Futebol contra a indiferença
Natural de Zurique e criado na Áustria, Florian Wegenstein manteve sempre a ligação com a Suíça ao longo da vida. Em 1997 esteve pela primeira vez em Cabo Verde, para onde acabou se mudando definitivamente em 2002, e lá fundou a ONG Delta Cultura. De passagem pelo Tarrafal, a swissinfo.ch foi conhecer de perto o trabalho desenvolvido por ele.
Aos dois anos, Florian mudou-se de Zurique com a mãe para Viena. O seu pai continuou a viver na Suíça e ele vinha regularmente ao país visitar o seu pai. Quando aos 17 anos decidiu deixar os estudos, Florian regressou à Suíça em busca de trabalho. O seu grande sonho sempre foi viajar, e para isso trabalhava cerca de um ano para economizar algum dinheiro e depois partia para um destino em qualquer parte do mundo. “Desde os 14 anos que sempre me atraiu a ideia de viajar. Eu não gostava da escola, e quando penso sobre isso hoje não me parece lógico que as crianças passem seus dias sentadas durante horas”. Além disso, na sua opinião, o modelo de ensino não serve para tornar as mentes criativas e expandi-las. Por essa razão, “viajar é a melhor universidade do mundo”.
O regresso em mente
Após dar uma volta ao mundo, em 1997 aterrava em Cabo Verde, na ilha de Santiago. Cabo Verde apareceu no seu caminho por mero acaso, porque “era o voo que ia sair umas horas depois para um destino longe da civilização”. No final dessa viagem conheceu Estela Correia com quem se casaria em 1999. A intenção de Florian era mudar-se de imediato para Cabo Verde, mas sua mulher teria ficado frustrada se não tivesse também a oportunidade de ir para o estrangeiro. “Percebi que se eu não a levasse para a Áustria ela iria ficar chateada comigo e nunca entenderia porque eu não a tinha levado. Para as pessoas aqui, uma mulher com uma criança pequena (como ela tinha) que não aproveitasse a oportunidade de sair do país e mandar dinheiro para a família, seria considerada uma má mãe”.
Mudaram-se então para a Áustria e viveram lá durante quatro anos. Em 2002, já com uma filha, regressaram ao Tarrafal. O seu pai apoiou-o totalmente, mesmo que ele não tivesse definido como implementar o seu projeto de jogar futebol com crianças.
A nova vida no Tarrafal
Quando regressaram, decidiram montar um bar para garantir o sustento. De imediato, Florian começou a jogar futebol com as crianças. Os treinos decorriam no terreno onde agora está instalado o mercado municipal, no centro da vila, e eram dados por si e pelo seu cunhado. Ao fim de dois anos, a Câmara Municipal do Tarrafal decidiu construir o mercado e ele julgou ser a oportunidade ideal para pedir o apoio da Câmara para terem acesso a um terreno.
Florian meteu mãos à obra, e escreveu um projeto para dar continuidade ao trabalho desenvolvido com as crianças e ainda acrescentar outras áreas. Um dia, teve uma reunião com o presidente da câmara do Tarrafal e facilmente recebeu um terreno. “O presidente disse que me tinha dado o terreno porque no contrato tinha dois anos para construir. Felizmente, passados seis meses consegui o dinheiro para começarmos as obras”.
O caminho da Delta Cultura
Ao longo dos primeiros seis meses, Florian procurou em diversos lugares apoio financeiro para construir as futuras instalações onde iriam implementar a ONG Delta CulturaLink externo e desenvolver as atividades. Os primeiros apoios vieram da Alemanha, onde conseguiram fundos para cursos de formação para alfaiates e carpinteiros, e com parte desses fundos construíram o campo de futebol e alguns edifícios.
