As democracias podem resistir às teorias de fraude eleitoral?
Contra todas as probabilidades, ambos os candidatos aceitaram o resultado das eleições presidenciais no Brasil. Mas uma melhor alfabetização digital e instituições eleitorais robustas podem não ser o suficiente para enfrentar a ‘grande mentira sobre eleições roubadas’, argumenta o correspondente da SWI swissinfo.ch para a democracia global.
Com todos os 120 milhões de votos contados, o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil (TSE) anunciou em 31 de outubro que Luiz Inácio Lula da Silva havia ganhado as eleições com 50,9% dos votos, contra 49,1% do presidente em exercício, Jair Bolsonaro. Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do TSE, declarou que as eleições foram uma grande “vitória da democracia, da sociedade brasileira e dos eleitores”.
Embora Bolsonaro não tenha admitido oficialmente a derrota e parabenizado o vencedor, ele autorizou o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, a iniciar a transição dos poderes presidenciais. O presidente eleito, Lula, comentou no TwitterLink externo: “Tenho certeza que teremos um excelente trabalho nesta transição, construiremos um governo para todos os brasileiros”.
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Uma transição pacífica e uma mudança de poder sem contestação no Brasil – a quarta maior democracia do mundo – poderiam estabilizar um mundo em crise, no qual votações populares devidamente conduzidas, tanto em eleições quanto em referendos, têm sido cada vez mais questionadas dentro de seus próprios países?
Projeto “Protegendo a Democracia”
Um dos primeiros casos de eleições contestadas foi a disputa presidencial dos Estados Unidos entre o então governador George W. Bush e o vice-presidente Al Gore há mais de vinte anos. “Desde então, uma parte dos conservadores e republicanos vem falando de fraudes eleitorais generalizadas, apesar de todos os dados confiáveis apontarem o contrário”, disse Richard L. Hasen à SWI swissinfo.ch.
Hasen é professor de direito na Universidade da Califórnia em Los Angeles e dirige o “Safeguarding Democracy Project” [Projeto Protegendo a Democracia], que estuda “a grande mentira sobre eleições roubadas”, um “marco distintivo da presidência de [Donald] Trump”, segundo o estudioso. Essa teoria tem o objetivo tanto de “incitar a base republicana contra os democratas” quanto de estabelecer “as bases para aprovar leis que dificultem o registro e o voto das pessoas”, acrescenta.
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“Foi a democracia brasileira que ganhou!”
Curiosamente, as eleições presidenciais de 2020 foram consideradas “as mais seguras da história americanaLink externo” pela Agência de Segurança de Infraestrutura e Cibersegurança (CISA, na sigla em inglês), a autoridade competente que pertence ao Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos.
Apesar de sua derrota, Trump continuou alegando que a eleição lhe foi “roubada”, provocando assim o ataque de 6 de janeiro de 2021 contra o prédio do Capitólio dos Estados Unidos por parte de seus apoiadores. O ataque resultou na morte de seis pessoas e mais de 130 policiais foram feridos.
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De acordo com Hasen, o mito da ‘grande mentira’ está longe de acabar. “Nas eleições de meio mandato, vemos muitos candidatos republicanos apoiando abertamente a narrativa da ‘grande mentira sobre eleições roubadas’”, disse ele. Isso sugere que a liberdade e a legitimidade da democracia eleitoral estão sendo cada vez mais politizadas e expostas à polarização partidária. Uma pesquisa feita recentemente pela CNNLink externo mostrou que cerca de metade dos americanos (53% entre republicanos e 49% entre democratas) acredita que é pelo menos um pouco provável que, nos próximos anos, autoridades consigam revogar os resultados de uma eleição americana caso seu partido não vença.
Sem “Tribunal da Democracia” nos EUA
A estrutura descentralizada dos Estados Unidos resulta em fragilidades institucionais. Ao contrário do Brasil, por exemplo, os EUA não possuem nenhum órgão comparável ao Tribunal Superior Eleitoral, uma espécie de “Tribunal da Democracia”.
