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Como produzir um chocolate sem amargor na consciência

Trabalhadores abrindo cacau
Funcionários da Fazenda Vera Cruz separam as sementes do cacau - cada um contém de 20 a 50 sementes. A Vera Cruz é uma das produtoras de cacau que procura ao mesmo tempo cultivar o fruto sem prejuízo ao ecossistema local, e um preço de venda que garanta um sustento decente do negócio e dos trabalhadores. La Flor AG 2018

A cadeia produtiva do chocolate é repleta de desequilíbrios. Enquanto de um lado há um pequeno grupo de multinacionais produtoras de chocolate que dominam o mercado, na outra ponta existem milhões de pequenos agricultores que não conseguem viver da produção do cacau. Na tentativa de equacionar tal desproporção alguns pequenos e médios produtores artesanais suíços têm investido no comércio direto com agricultores no Brasil, Peru, Colômbia, entre outros. O volume de negócio é baixo, mas tais iniciativas podem ser uma inspiração para o resto da indústria. 

Pequenos e médios fabricantes de chocolate suíços estão apostando num relacionamento mais estreito e participativo com os agricultores do cacau, em países como Brasil, Peru, Colômbia e Gana. Essas iniciativas do chamado comércio direto não são totalmente novas, mas vêm crescendo nos últimos anos e surgem como uma tentativa de buscar novos modelos de negócio para uma cadeia produtiva repleta de desequilíbrios, e insustentável.

Essas iniciativas fazem parte do chamado movimento “bean to bar”, ou seja, um sistema de produção do chocolate em que a matéria-prima é de melhor qualidade; assim, a origem do cacau se torna relevante, e a produção é artesanal, de menor escala. Em muitos casos, a sustentabilidade de toda a cadeia produtiva é fundamental e levada a sério.

A chocolatier La Flor , com sede em Zurique, é um exemplo. O projeto nasceu em 2018 da necessidade de quatro empreendedores suíços de buscar uma forma mais sustentável de produção do chocolate, que respeitasse o ambiente e oferecesse condições dignas às pessoas envolvidas em todas as etapas da produção. Para isso, o modelo do La Flor tem como base o relacionamento estreito com produtores do cacau. Um desses parceiros é a fazenda bio certificada Vera Cruz, no sul da Bahia, Brasil, que fornece as variedades de cacau Forastero e Trinitário.

Ali, o cacau é produzido pelo método cabruca em que as árvores do cacau crescem sob a sombra da floresta nativa, da Mata Atlântica no caso, havendo uma integração maior com flora e fauna local e, portanto, não havendo necessidade de desmatamento. O desflorestamento é um desafio para muitos países produtores de cacau, como Gana e Costa do Marfim, na África, onde a mata local tem sido destruída para se plantar o cacau. Na Costa do Marfim, por exemplo, estima-se que 80% da floresta nativa tenha desaparecido desde 1960 – e uma das causas é a plantação de cacau.

A fazenda Vera Cruz, que é de propriedade de um suíço, trabalha com o sistema de agrofloresta, combinando o cacau com as plantações de açaí e pupunha. Como safra secundária ali se cultiva baunilha, pimenta, cravo e guaraná. “Em nosso caso, não existe intermediário. Uma vez por ano, vamos ao Brasil e visitamos as plantações”, explica Ivo Müller, um dos fundadores da La Flor Chocolate, e filho de Roland Müller, que é proprietário da Fazenda Vera Cruz no Brasil juntamente com Jennifer Tibbaut.

Garantir uma vida decente aos produtores e suas comunidades e preservar o meio ambiente, valorizando a biodiversidade local, faz parte do DNA da La Flor, e de algumas outras pequenas e médias empresas suíças, que se propõem a fazer diferente. Tanto que o time da La Flor paga pelo cacau brasileiro mais do que dobro daquele que é cobrado em bolsa. O cacau, em geral, é comercializado na Bolsa Mercantil de Nova York e na Intercontinental Exchange em Londres.