Ao fim de 15 anos, eles têm um centro com 10 mil metros quadrados e dois campos de futebol. Os edifícios são em pedra por ser uma forma local de construção, mas que requer menos manutenção a longo prazo. Lecionam aulas de línguas, arte, informática e futebol. Há dois anos criaram um jardim-de-infância com cerca de 30 crianças. Os jovens que frequentam o centro diariamente são cerca de 250, segundo o registo oficial. Na instituição trabalham nove pessoas com as crianças e jovens, e duas pessoas cuidam das instalações.
Na opinião de Florian, “a educação é a chave para resolver os problemas deste mundo e começa quando nascemos”. Contudo, para ele o sistema apenas cria cópias em vez de pessoas, e o projeto da Delta Cultura pretende incidir sobre novas metodologias de ensino. “Por isso trabalhamos a arte, o desporto”. Sem receios, o nosso entrevistado assume que há falhas no caminho e que reflete sobre eles em cada relatório que faz porque “faz parte da honestidade do projeto”.
Essa metodologia aberta, que, de certa forma, responsabiliza crianças e jovens, permitindo-lhes decidir o que fazer, requer algumas adaptações e está em constante ajuste. “Por isso leio livros e tento implementar essas ideias na realidade”, e mesmo que às vezes falhe, isso faz parte do processo de aprendizagem. Habitualmente recebem cerca de 6 ou 7 voluntários de Portugal, por meio de uma plataforma de voluntariado.
Adaptação à família, à vida e à língua
Para Florian, a adaptação ao ritmo de vida, à sua nova família, e à burocracia, decorreu da melhor maneira. “Deve ter sido porque viajei bastante”. Conta-nos que a sua sogra vendia grogue (aguardente de cana-de-açúcar) aos pescadores e cuidava de crianças, e ela foi muito importante para ele na sua integração. “Era uma senhora muito pobre, nunca me pediu nada e dava-me sempre comida”.
Florian lamenta que alguns europeus que residem em Cabo Verde frequentemente se queixam da burocracia e das pessoas serem lentas. Ele próprio teve dificuldade em reajustar o seu modo de vida, “mas esse é o desafio, de saíres da tua própria cultura, pois não tenho essa ideia fixa de ver o ser humano”.
Apesar de falar italiano, quando esteve pela primeira vez no país percebeu que não iria ser fácil se comunicar. Começou a aprender a falar português e depois, com o passar dos anos, foi perdendo ambas as línguas até falar apenas crioulo. Florian confidencia-nos que não é bem visto falar com as autoridades em crioulo em vez de português, “mas eu não consigo falar português, toda a gente fala crioulo no dia-a-dia”.
A busca de estabilidade para a Delta Cultura
O trabalho de Florian foca-se na sua maior parte em fazer contactos com instituições internacionais para encontrar fundos que permitam à Delta Cultura continuar o seu projeto social. “Gostaria de ter um evento anual que nos permitisse reunir toda a quantia necessária, em vez de andar a correr atrás do dinheiro constantemente”.
Para este ano, há um leilão de obras de arte na Áustria onde espera angariar a quantia necessária ao funcionamento para o restante do ano e começar o próximo mais estável. Contudo, espera no próximo ano organizar um ou mais leilões de caridade para apoiar a Delta Cultura na Suíça, Alemanha e Áustria. Curiosamente, “é mais fácil pedir apoio aos artistas do que aos futebolistas”, desabafa.
Se conseguir reunir a quantia anual necessária através destes eventos, Florian Wegenstein terá a possibilidade de se envolver mais no trabalho com as crianças e jovens, o seu grande objetivo.
Lugares a visitar
Na opinião de Florian Wegenstein, o Tarrafal é o melhor lugar da ilha de Santiago. Para aquelas pessoas que gostam de fazer caminhadas, sem dúvida que a Serra Malagueta é o local apropriado. Para conhecer um pouco da história do país, a Cidade Velha, com a sua arquitectura colonial portuguesa, vale muito uma visita. A Cidade da Praia, capital do país, não é muito interessante, mas tem acesso a programas culturais mais diversificados.
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