Antes da burca ou da barba longa, o diálogo
Uma pergunta levantada em muitos países: como prevenir a radicalização de jovens muçulmanos? Em Bienne, no cantão de Berna, uma mulher pretende dar a resposta ao dilema através de um projeto único na Suíça.
“Estou na Suíça faz vinte anos e nunca aconteceu comigo nada parecido!”, afirma Naïma Serroukh, ainda visivelmente abalada. Ela participava de um colóquioLink externo sobre a hostilidade sofrida pelos muçulmanos, organizado pela Comissão Federal contra o Racismo (CFR), na Universidade de Friburgo. “Pela primeira vez, eu vi a polícia revistar as pessoas na entrada de uma sala de aula universitária”. Havia um motivo para tais medidas de segurança: os organizadores tinham recebido cartas de ameaça. “Somente o fato de falar sobre a hostilidade contra os muçulmanos já perturba”, constata Serroukh.
Naïma não é a única a denunciar a islamofobia crescente. Ela se manifesta na vida cotidiana através de insultos, cusparadas e agressões nas ruas, e também na política e na mídia. Naïma Serroukh cansou de ser alvo de comentários enquanto caminha pela calçada, e de ser obrigada a justificar a sua religião quase sempre. O rosto coberto tornou-se uma ameaça ambulante. Há anos, a CFR indica que um dos nós da questão está nas redes sociais e que “os muçulmanos arcam com as consequências deste tipo de propaganda, que exacerba as emoções e semeia a desconfiança, além de causar a exclusão social.”
Viajantes da guerra santa
Setenta e duas pessoas partiram ou pensaram em viajar da Suíça para zonas de conflito no Iraque e na Síria. Os dados foram revelados pelo jornal Tages-Anzeiger, de Zurique, numa reportagem publicada neste verão. A matéria identifica as cidades de onde partiram os “ex-jidahistas”: Winterthur (12 casos), Lausanne (9), Genebra (5), Bienne (4) e Arbon (4), no cantão de Turgóvia.
O Serviço de Inteligência da Confederação contabiliza 89 aspirantes jidahistas que deixaram a Suíça para integrarem o autoproclamado Estado Islâmico ou outros grupos extremistas no mundo (do Oriente Médio à Somália).
Mas seria este estigma suficiente para incentivar um ou uma jovem para a guerra santa, a chamada “jihad”, ou a participação em atos de terrorismo? “Pode ser um elemento. Mas a radicalização é um processo complexo e que pode ter múltiplas causas”, responde Serroukh.
Radicalização, um risco por todos os lados
Serroukh tem origem marroquina. Ela chegou na Suíça como refugiada aos 26 anos de idade. A jovem escapava do regime de Ben Ali, na Tunísia, onde vivia com o marido. O diploma de advogada não foi reconhecido pelas autoridades suíças e ela recomeçou do zero. “Trabalhei com mediação cultural, diálogo inter-religioso, e na integração e participação política dos imigrantes”, conta.
Ela veio parar em Bienne, uma cidade com uma proporção de muçulmanos (em torno de 7%) pouco superior à média nacional. “A realidade dos muçulmanos em Bienne reflete a da Suíça. A comunidade é heterogênea, com grande diversidade cultural e étnica. À maioria de turcos e albaneses juntam-se outras diásporas do mundo árabe, com origem no Magrebe e na Síria, assim como as comunidades africanas”, revela Serroukh.
Recentemente, Bienne ganhou as páginas dos jornais com o caso do imã acusado de sermões incitando o ódio, e das duas jovens que viajaram para integrar as fileiras do Estado Islâmico, na Síria. Seria Bienne uma cidade problemática? “Não diria isso. Casos de radicalização ocorreram também em Winterthur, Lausanne e Genebra. Depois do atentado à redação da Charlie Hebdo, em Paris, nos demos conta que a radicalização é uma ameaça a todos, inclusive aqui na Suíça”, revela Serroukh, que decidiu lançar o projeto TasamouhLink externo logo depois do atentado de janeiro de 2015.
Jovem sem identidade
Tasamouh significa “tolerância, reconciliação, perdão”, em árabe. O objetivo é a prevenção contra o radicalismo dos jovens muçulmanos. Os mais vulneráveis são os “jovens sem identidade”, como chama-os Serroukh. “Do ponto de vista helvético, a integração existe quando o imigrante fala a língua local, vai à escola ou trabalha. Mas, ao mesmo tempo, ele não se sente nem suíço e nem muçulmano. Não vai mais à mesquita e possui pouco conhecimento sobre o islã. Os pais transmitiram as tradições do país de origem, não a religião. Os jovens não conseguem fazer essa distinção.”