O preço pago aos agricultores pelo cacau é um dos pontos nevrálgicos da sustentabilidade da cadeia produtiva do chocolate, principalmente no caso dos grandes compradores de cacau e produtores de chocolate, que dominam a indústria. 

Pelo fato da maioria do mercado estar nas mãos de cerca de meia dúzia de multinacionais, criou-se uma assimetria abissal entre essas gigantes e milhões de pequenos agricultores, que, em sua maioria, não têm acesso à informação de mercado, novidades de produção e tecnologia. Eles têm, portanto, pouquíssima capacidade de negociar preços com essas grandes organizações. Resultado: muitos agricultores não conseguem viver dignamente do cacau que plantam – vivem abaixo da linha da pobreza, em contextos sociais críticos. Em alguns países da África ainda se registra casos de trabalho infantil e tráfico humano.

No Brasil

No Brasil, que já foi um importante fornecedor para o mundo, o cacau começou oficialmente a ser plantado em 1679, inicialmente no Pará, e em 1746 o francês Luiz Frederico Warneau deu a Antonio Dias Ribeiro, fazendeiro do sul da Bahia, algumas sementes do cacau, introduzindo o cultivo na região.  Foi no Sul da Bahia que o cacau viveu seu apogeu.

Área de secagem da Fazenda Vera Cruz
Área de secagem da Fazenda Vera Cruz: depois de separadas do fruto, as sementes de cacau são fermentadas for 4 dias. Em seguida, são levadas para o processo de secagem ao sol, que pode durar até uma semana dependendo das condições meteorológicas. La Flor AG 2018

No período de 1986 até 1990, o Brasil ocupou o lugar de segundo maior produtor mundial do cacau. Com a expansão da doença vassoura-de-bruxa no final da década de 80, as plantações foram dizimadas. Hoje, o Brasil ocupa o sétimo lugar Link externono mundo, atrás da Costa do Marfim, Gana, Indonésia, Equador, Camarões e Nigéria, de acordo com a Organização Internacional do Cacau (ICCO) e Euromonitor International.

A produção de cacau na região do Pará vem crescendo significativamente nos últimos anos e já superou à do Sul da Bahia. A estimativa da Organização Internacional do Cacau é de que a produção brasileira aumentará a uma taxa de 2,6% ao ano entre a safra de outubro de 2018/19 e a safra 2022/23. Aos poucos, novas iniciativas têm buscado o desenvolvimento de novas tecnologias e o apoio ao produtor.

No entanto, os desafios dos agricultores do Sul da Bahia não são poucos. Segundo o professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) José Olimpio de Souza Júnior, não se trata apenas da vassoura-de-bruxa, mas de questões como as mudanças climáticas (com longo períodos de seca seguidos de excesso de chuva), o endividamento agrícola, a baixa produtividade e o baixo uso de tecnologia, que afetam diretamente a capacidade de desenvolvimento das fazendas. Em alguns casos, o nível de endividamento é tão alto que o proprietário acaba sendo obrigado a se desfazer do negócio.

Chocolate de origem

Entre aqueles que estão conseguindo sobreviver há um grupo de fazendeiros que tem focado sua produção num sistema menos extrativista e alinhado à valorização da biodiversidade local. Alguns desses agricultores também têm optado por produzir o próprio chocolate, apostando na demanda do chocolate de origem.

Entrada da fábrica da chocolataria
Entrada para a área de produção da La Flor, que tem sede em Zurique. A empresa divide o espaço da antiga padaria Buchmann, agora conhecido como DaProvisorium, com outros negócios das áreas de alimentação, gastronomia, cultura e arte. Lukas Lienhard

Ainda que esse último grupo seja pequeno, e opere com volumes menores, essa estratégia tem sido adotada e parece ganhar novos adeptos no Brasil também. Na região do Sul da Bahia, novas marcas têm surgido nos últimos anos. Mais de 40 marcas da região foram apresentadas e comercializadas no Chocolat Festival, realizado em abril deste ano em São Paulo. 