Hansen identifica ainda outra fragilidade: a propagação viral de desinformação nas redes sociais. “Precisamos de medidas legais que criminalizem a difusão de informações falsas sobre como, quando ou onde as pessoas devem votar”, argumenta.
Apesar disso, o pesquisador é contra uma regulamentação rigorosa das redes sociais, como a que ocorre na Alemanha, onde a lei sobre a aplicação de normas nas redes regulamenta todas as plataformas com mais de dois milhões de usuários. A lei alemã estipula que tais plataformas devem garantir que as denúncias sejam cuidadosamente examinadas e que todo conteúdo ilegal seja removido dentro de 24 horas. Em vez disso, Hasen vê uma necessidade mais ampla de uma “ação coletiva coordenada contra qualquer tentativa de subverter os resultados eleitorais”.
Essa proposta foi apoiada não apenas por acadêmicos brasileiros antes das eleições, mas também por especialistas na Suíça.
“Por trás dessas suspeitas constantes de fraude eleitoral, estão escondidos os múltiplos esforços para restringir o direito de voto em geral”, diz Sina Blassnig, professora assistente do Departamento de Pesquisa em Comunicação e Mídia da Universidade de Zurique. Para ela, os sistemas brasileiro e americano, com seus regimes presidenciais, são “muito mais suscetíveis a campanhas de ‘eleições roubadas’” do que o sistema eleitoral suíço de representação proporcional.
As pequenas ‘grandes mentiras’ na Suíça
Na Suíça, as pequenas ‘grandes mentiras’ são mais frequentemente relacionadas a referendos controversos, explica Blassnig. “Antes do referendo [sobre as medidas contra a Covid-19] do outono passado, tais declarações circulavam esporadicamente nas redes sociais.” Essa informação foi confirmada por Beat Furrer, porta-voz da Chancelaria Federal, a mais alta autoridade eleitoral da Suíça. “No período que antecedeu a votação da lei sobre Covid-19 em 2021, houve tentativas (principalmente através das redes sociais) de levantar dúvidas sobre a condução correta das votações”, declarou ele.
“O efeito geral desses esforços permaneceu limitado. As queixas que foram apresentadas após a votação, quando levadas em consideração, foram descartadas pelas autoridades competentes”, disse Furrer à SWI por e-mail. Ele também acrescentou que tais queixas são feitas repetidamente para tentar influenciar a opinião pública sobre a questão votada.
A Chancelaria Federal não mantém estatísticas sobre o número de queixas apresentadas. Como explicou Andreas Glaser, codiretor do Centro para a Democracia em Aarau (ZDA), à SWI em 2019, há uma escassez de dados sobre a manipulação de eleições na Suíça.
Ao mesmo tempo, o fato de haver tantas votações populares na Suíça, sobre uma variedade tão grande de temas, ajuda a explicar por que o mito da eleição roubada não conseguiu se estabelecer no país até agora, observa Blassnig.
Apenas em escala federal, as eleitoras e eleitores suíços puderam se manifestar mais de 100 vezes ao longo dos últimos dez anos.
Para garantir que a situação não se agrave, a pesquisadora de Zurique recomenda que sejam feitos maiores investimentos voltados para a educação e para os meios de comunicação. “Isso inclui a utilização competente das mídias digitais e a existência de uma forte comunicação de serviços públicos”, diz Blassnig.
Ela duvida, contudo, que a Suíça regulamente suas redes sociais de forma rigorosa, como o que está sendo debatido atualmente pela União Europeia. “Nessa questão, estamos tradicionalmente entre os EUA, que são permissivos, e a UE, que é mais restritiva”, disse Blassnig. A Suíça conta mais com o julgamento individual dos usuários do que o resto da Europa, mas menos do que os Estados Unidos.
Adaptação: Clarice Dominguez
Adaptação: Clarice Dominguez
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