Serroukh cita o caso de um jovem que não compreendia o comportamento da mãe. “Contrariamente às de seus amigos, a sua mãe não usava o véu e não era praticante. Ele começou a se perguntar sobre a razão dela não ser como as outras muçulmanas. Sentiu-se perdido, sem um ponto de referência. E é nesse momento que o jovem fica mais influenciável”.
O problema então começa na família? “Infelizmente, a maior parte dos pais que conheço é ausente e ainda temos os problemas relacionados com a separação. Um dia uma mulher me chamou para contar que a filha, de 14 anos, fumava maconha. Eu disse para ela não fazer caso disso e ofereci ajuda. Caso contrário, o pai a espancaria, tiraria da escola e enviaria de volta para Tunísia. Mas essa não é a solução”.
A revolta dos jovens, especialmente na adolescência, é parte de um processo de autoconhecimento, revela Serroukh. “Não posso dizer que um jovem em crise é, automaticamente, um potencial jihadista. Mas é uma vítima fácil”. O perigo, observa a coordenadora do Tasamouh, não é apenas o extremismo islâmico. Existe ainda a marginalização social, a descrença nas autoridades e nas outras comunidades, além da dependência de drogas e do álcool. Uma mistura de desconfiança, frustração e raiva que alimenta o círculo vicioso da islamofobia e da violência.
A solução? Escutar
O projeto Tasamouh é financiado em parte pelo município de Bienne. Ele oferece um serviço de aconselhamento e formação a professores, assistentes sociais, educadores, responsáveis pelos centros de juventude e representantes das várias comunidades religiosas. Ou seja, a todas as pessoas em contato com os jovens e as suas famílias. “Vamos nos bairros, nos locais de encontro ou, simplesmente, na praça ao lado da estação de trem. Queremos dar voz a quem se sente excluído por causa de sua crença religiosa “, explica Serroukh. Até para ela mesma, o simples fato de conversar com um jornalista já é em si “uma terapia”.
Este verão marcou o fim do ciclo de formação da primeira turma de mediadores, composta por 14 homens e mulheres, com idades entre 20 e 60 anos. Eles falam alemão, francês, turco ou tigrínia (idioma praticado ao norte da Etiópia e Eritreia). Alguns são muçulmanos, outros cristãos ou ateus. O processo de doutrinação na Internet foi um dos temas do curso organizado pela polícia do cantão de Berna. O chefe da segurança de Bienne, Raymond Cossavella, citado pelo jornal Journal du Jura, afirma que o projeto Tasamouh “dá um passo na direção certa e teve a coragem de definir e enfrentar os problemas que a nossa sociedade enfrenta”.
O objetivo, insiste Naïma Serroukh, é de identificar os comportamentos suspeitos e intervir. “Algumas vezes, a mudança nas atitudes pode ser visível, como por exemplo, no modo de se vestir, cobrindo-se dos pés à cabeça, ou de não fazer mais a barba. Mas outras vezes não percebemos nada. E tudo pode acontecer muito rapidamente: fiquei perplexa quando ouvi falar de um ex-jidahista que começou o seu percurso apenas dois meses e meio antes da viagem à Síria. Temos que agir antes da mudança. Senão, é muito tarde”.
A quebra da lei do silêncio já representa uma vitória, afirma Serroukh. “Mas é necessário um esforço coletivo, do cidadão comum ao político, dos centros islâmicos às autoridades. Caso contrário, iremos fracassar”.
Muçulmanos na Suíça
O islã é a terceira maior religião da Suíça.
Contando com cerca de 450.000 fiéis (5,5% da população), a comunidade é bastante heterogênea, tanto em suas origens (essencialmente turcos e dos Balcãs) como em seus graus de observância religiosa.
Em geral bem integrados, os muçulmanos na Suíça se reúnem em 350 associações diferentes e em cerca de 300 locais de culto, dos quais apenas quatro possuem um minarete.
Em 2009, os eleitores suíços aprovaram (com 57,5% dos votos) uma iniciativa que proíbe a construção de novos minaretes. E no dia 15 de setembro passado foi entregue uma iniciativa popular para impedir a cobertura do rosto. O Ticino é o único cantão que veta o uso da burca e do niqab em lugares públicos.
Adaptação: Guilherme Aquino
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