Há ainda quem combine o cacau com o turismo. A fazenda Yrerê, em Ilhéus, é um exemplo: ali, o turista visita uma pequena plantação, ganha noções básicas sobre a plantação e sobre o processo de preparo do grão. Depois pode degustar um suco de cacau, os nibs (sementes fermentadas, secas, torradas e trituradas) de cacau e, se quiser, comprar o chocolate da fazenda.

Os consumidores

Independente da qualidade, o chocolate é um produto cada vez mais apreciado pelos consumidores mundo afora. Na Suíça, é líder. O país é o maior consumidor per capita do mundo, com 8,8 quilos por pessoa, em 2017, e para atender tamanho apetite importou cerca de 43 mil toneladas de cacau no mesmo ano. O brasileiro consume 2,5 quilos (per capita) de chocolate ao ano, segundo Ubiracy Fonseca, presidente da Abicab, Associação Brasileira de Chocolates, Amendoim e Balas.

Uma parte desses consumidores quer saber o que está por trás – e por dentro – das deliciosas barrinhas, bombons e trufas que degustam com frequência. Esse tem sido o público alvo da La Flor e de outros pequenos produtores de chocolate na Suíça, como Choba Choba, que produz chocolate com o cacau da Amazônia peruana, e Garçoa, que produz chocolate com cacau do Peru, Gana e India.

Trata-se também de um nicho de mercado, composto por consumidores que têm uma certa consciência do fato de que o preço real do chocolate – ou seja, aquele que é capaz de dar uma vida digna aos agricultores do cacau – tende a ser maior do que o cobrado por muitas marcas. É um público que tem condições de pagar mais pelo produto final.

No entanto, fica difícil prever qual o impacto do “bean to bar” na grande massa de consumidores. O que já está acontecendo é que, em geral, onde quer que seja, a demanda por maior transparência de informação cresce, seja em relação aos ingredientes presentes nas barras e bombons de chocolate, assim como em relação aos impactos ambientais e sociais desta cadeia produtiva. 

As grandes empresas produtoras de chocolate têm desenvolvido várias parcerias e iniciativas nos últimos anos para melhorar seus processos, eliminar a pobreza e o trabalho infantil de sua cadeia produtiva, atender as necessidades dos agricultores. Mas os desafios não são poucos.

O “bean to bar”, com sua diversidade de modo de produção, parcerias inovadoras, respeito ao agricultor e à terra, pode servir de inspiração para a grande indústria fazer melhor.

barra de chocolate
Lukas Lienhard

Os Suíços na lavoura do cacau brasileiro

Não é de hoje que suíços estão presentes no Sul da Bahia atuando nas plantações de cacau.  Marc Nüscheler, 68 anos, que nasceu em Lausanne e cresceu na região de Zurique, é um deles. Ele é produtor de cacau na região há 37 anos e mais recentemente coordenador da Cooperativa Cabruca, uma cooperativa de produtores orgânicos no Sul da Bahia. A Cooperativa, fundada em 2000, conta com 32 agricultores, que focam seu trabalho na valorização da produção orgânica e agroflorestal associada à conservação da Mata Atlântica. Além de Nüscheler, a cooperativa conta com mais dois fazendeiros suíços.

Como forma de incentivar a diversificação dos sistemas agroflorestais, seus cooperados cultivam também palmeiras como açaí e pupunha; especiarias como pimenta-do-reino, cravo e baunilha; e frutíferas como o cupuaçu, graviola, goiaba, banana e guaraná.

Entre os clientes da Cabruca estão as empresas suíças Felchlin e Stella Bernrain.  Na hora de negociar com esses clientes, Nüscheler conta que facilita ter origem suíça, afinal falam a mesma língua e têm os mesmos pressupostos culturais.

Nüscheler explica que a agricultura é para quem gosta de fortes emoções. Apesar do avanço significativo que os cooperados vêm alcançando nos últimos anos, ainda é um desafio manter-se financeiramente somente da venda do cacau. O processo de certificação orgânica exige um controle permanente e a necessidade de documentar tudo. Mas, segundo ele, trata-se de um controle de qualidade, que tem aberto as portas para mercados mundo afora.

 

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