Como lidar com a ajuda ao desenvolvimento em casos de golpe de Estado
Doadores enfrentam um dilema: como ajudar países em desenvolvimento que passam por golpes ou são governados por regimes corruptos? Cortar a ajuda prejudica a população. Se continuarem a pagar, podem manter governos problemáticos no poder e prolongar guerras. Como a Suíça lida com isso?
Após o golpe militar em Mianmar em fevereiro de 2021, a União Europeia congelou seus fundos de ajuda ao desenvolvimento. Pouco tempo depois, a Suíça também parou com seus pagamentos. A Alemanha suspendeu a cooperaçãoLink externo para o desenvolvimento com Mianmar muito antes do golpe – porque o Estado birmanês não protegia a minoria muçulmana Rohingya.
Sobre o significado do golpe militar em Mianmar para projetos de cooperação e desenvolvimento internacional, a SRF reportou no programa de rádio Echo der Zeit (Eco do Tempo), em 15 de fevereiro de 2021:
Mas será possível suspender a ajuda ao desenvolvimento porque um governo duvidoso chega ao poder? Pode-se fazer um país receptor da ajuda ao desenvolvimento respeitar os direitos humanos, condicionando o pagamento? Ou a interrupção desta causa grande sofrimento à população? Os países europeus não estão sempre de acordoLink externo sobre estas questões.
Países tratam o assunto de maneira diferente
A Bélgica, por exemplo, suspendeu partes de seu programa de ajuda ao desenvolvimento a Ruanda em 2015, por causa de violações dos direitos humanos. Quando Uganda endureceu as penas para a homossexualidade em 2014, a Dinamarca e a Holanda suspenderam seus programas bilaterais de ajuda. A França está mais contida, fazendo isso somente após golpes de Estado.
Motivos para interromper a ajuda ao desenvolvimento
– Enviar um sinal claro ao país receptor
– Exercer pressão – semelhante a sanções
– Considerações de políticas internas no país doador
– Para não prejudicar a imagem da ajuda ao desenvolvimento
– A realização das metas é questionável
– Considerações de segurança com relação ao pessoal
A China escolhe uma abordagem completamente diferente: o país não interfere na política interna dos países beneficiários. Isto leva a mudanças no equilíbrio de poder: “Pela primeira vez, os países em desenvolvimento podem escolher se preferem cooperar com países ocidentais ou com a China”, diz Fritz Brugger, pesquisador do Centro para Desenvolvimento e Cooperação (NADEL, na sigla em alemão) da Escola Politécnica Federal de ZuriqueLink externo (ETH). Ele mesmo já trabalhou na cooperação para o desenvolvimento por muitos anos.
Certa arbitrariedade nas decisões suíças
E como a Suíça lida com a questão? Na Suíça não há base legal para suspender a ajuda ao desenvolvimento após golpes de Estado, violações dos direitos humanos ou comportamento não cooperativo. O Conselho Federal (governo federal da Suíça) decide a seu critério como julgar em cada situação.
“Há definitivamente uma certa margem de manobra”, diz Brugger. Mas mesmo a decisão sobre em quais países será fornecida ajuda ao desenvolvimento é arbitrária, diz ele; afinal, a Suíça não pode estar presente em todos os países do mundo.
“Tais decisões do Conselho Federal são sempre problemáticas. Este último poderia pelo menos informar ao Parlamento quando estas devem ser tomadas, pois raramente elas têm que acontecer rapidamente”, diz a especialista em política externa Yvette Estermann, do Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla em alemão). Embora informar antecipadamente o Parlamento federal através do Comitê de Relações Exteriores possa prolongar o processo de tomada de decisão, isso permitiria uma solução sustentável e evitaria críticas ao Conselho Federal.
Por outro lado, Fabian Molina, que é especialista em política externa e membro do Partido Social Democrata (SP), acha que é correto que o governo decida sozinho. “Especialmente no caso de um golpe isso tem que acontecer rapidamente”, diz ele. Além disso, no caso de Mianmar, tratou-se apenas de uma decisão temporária. “Se a Suíça quiser se retirar definitivamente de um país, o governo deve consultar as comissões de política externa do Parlamento.”
