Madonas Negras mostram a arte engajada de Theaster Gates
Como contraponto à ArtBasel, uma das feiras de artes mais importantes do mundo, o Kunstmuseum Basel abre uma exposição em grande escala do artista, ativista e urbanista norte-americano Theaster Gates: “Black Madonna” (Madona Negra), um exemplo perfeito do que “arte engajada” significa hoje em dia.
Para o Kunstmuseum, Gates explora o culto da “Madona Negra”,
apresentando novos trabalhos feitos especialmente para a exposição, bem como interações com obras da coleção do Kunstmuseum Basel com curadoria do próprio artista. Juntamente com parceiros locais e internacionais, Gates envolverá os espectadores em um extenso programa de apresentações ao vivo planejado para durar até o final do show, em 21 de outubro.
Poucos dias antes da abertura, e a pedido da swissinfo.ch, Damian Christinger, crítico de arte e curador independente baseado em Zurique, visitou Gates no meio da montagem da exposição para uma conversa sobre os temas explorados na exposição.
A conevrsação
Entro no Kunstmuseum Basel Gegenwart pela porta dos fundos. É segunda-feira, o museu está fechado, e o artista está ocupado montando sua exposição “Madona Negra” – em tese, essa não é a condição ideal para uma conversa sobre religião, raça, gênero e revolução. Mas Theaster Gates está relaxado e animado com o seu próximo show e eu logo entenderia o porquê.
O hall de entrada é dominado por uma escultura de uma Madonna negra – moldada com alcatrão – com um menino Jesus no colo, que estranhamente não tem um braço. Ao redor da escultura em tamanho natural, há uma estante contínua, montada na altura dos olhos, sustentando um semicírculo de 2500 livros. Eles são todos encadernados em couro preto com letras douradas na lombada e parecem proteger e venerar a Madona Negra ao mesmo tempo.
Damian Christinger (swissinfo.ch): Que tipo de biblioteca é essa, e porque Jesus está sem um braço?
Theaster Gates: Eu trabalho muito com arquivos. Costumo comprar coleções inteiras de livros ou LPs ligados à cultura negra, e torná-los públicos, abri-los para que as pessoas comuns se envolvam. É inevitável que haja duas ou até três cópias do mesmo livro quando você junta diferentes coleções. Eu comecei a usá-los como uma espécie de matéria-prima, uma base com a qual trabalhar. Eu tomo o título de um livro como um ponto de partida, às vezes apenas uma palavra, às vezes uma frase associativa, e comecei a brincar com diferentes combinações, criando assim poemas com os títulos na parte de trás dos livros, que eu então encadernei em couro preto com as partes do poema nas lombadas em letras douradas. Seria ótimo se os visitantes lessem seus poemas individuais em voz alta, criando uma performance coletiva, uma atmosfera de oração.
(Ele começa a ler as palavras em voz alta para mim, colocando ênfase em palavras ou frases isoladas, às vezes sussurrando, às vezes recitando em alta voz):
Surely the nation can
Rugged cross
Jagged edge
Heavy burden
Paid and laid by she
Shemotherblack
Madonna laid down the law
She got the traction
Parish to Parish
From Poland to Detroit
Detroit to Atlanta
To Houston
Not only God of the Blacks
But mother of us all
_________________________________ A nação certamente pode
Áspera cruz
Borda dentada
Fardo pesado
Pago e colocado por ela
Elamãenegra
Madonna impôs a lei
Tomou o controle
De Paróquia a Paróquia
Da Polônia a Detroit
Detroit a Atlanta
Até Houston
Não só Deus dos negros
Mas mãe de todos nós
swissinfo.ch: E o menino Jesus sem braço?
TG: O modelo para o molde era um chaveiro, que é usado por muitas pessoas, e um deles foi dado a mim, já no estado em que o vemos aqui. Eu gosto do fato de que ele é vulnerável, protegido pela Madona Negra. Se fosse mais quente aqui, o alcatrão de que ela é feita começaria a derreter, mudando a superfície lisa.
swissinfo.ch: Parece haver um forte elemento pessoal nesse show. Uma instalação de luz com ladrilhos de banheiro no chão é intitulada “Banheiro do Crente”.
