Descontos secretos deixam pacientes à mercê dos fabricantes de medicamentos
Um novo estudo da Universidade de Zurique descobriu que o uso de descontos confidenciais para medicamentos contra o câncer e outros remédios pouco faz para torná-los disponíveis mais rapidamente e a preços mais acessíveis. A questão surge em meio a um debate sobre um plano para controlar os preços dos medicamentos na Suíça.
A Suíça tem sido um modelo para a transparência dos preços dos medicamentos. Em 2019, Nora Kronig, diretora adjunta no Ministério da Saúde, disse à SWI swissinfo.ch que a Suíça é “um dos únicos países que é totalmente transparente em matéria de preços. Não há acordos secretos”.
Isto parece estar mudando, segundo um estudo da Universidade de Zurique publicado na revista LancetLink externo, que constatou que a Suíça vem utilizando cada vez mais descontos – um preço com desconto oferecido pelos fabricantes farmacêuticos – desde 2012. A partir de 2019, alguns desses descontos foram mantidos em segredo.
O número de medicamentos com desconto aumentou de um em 2012 para 51 até outubro de 2020. Destes, pelo menos 14 não tinham informações disponíveis ao público sobre o valor do desconto ou o preço pago aos fabricantes. A maioria deles é para medicamentos contra o câncer.
“Com esses descontos, não sabemos o que está sendo usado para determinar o preço, o que é perigoso”, disse Kerstin Vokinger, professora da Universidade de Zurique e principal autora do estudo. “Médicos e pacientes não sabem mais nem mesmo quais são os preços atuais. O paciente tem o direito de saber quanto custará o seu tratamento”.
O estudo foi publicado em um momento em que a Suíça e muitos outros países assinam acordos confidenciais para adquirir a vacina contra a Covid-19 com os fabricantes farmacêuticos, levantando questões se o fornecimento limitado de vacinas não está sendo dividido entre os maiores licitadores. Enquanto isso, os tratamentos mais caros, como as terapias genéticas, que custam milhões, estão colocando mais estresse nos sistemas de saúde, levando muitos países a buscar novas maneiras de cortar custos.
Ciclo vicioso
A Suíça, assim como muitos de seus vizinhos europeus, utiliza preços de referência externos para estabelecer os preços dos medicamentos. Isso normalmente envolve o uso do preço de um medicamento fixado em um grupo de países como referência. Isto se destina a assegurar que o país tenha um preço comparável ao de outros países.
Nos últimos anos, muitos países europeus, incluindo o Reino Unido, França e Alemanha, começaram a negociar descontos ou abatimentos para certos medicamentos – uma prática que vem sendo adotada há décadas nos EUA. Isto significa que a referência externa ou o preço listado não é o preço efetivamente pago.
“Isto cria um ciclo vicioso”, disse Vokinger. “O sistema de preços de referência externa só funciona se todos os países participarem”. À medida que mais países introduzem descontos, os outros têm pouca escolha a não ser seguir o exemplo.
Quebrando o mito do acesso
Os governos têm argumentado que os descontos ajudam a reduzir os custos de saúde e a tornar os medicamentos disponíveis mais rapidamente. René Buholzer, diretor administrativo da Interpharma, a federação da indústria farmacêutica na Suíça, defendeu a prática na televisão pública suíça, SRFLink externo.
“Estes modelos são utilizados onde quer que tenhamos problemas complexos que não podemos resolver com o atual sistema de preços. O objetivo deve ser um acesso mais rápido”, disse Buholzer.
Um porta-voz da Roche disse à SWI swissinfo.ch que a empresa usa “soluções de preços sob medida para garantir que o maior número possível de pacientes tenha acesso à nossa inovação”.
No entanto, o estudo da Universidade de Zurique contradiz este argumento. Ele descobriu que oferecer descontos normalmente leva o dobro do tempo para que o preço seja negociado e para que o medicamento passe da aprovação à inclusão na lista que permite que ele seja reembolsado pelo seguro de saúde. Para medicamentos com descontos, o número mediano de dias para fixar o preço com descontos foi de 302, comparado a 106 para os medicamentos sem descontos.
Embora o estudo não apresente as razões para este prazo mais longo, Vokinger diz que uma razão poderia ser que as negociações são mais complicadas, já que não há regulamentação sobre como determinar um desconto.
