A herança do movimento da saúde
De saunas e leite de amêndoa a ioga e desintoxicação: a influência do movimento intitulado "Lebensreform" estende-se até aos dias de hoje, conta a historiadora Eva Locher.
Quando se ouve falar em “Lebensreform” (n.r.: reforma da vida, em tradução livre), a maioria das pessoas pensa em nudistas dançando alegremente em Ticino. Mas o ideal de um “modo de vida natural”, com o qual o movimento Lebensreform reagiu à mecanização da vida no final do século 19, tem prevalecido em muitos aspectos de nossas vidas.
Haverá em breve comida vegetariana em todos os restaurantes. Muitos falam com naturalidade sobre a vontade de desintoxicar seus corpos. E indicações médicas alternativas são agora pagas pelos planos de saúde. Em entrevista ao jornal NZZLink externo, o historiador Malte Thiessen vê parte do cepticismo em relação às vacinas como estando enraizado na ideia de um corpo forte e capaz de se curar, pensamento que o movimento Lebensreform concebeu na época.
Mas o que significava viver “naturalmente”? O importante era muito exercício, adotar uma alimentação saudável, frequentemente vegetariana, renunciar a substâncias viciantes, mas também confiar na naturopatia e, mais tarde, também em teorias médicas alternativas, tais como a medicina tradicional chinesa ou a homeopatia, e em projetos de vida como a antroposofia de Rudolf Steiner.
Durante muito tempo um assunto para iniciados, as ideias do movimento Lebensreform experimentaram um boom após a II Guerra Mundial, e uma influência que se estende aos nossos dias. Conversamos com a historiadora Eva Locher sobre o sucesso das ideias da “Lebensreform”.
swissinfo.ch: Comecemos por uma grande invenção suíça, o Birchermüesli. O filho de seu inventor disse em 1964 que os ensinamentos de seu pai haviam mudado de uma “privação inaceitável de prazer” para um estilo de alimentação aceitável. O que havia de tão ruim nisso antes?
Eva Locher: Isso se referia principalmente à carne, que era um símbolo de status importante na época. Se viesse alguém e exigisse que as pessoas se abstivessem voluntariamente de comer carne por razões de saúde e se alimentassem apenas de saladas, grãos e vegetais crus e naturais, seria quase chocante.
swissinfo.ch: As ideias da Lebensreform, porém, vão além do consumo de cereais e do vegetarianismo. Como é uma vida inspirada pelos princípios deste movimento?
E.L.: A nutrição é certamente fundamental. Todas as pessoas adeptas da Lebensreform concordavam que se deve comer a maior quantidade possível de produtos naturais e não processados. As compras eram feitas no Reformhaus – lojas que vendem produtos segundo os princípios da Lebensreform –, e investiam-se muito tempo na cozinha, posto que os cardápios eram muito elaborados. Além disso, havia uma rotina diária regular, que deveria oferecer sono suficiente e fases claras de descanso, e caracterizou-se por um ideal de moderação: não se deve comer muito, certamente não se deve fumar e beber – e praticar esportes.
swissinfo.ch: Que tipo de esporte?
E.L.: As reformadoras e reformadores praticavam uma variedade de esportes, tais como jogos com bola, natação ou corrida de cross-country. Os exercícios de dança e ginástica eram centrais no início; mais tarde a ioga com suas técnicas de respiração e relaxamento ganhou força. A propósito, a Associação Suíça do Corpo Livre [nudismo] publicou numerosos livros de ioga e contribuiu significativamente para a disseminação dessa prática corporal na Suíça. Os estúdios atuais de ioga são certamente um legado da Lebensreform.
swissinfo.ch: Em que outras áreas podemos ver esse legado?
E.L.: Na sauna, que tem sido propagada como uma nova prática de saúde desde o final dos anos 40 pela “Associação Suíça para a Saúde Pública”, de orientação naturopática – hoje em dia é padrão em todos os hotéis de bem-estar. Um legado central é, sem dúvida, o amplo trabalho corporal, que a maioria das pessoas faz atualmente, e a reflexão intensiva sobre a nutrição.