TG: Sim, é verdade, há muitas memórias pessoais incorporadas neste show. Foi assim que cresci, cercado por muitas mulheres negras fortes e, claro, minha mãe, que costumava se trancar no banheiro para rezar, o único lugar em que ela conseguia ter um pouco de sossego de seus filhos.
swissinfo.ch: Ao mesmo tempo, há muitas referências à cultura afro-americana, transformando fotos de mulheres do arquivo da Johnson Publishing Company, que publicou “Ebony” e “Jet”, duas das revistas mais influentes de cultura popular negra, em cartazes. Um desses cartazes com o slogan “A Revolução não será televisionada” [título de uma canção de Gil Scott-Heron, 1970Link externo] fica em frente a uma tela com filmes idílicos, semelhantes a propagandas, da vida afro-americana nos anos 60. Por acaso isso tem algo a ver com o que o escritor negro americano W.E.B. Du Bois uma vez escreveu, que “toda arte é propaganda e sempre deve ser”?
TG: Quando eu tinha 19 anos, recém matriculado na universidade de artes, fui visitar alguns parentes em Detroit. Essa foi a primeira vez que vi o “Santuário da Nossa Senhora Negra” da Igreja Ortodoxa Cristã Pan-Africana. A igreja enfatiza que a sobrevivência dos negros e sua salvação dependem do trabalho para o bem da comunidade e da rejeição do individualismo. Para este fim, a igreja procura construir uma nação dentro de uma nação onde os afro-americanos possam criar instituições para promover seu bem-estar político, econômico, social e psicológico.
Dentro da igreja, há uma pintura de Glenton Dowdell, de 1967, retratando uma “Madona Negra com a Criança”. Esta visita foi muito influente para o meu trabalho. A pintura não é o que se pode chamar de “obra de arte”, ela é áspera e potente, falando diretamente para a congregação e destinada às massas; é de fato propaganda. Igrejas como essa têm raízes muito fortes dentro de idéias revolucionárias, sonhos de uma revolução negra.
Acho muito importante que o público europeu perceba que a maioria das pessoas tem uma terra de origem como ponto de partida para a sua identidade. Por causa da escravidão, nós não temos esse luxo. Então essas igrejas buscaram tal identidade e se voltaram para a África, para o Egito e outros lugares, alegando que os negros foram testemunhas do assassinato de Jesus Cristo, que era decididamente não-branco, pelos romanos, e que essas origens são as sementes de uma revolução vindoura nos EUA. Isso dá à figura da Madona Negra um significado diferente do que na Europa. Aqui na Suíça, a Madona Negra foi venerada por uma variedade de razões, uma delas a crença de que uma Madona Negra era mais autêntica, ligada a Bizâncio.
swissinfo.ch: No museu Capitolini, em Roma, há uma escultura de “Ártemis de Éfeso”. É uma cópia romana do século II de uma escultura grega do século II a.C. Acreditava-se que esta deusa teria criado Zeus em uma caverna, nutrindo-o de mel. A cópia romana tem um corpo feito de mármore branco, mas o rosto e as mãos são de bronze enegrecido. Quando Maerten van Hemskeerck, cuja pintura de uma Madonna você escolheu da coleção do Kunstmuseum Basel como uma justaposição para o seu espetáculo, retratou o Templo de Éfeso de Artemis, ele se inspirou na igreja de Santa Maria Novella em Florença. Poderíamos fazer essa ligação da “Madona Negra” dos romanos ao seu culto contemporâneo de Maria?
TG: O que você está dizendo é que o culto da Madonna na Europa tem raízes pré-cristãs. Então sim, claro. O Egito está presente tão proeminentemente nas igrejas negras por diferentes razões, e um dos aspectos da cultura egípcia que sempre me fascinou é o fato de eles não terem palavras ou termos que designassem negros ou pessoas de pele clara, ou você era egípcio ou não, era isso que importava, nada mais. Mas essa convergência de idéias diferentes em uma história mundial comum me fascina e acho que essa é uma das razões pelas quais a figura da Madona Negra é tão relevante. Ela conecta diferentes esferas culturais através de aspectos femininos, que não é algo sempre óbvio, e que precisa ser constantemente enfatizado.
A “prática engajada” de Theaster Gates
É difícil categorizar Theaster Gates, nascido em Chicago em 1973, simplesmente como um artista. Talvez a melhor definição tenha sido cunhada pela Tate Gallery em Londres: “Theaster Gates é uma artista de instalações feitas por meio de práticas sociais. Começou sua carreira estudando planejamento urbano e fez um mestrado conjunto em religião, cerâmica e design urbano. Em parte graças a essas influências, ele agora mistura ativismo, gerenciamento de projetos e planejamento urbano em seu trabalho”.
Em linguagem simples, isso significa que o trabalho artístico de Gates não é para decorar as paredes de ninguém. Ele está comprometido com a revitalização dos bairros pobres e dos arquivos afro-americanos, envolvendo seus espectadores e comunidades no debate, colaboração e interação social.
Adaptação: Eduardo Simantob
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