O estudo também sugere que os abatimentos podem não levar a preços mais baixos. Mas isto é difícil de determinar quando não há uma imagem transparente do que está sendo pago em comparação com outros países. O estudo mostra que os descontos não se limitaram aos medicamentos mais caros e eficazes.
Apenas um terço dos medicamentos tinha um alto valor clínico baseado em várias ferramentas externas de avaliação, como uma classificação de valor terapêutico na Alemanha e uma escala europeia de benefícios clínicos para medicamentos oncológicos. Os descontos também variaram significativamente, de 4% e EUR226 (CHF244) para o Keytruda da Merck para o linfoma Hodgkin a 58% e EUR3.493 para o medicamento Roche Cotellic – um tratamento combinado contra o melanoma.
“Metade dos medicamentos [com descontos] não tem alto benefício clínico no momento da aprovação. O sistema não serve ao paciente”, disse Vokinger. O estudo conclui que os descontos podem realmente “dificultar o acesso aos medicamentos e levar a um pagamento excessivo”.
Isto é apoiado por evidências nos EUA, onde alguns especialistas afirmam que os descontos contribuem para os altos preços dos medicamentos. As autoridades americanas estão considerando o afastamento dos descontos para algum tipo de preço de referência externo.
Situação em que todos perdem
O estudo da Universidade de Zurique aponta que preços diferentes podem ser justificados com base em políticas de oferta, demanda e reembolso, entre outros fatores exclusivos dos países. A Roche e a Novartis estão ambas ajustando os preços para refletir a renda relativa de um país e sua capacidade de pagamento.
Quando perguntada sobre o preço para informações do número de países que recebem um desconto para o Cotellic, a Roche disse que não divulga detalhes sobre seus preços em nível de país.
Em uma declaração, a Roche disse que “acolheria de bom grado mais transparência no sistema, porém estamos preocupados que isso possa minar nossa capacidade de fornecer preços diferenciados, particularmente em cenários de renda mais baixa”.
A Organização Mundial da Saúde tem desaconselhado fortemente os descontos confidenciais, advertindo que eles podem levar a uma distorção dos preços dos medicamentos e dificultar o acesso oportuno aos tratamentos.
Na Assembleia Mundial da Saúde em 2019, uma resolução proposta pelo governo italiano para encorajar mais transparência nos preços e custos de P&D atingiu um nervo da indústria e criou mal-estar para muitos governos que sediam as grandes empresas farmacêuticas. Uma versão simplificada da resolução foi finalmente adotada. Entretanto, houve pouco progresso desde então e a situação foi complicada pela Covid-19, onde os acordos secretos de vacinas se tornaram a norma.
Base legal?
A Suíça está atualmente considerando a revisão de sua lei federal de seguro saúde para ancorar oficialmente os descontos confidenciais na lei. Ela propõe o uso de modelos de preços para garantir “acesso rápido e barato a produtos farmacêuticos inovadores e de alto preço” e sugere que em alguns casos o valor do reembolso não será tornado público nos casos em que o desconto é tão alto que a empresa não deseja torná-lo público.
No ano passado, Adrian Lobsiger, Comissário Federal Suíço para Proteção de Dados e Informações, criticou a cláusula de confidencialidade sobre o preço dos medicamentos na proposta de lei de seguro saúde.
Em uma entrevista na SRF, Ryan Tandjung, do Ministério da Saúde, revelou a difícil posição em que o governo se encontra. “Se a Suíça não concordar com este [modelo de preços], poderá não ter mais acesso aos medicamentos ou ter que pagar muito por eles. É importante que tenhamos esta opção [de manter os preços confidenciais] em situações excepcionais”.
A ONG suíça Public EyeLink externo criticou fortemente as emendas propostas à lei, argumentando que acordos secretos só acentuarão a assimetria de poder e informação entre as empresas farmacêuticas e o Ministério da Saúde ao negociar os preços dos medicamentos.
A transparência não é apenas uma questão de responsabilidade básica perante os contribuintes, diz Patrick Durisch, responsável pela política de saúde da ONG suíça. Trata-se também de garantir que os governos tenham poder de influência.
“As empresas farmacêuticas estão basicamente dizendo que estão prontas a dar os medicamentos a um preço mais barato, mas não querem que os descontos sejam publicados ou compartilhados com outros países”, concluiu Durisch.
Adaptação: Fernando Hirschy
Adaptação: Fernando Hirschy
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