Hoje em dia, é possível encontrar restaurantes vegetarianos em todas as cidades. Grandes distribuidores oferecem leite de amêndoa, biscoitos e bolachas integrais ou produtos à base de soja. Décadas atrás, esses eram ainda produtos de nicho. A oferta de frutas e legumes orgânicos nas prateleiras também remonta a tais ideias. Já nos anos 50, as publicações da Lebensreform tomavam nota contra o “veneno nos alimentos”.
swissinfo.ch: Com que tipo de sociedade sonhavam as adeptas e adeptos da Lebensreform?
E.L.: Basicamente, a razão de suas críticas à sociedade está em constante mudança e evolução. Por volta de 1900, as críticas voltavam-se contra a mecanização e a urbanização. Após a Segunda Guerra Mundial, concentravam-se mais no consumo em massa e na destruição da natureza. Na verdade, o foco está no indivíduo como o eixo e o ponto de partida de todas as melhorias. Só quando cada indivíduo faz ajustes em sua vida é que a sociedade pode melhorar. Essa foi a palavra de ordem desde o início: da auto-reforma à reforma social.
swissinfo.ch: Porque é que semelhante credo ainda hoje é atraente?
E.L.: As ideias da Lebensreform são particularmente atrativas para pessoas que estão doentes ou passando por crises existenciais. As práticas da Lebensreform prometem auto-aperfeiçoamento: sabe-se o que se tem de fazer. Práticas e procedimentos claros proporcionam uma base de apoio. A naturopatia, em particular, defendia a opinião de que as pessoas, devido à sua “força vital”, possuem mecanismos de auto-cura devido e são capazes de ajudar a si próprias e a seus corpos.
swissinfo.ch: Então todos aqueles que fazem ioga ou bebem leite de amêndoa estão passando por uma crise existencial?
E.L.: Não, claro que não. Hoje em dia, as ideias do movimento são frequentemente associadas a objetivos de auto-otimização. São muito compatíveis com o lema neoliberal de que cada um é o arquiteto de sua própria felicidade.
Isso também se reflete em nossa disposição de monitorar nossos corpos com rastreadores de condicionamento físico e relógios que medem o número de passos dados. O objetivo é trabalhar o mais possível no próprio corpo. Essa pulsão tem sua origem na auto-observação meticulosa em nome da saúde, atitude que a Lebensreform vem promovendo há mais de um século.
A responsabilidade pela saúde é cada vez mais delegada ao indivíduo. Em caso de doença, basta se exercitar mais e se alimentar de maneira mais saudável. O contexto social é deixado de fora da equação.
swissinfo.ch: No entanto, o movimento Lebensreform foi interessante, especialmente para o meio alternativo dos anos 1970.
E.L.: Sim, mas talvez não “apesar disso”, mas precisamente por isso. Afinal, a contracultura pós-1968 foi de fato marcada pelo retraimento, afastando-se de objetivos revolucionários e dedicando-se a mudanças no estilo de vida. As pessoas se afastam da política, mas também do consumo em massa, fundam comunas rurais e as cultivam, produzem seus alimentos e assam o próprio pão. Tudo isso tem um nome: “Counter Cuisine”.
As seguidoras e seguidores da Lebensreform, a princípio já mais velhos, também se aperceberam desse interesse por parte da geração mais jovem. Perceberam que já não eram mais vistos como “apóstolos embusteiros” vestidos em mantos esvoaçantes, mas que primeiro os ambientes alternativos e, mais tarde, os círculos sociais mais amplos estavam abraçando suas ideias. Em meados da década de 1970, viram-se subitamente no centro da sociedade e tomaram assento em comitês com cientistas. Aí puderam mostrar que suas teorias eram socialmente aceitáveis.
swissinfo.ch: Onde realmente teve lugar essa colaboração?
E.L.: Por exemplo, no combate ao tabagismo, na agricultura orgânica, em instituições como o Instituto de Pesquisa de Agricultura Orgânica, que ainda hoje existe. Mas também na proteção ambiental desde os anos 1970.
swissinfo.ch: Quais ideias não vingaram?
E.L.: A prática de esqui nu. As associações de nudistas argumentavam que a luz e o ar, elementos que se encontram em estado puro nas montanhas e neves, sobre a pele nua são saudáveis – por isso também se deve esquiar nu. Mesmo que ainda haja caminhantes nus, quase ninguém esquia hoje sem equipamento apropriado.
Adaptação: Karleno Bocarro
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