Apoiar a vida em meio ao caos: dificuldades da ajuda humanitária em zonas de conflito
A maratona anual da primavera da ONU para o Conselho de Direitos Humanos está chegando ao fim. Como sempre, com muitas pautas em jogo, é difícil para os jornalistas saber por onde começar.
Ucrânia, Haiti, Sudão do Sul, Mianmar e dezenas de outros conflitos. Mas um relatório em particular chamou minha atenção, em parte porque eu cobri todos os painéis desde o início, há mais de uma década: o último relatório da Comissão de Investigação sobre a Síria.
Esses relatórios, mais de duas dúzias agora no total, documentaram anos de violações horríveis na Síria, que envolvem muitos crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Mas, desta vez, além de examinar os contínuos abusos dos direitos humanos relacionados ao conflito, os investigadores da ONU denunciaram o que consideram ser uma “falha” na ajuda prestada aos sírios afetados pelo terremoto de fevereiro.
“Os sírios, por boas razões, sentiram-se abandonados e negligenciados por aqueles que deveriam protegê-los nos momentos de maior desespero”, disse o presidente da comissão, Paulo Pinheiro. Ele incluiu a ONU em sua crítica, sugerindo que não era necessário esperar a permissão do Conselho de Segurança da ONU para enviar ajuda.
Quando ouvi isso, um pequeno elemento de cinismo jornalístico surgiu. O fato de o noroeste da Síria ter recebido muito pouca ajuda internacional naquela primeira semana crucial depois do terremoto era bem conhecido e havia sido amplamente divulgado. Pinheiro, investigador da ONU experiente que é, também é sagaz ao pautar jornalistas com uma boa manchete, certamente conseguiu chamar atenção para sua denúncia.
Lembrou-me que a questão do fornecimento de ajuda humanitária em zonas de conflito tende a ser muito mais complicado do que as pessoas de Genebra – e aqui, muitos jornalistas incluídos – realmente imaginam. Então, é necessário olharmos com cuidado ao mergulhar no mundo complexo, bagunçado e imprevisível da entrega de ajuda humanitária.
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Soberania, permissão e outros conceitos de dignidade
Vamos nos lembrar: o debate em torno das missões de ajuda à Síria começou em torno da fronteira muitas vezes contestada da Turquia. Onde antes havia quatro passagens, na época em que o terremoto ocorreu, a entrada foi reduzida para apenas uma, depois que a Rússia, aliada da Síria, argumentou no Conselho de Segurança da ONU que, uma vez que o governo sírio estava agora de volta ao controle da maior parte do país, a ajuda poderia ser entregue via Damasco.
Então, reabrir mais passagens de fronteira exigiria uma resolução do Conselho de Segurança. Mas será mesmo? Marco Sassoli, professor de direito internacional da Universidade de Genebra, questiona isso.
“A ONU, que tem funcionado como um clube, representa o interesse de seus membros e, portanto, considera que não pode fazer nada no território de um Estado membro sem o consentimento deste – segundo dizem. Mas, Sassoli argumenta que as entidades que fornecem apoio humanitário na Síria são principalmente ONGs atuando em parceria com a ONU que não precisam de permissão para atuar, desde que a “parte receptora”, neste caso, as pessoas do noroeste da Síria, concordem com a entrega da ajuda.
Dilemas da atuação territorial
Mas como estabelecer uma interpretação do direito internacional que realmente proporcione segurança jurídica para o apoio aos territórios? Sassoli acredita que o que pode fazer a diferença no processo de negociação é informar as autoridades territoriais – inclusive aquelas que podem estar impedindo a entrega da ajuda – que, legalmente, as agências de ajuda não precisam do seu consentimento, mas ainda assim podem se esforçar para discutir os termos do apoio humanitário.
Alguém que sabe muito sobre tais negociações é Thaer Allaw, do Centro de Competência de Negociação Humanitária de Genebra. Trabalhando em uma parceria entre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, o Programa Mundial de Alimentos da ONU e a Agência da ONU para Refugiados, seu papel é apoiar os trabalhadores humanitários compartilhando e aprendendo com as experiências em negociações humanitárias.
Allaw concorda que as leis e princípios internacionais podem ser úteis nos terrenos em conflito, mas, com sua longa experiência em tentar negociar projetos humanitários que podem, à primeira vista, atrair apoio universal, ele sabe que não é tão fácil assim. Ele aponta para os longos “meses” que levou para negociar um projeto médico para apoiar crianças feridas por minas terrestres e diz à Inside Geneva: “achamos que temos uma boa causa e que esses princípios humanitários são universais. E então, quando você enfrenta a realidade, eles não são.”
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Exceção geral
Jan Egeland, que presidiu o grupo de trabalho humanitário da ONU para a Síria durante o período mais sombrio do longo conflito, acredita que uma “exceção geral” para a ajuda humanitária pode ser o caminho a seguir. “Sou um fundamentalista da necessidade de ir diretamente ao encontro das vítimas, das pessoas que precisam”, diz. ” Nem que seja preciso fazer um caminho transfronteiriço, atravessando linhas, montanhas, desertos para encontrar a rota mais curta.”
Com sua longa experiência em trabalho humanitário, Egeland sabe muito bem que não é apenas na Síria onde a chegada de ajuda tem sido obstruída. De Bósnia ao Sri Lanka, Etiópia a Mianmar, a ajuda humanitária pode ser liberada, negada ou até mesmo roubada pelas partes envolvidas no conflito, dependendo se acharem caminhos para o apoio internacional servir aos seus próprios interesses. Além disso, novas leis de combate ao terrorismo em democracias ocidentais também às vezes limitam a capacidade de agências de ajuda financeira executarem trabalhos humanitários.
Para Allaw, o segredo para uma entrega bem-sucedida de ajuda muitas vezes está relacionado à empatia, mesmo com aqueles com quem ele admite fundamentalmente discordar. “Mesmo no meio dos piores fronts, há essa parte humana que sempre precisamos lembrar. Seja empático. Vemos uma magia acontecer quando somos empáticos com as pessoas que discordam de nós”.
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Adaptação: Clarissa Levy
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