De acordo com Brugger, a dimensão interna não deve ser subestimada nas decisões oficiais. Cálculos políticos também desempenham um papel no processo de considerações: “Entre outras coisas, o Conselho Federal quer evitar que aquelas forças que já estão céticas sobre a ajuda ao desenvolvimento utilizem a situação para colocar em questão a ajuda ao desenvolvimento como um todo.”
Um assassinato leva à suspensão da ajuda ao desenvolvimento
O fato de que os motivos políticos internos podem levar ao cancelamento da ajuda ao desenvolvimento é ilustrado pelo exemplo de Madagascar: em 1996, o trabalhador suíço de ajuda ao desenvolvimento Walter Arnold foi estrangulado em Antananarivo, a capital do país. A consternação na Suíça foi grande, o governo teve que encontrar uma “pílula tranquilizante” para acalmar os ânimos.
E ele o encontrou: Como as autoridades do local não cooperaram na solução do crime, o país helvético fechou o escritório da Agência Suíça para o Desenvolvimento e Cooperação (DEZA, na sigla em alemão) em Antananarivo, e retirou Madagascar de sua lista de países prioritários.
Em retrospectiva, esta decisão é explosiva, para não dizer chocante: nesse meio tempo há suspeitasLink externo de que Arnold foi morto por ter condenado seus colegas suíços por apropriação indevida de fundos de ajuda ao desenvolvimento – entre outras coisas, o então vice-diretor do DEZA é acusado de ter administrado um bordel com fundos suíçoLink externos. Em 2017, a Procuradoria Geral da Suíça reabriu o casoLink externo.
É possível, portanto, que o assassinato e a investigação descuidada tenham tido mais a ver com a Suíça do que com Madagascar. No entanto, Madagascar não se tornou mais um país prioritário. Mas, três anos após a retirada, a Suíça estava pelo menos novamente presente com um programa especial.
Prolongamento de guerras com ajuda ao desenvolvimento
Segundo Brugger, é óbvio que a ajuda ao desenvolvimento deve ser suspensa na Birmânia: “Por causa do golpe militar, é até mesmo questionável se a Suíça e Mianmar poderiam alcançar as metas acordadas em conjunto.”
É mais difícil, diz ele, em países onde há mudanças insidiosas em direção a regimes autoritários. Por exemplo, em Moçambique, onde ex-combatentes da libertação formaram um regime altamente corrupto que controla a política, a administração e a economia. “Em Moçambique, os países doadores acham difícil tomar uma posição clara”, disse Brugger. “Eles muitas vezes não refletem o suficiente sobre como seu dinheiro está ajudando a manter o governo corrupto no poder.”
Fabian Molina não vê tal dilema. “A Suíça não trabalha com governos, mas com a sociedade civil.” Há uma dependência das agências locais, mas a Suíça trabalha principalmente com a população e as ONGs.
A questão da segurança é mais difícil: “As guerras civis ou a repressão podem ser tão perigosas para o pessoal de ajuda ao desenvolvimento, que você tem que se perguntar se o trabalho ainda pode ser feito. A maioria dos países receptores tem problemas com o Estado de Direito ou com a democracia, diz ele, o que não é motivo para se retirar.
De acordo com Brugger, a interrupção da ajuda ao desenvolvimento pode contribuir de alguma forma para a construção de uma pressão por uma mudança positiva. Mas ele aponta: “Alguns países beneficiários fazem reformas (apenas) no papel para conseguir dinheiro novamente.” Isto não resolve o problema.
Yvette Estermann, que também é especialista em política externa, dá um passo além: em sua opinião, a Suíça só deveria se engajar na cooperação para o desenvolvimento com países cooperativos. Ela se refere ao comportamento cooperativo não apenas em termos da situação dos direitos humanos e da democracia no país beneficiário, mas também em termos dos interesses suíços: por exemplo, aqueles que não aceitam a readmissão de requerentes de asilo rejeitados não devem receber fundos de ajuda ao desenvolvimento. Mas Estermann também aponta: “Uma coisa é clara: ficar e manter relacionamentos, em vez de rompê-los, é a melhor maneira de exercer uma influência permanente e efetiva no local.”
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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