua presença e lhe fez um convite direto. “Ele me perguntou o que sabia fazer e eu disse ‘tudo’. Então me mandou comprar o macacão de trabalho, um martelo de pedreiro e a colher da marmita.”

Ao aceitar a oferta, Pinheiro se juntou aos milhares de portugueses radicados em Genebra, cidade que, pela proximidade com a fronteira, e por ser francófona, tradicionalmente acolhe muitos imigrantes dos países ibéricos. Porém a população desconhecia essa nova cultura. “Quando cheguei nos anos 1980, fui ao banco e os funcionários achavam que era espanhol. Disse que era português e eles me perguntaram se não seria a mesma coisa”, ri o livreiro. Nos primeiros quatro anos tinha apenas o visto “A” no passaporte, de trabalhadores sazonais. Durante nove meses do ano podia trabalhar na Suíça e depois retornava a Portugal. Em 1984, o visto passou a ser o “B”, de residentes. Então se estabeleceu no país.

Graças à formação profissional, Pinheiro rapidamente trocou o trabalho de pedreiro para carpinteiro. Nas horas livres em Genebra gostava de frequentar um bar frequentado por outros migrantes portugueses. Os hábitos dessa comunidade não eram bem vistos por todos. “Naquela época os suíços tinham uma imagem ruim dos portugueses. Nos viam como rebeles e mal-educados. Era porque falávamos muitas cavalhadas e um francês rudimentar. Não era à toa que a polícia sempre controlava o restaurante”, lembra nostálgico.

Revolução traz intelectuais

A convulsão política em Portugal, que culminou em 25 de Abril de 1974, na chamada Revolução dos Cravos, trouxe uma nova leva de imigrantes lusitanos à Genebra, muitos deles oriundos dos círculos intelectuais. Nessa época, Pinheiro frequentava a Universidade de Trabalhadores de Genebra (Université Ouvrière de Genève), uma instituição criada em 1905 por intelectuais ligados ao Partido Socialista. Ela oferecia cursos de francês para trabalhadores estrangeiros, mas também aglutinava imigrantes interessados em cultura em debates e encontros. “Um dos voluntários que trabalhava lá era o físico Mariano Gago, na época cientista no Cern (n.r.: Organização Europeia de Pesquisa Nuclear)”, afirma Pinheiro, acrescentando que chegou até a fazer um curso de fotografia de moda. “Uma das minhas paixões”.

Apesar de ser um operário, Pinheiro tinha como principal hobby a leitura. Os livros que lia eram trazidos de Portugal, já que em Genebra os imigrantes só encontravam jornais em língua portuguesa. Foi quando surgiu a ideia de abrir uma livraria. “Era um sonho que alimentava há muito tempo, mas não tinha coragem de realizar. Meu medo era de perder o emprego seguro que tinha na Suíça”, lembra-se. Enquanto economizava dinheiro, procurava pela cidade um espaço onde o negócio poderia funcionar. “Finalmente encontrei uma lojinha próximo de um restaurante português em uma região bem central”. Em 1992, o português abriu a “Livraria Camões” no número 8 da avenida James-Fazy. O ex-patrão o chamou de louco, mas ofereceu ajuda. “Foi na marcenaria dele que fiz, nas horas livres, as estantes de madeira que estão até hoje na loja.”

Visita de Saramago

Começar uma livraria não é fácil, especialmente sem experiência ou um nome na área. “Tinha de pagar adiantado às editoras para trazer os livros de Portugal”, conta Pinheiro, lembrando que as primeiras obras no sortimento eram romances e os clássicos da literatura lusófona como Jorge Amado, Mia Couto e Fernando Pessoa. Os clientes surgiram e ele conseguia pagar as contas no final do mês. “O intelectual suíço sempre conheceu a literatura portuguesa. Quando abri a livraria, a maioria dos clientes eram suíços.”

Antônio Pinheiro, um português apaixonado pela literatura lusófona. swissinfo.ch

A insegurança inicial não lhe impediu de construir uma vida. Casado com uma açoriana, eles teve duas filhas, hoje com 27 e 25 anos. Uma é formada em geografia e a outra estuda medicina. As duas vivem em Genebra. Pinheiro também se naturalizou suíço. Questionado sobre essa opção, faz uma declaração de amor ao país de acolho. “Não escolhi ser português. Mas ser suíço, sim, foi uma escolha.”

Sete anos depois de ter aberto a Livraria Camões, ele decidiu transferi-la para outra loja com mais espaço, na mesma avenida. “Tive muita ajuda do Jean Ziegler de encontrar essa sala, que já foi sede do Partido Socialista)”, afirma. Além do amigo, um conhecido intelectual suíço, o livreiro cita outros famosos frequentadores como o escritor moçambicano Mia Couto e José Saramago. Esse último, escritor português e Prêmio Nobel, chegou até a inaugurar a nova sede. É uma história que Pinheiro lembra-se com orgulho.

“Eu já o conhecia e sempre convidava para visitar a livraria, nunca tinha tempo. Em 1998, quando ganhou o prêmio, me ligou e perguntou se não poderia passar para me ver. Saramago havia sido convidado pelo Parlamento Europeu e disse que poderia dar um pulinho à Genebra. Assim organizei sua estadia na cidade”, diz. Além de participar de um vernissage na Livraria Camões, o escritor português ainda deu uma palestra na Universidade de Genebra e encontrou a comunidade portuguesa. A visita foi um sucesso, apesar do ceticismo local. “Os suíços não gostavam de Saramago. Além de ser da esquerda, também ele havia declarado alguns anos antes de ganhar o prêmio que na Suíça não havia escritores.”

Hoje a Livraria Camões não é apenas um espaço para a literatura lusófona, mas também distribui livros a várias bibliotecas na Suíça. Pinheiro viaja dozes vezes por ano à Portugal para visitar as editoras. Além da livraria, também já abriu um café literário nas proximidades, mas que hoje funciona de forma independente. Em uma sala vizinha também abriu uma pequena escola de português voltada para crianças e adultos.

Frente a pergunta se a internet não tornará as livrarias obsoletas, o português não titubeia. “Não acho que o livro eletrônico substitua o papel. Um cliente me ligou ontem para dizer que gostaria de substituir as suas versões eletrônicas pelas de papel. Livro é algo para se tocar”, afirma, enquanto passa o dedo na capa lustrosa do “A Chave de Salomão”, o recém-chegado best-seller do escritor José Rodrigues dos Santos, conhecido por alguns como o “Dan Brown português”.

Portugueses na Suíça

Segundo as estatísticas mais recentes do Departamento Federal de Estatísticas, a população residente permanente na Suíça chegou a 8.237.700 habitantes no final de 2014. Dessas, 263 mil eram portugueses.

A população estrangeira mais importante é composta de italianos (15,3%), seguidos por alemães (14,9%), portugueses (13,1%) e franceses (5,8%).

Em 2014, a Suíça registrou 187.300 imigrações, uma baixa de 3,1% em relação a 2013. Dentre esses imigrantes, 26.200 eram de nacionalidade helvética e 161.1000 de nacionalidade estrangeira. Os principais grupos de estrangeiros que chegaram na Suíça são alemães (24.700), italianos 

(19.000), portugueses (15.200), franceses (14.500) e espanhóis (8.100). 

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