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Iniciativa pede mudança do comportamento das multinacionais suíças

Multinacionais atuantes na Suíça: funcionário em uma fábrica da Nescafé no cantão de Vaud. Keystone

Uma iniciativa lançada pela sociedade civil pede mais respeito das multinacionais suíças aos direitos humanos e à proteção ambiental. Para Guido Palazzo, professor da Universidade de Lausanne, o caminho é uma redução no crescimento econômico e menos consumo. Entrevista swissinfo.ch

Em abril de 2015, organizações da sociedade civil lançaram na Suíça uma iniciativa popular reclamando mais responsabilidade às corporações multinacionais. Segundo a proposta, as empresas suíças teriam que, obrigatoriamente, realizar a devida diligência em relação a direitos humanos em suas operações em todo o mundo, como já prescrito pelos PrincípiosLink externo Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, e ainda ampliar o escopo desse controle incluindo a proteção ao meio ambiente. As assinaturas já foram recolhidas e em outubro a proposta será levada ao governo.

Segundo o professor de ética nos negócios e membro do Comitê da Iniciativa das Multinacionais Responsáveis, Guido Palazzo, a proposta é um primeiro passo num processo de maior conscientização e responsabilização por parte das corporações. A seguir, Palazzo avalia a Iniciativa e aponta outros diversos desafios que as multinacionais e os consumidores têm à frente, considerando as condições de trabalho, o perfil dos líderes e os recursos disponíveis no planeta.

swissinfo.ch: A indústria do café brasileira ainda conta com casos de trabalho de escravo, uso excessivo de pesticidas sem proteção adequada, entre outros. Tal situação foi confirmada em investigação publicada no início deste ano pela Danwatch, organização de mídia e pesquisa dinamarquesa, envolvendo nomes como Jacobs Douwe Egberts e a suíça Nestlé. Não é surreal que nos dias de hoje ainda estejamos discutindo trabalho escravo, direitos humanos e tudo mais?

Guido Palazzo: Primeiramente, temos que perguntar onde está a origem desses problemas. Na minha perspectiva, eles acontecem em função de a globalização ter gerado uma lacuna regulamentar. Temos corporações globais, rede de fornecedores globais, mas não temos leis globais para esses participantes globais. Empresas podem atuar em regiões em que o governo interfere pouquíssimo nas atividades, ou em áreas em que o governo é corrupto ou repressor. Além disso, o contexto em que operam as empresas ocidentais hoje não é mais o mesmo daquele de 20 anos atrás. Atualmente estão presentes em países que vivem em situações muito mais complexas. No caso das plantações de café, muitas empresas afirmam que o controle e punição das péssimas condições nas plantações é um trabalho do governo. E, infelizmente, em muitos desses países as leis não funcionam, o controle não é feito, há muita corrupção. Governos, muitas vezes, não estão fazendo seu trabalho e empresas estão relutantes em fazer o trabalho do governo. E a pressão está aumentando para que as empresas o façam.

swissinfo.ch: Além dos códigos de conduta e controle, como as empresas podem atuar para resolver esse tipo de problema?

G.P.: Temos que diferenciar dois contextos: os pequenos agricultores e as grandes fábricas e plantações. Corporações atuando em diversos setores começaram a impor códigos de conduta a grandes fábricas e plantações. Além disso, fazem controle para verificar se tais regras são realmente respeitadas e aplicadas. Em muitos casos, visitam seus fornecedores de surpresa, fazem parcerias com ONGs ou com outras organizações. O problema é que esses auditores muitas vezes não têm tempo disponível suficiente. Muitas vezes, não conseguem detectar a verdadeira situação das linhas de produção e das plantações. Outro aspecto que atinge mais especificamente as fábricas fornecedoras é que, por um lado, as corporações pedem a esses fornecedores para aplicar os códigos de conduta, e, por outro lado, fazem pressão em relação aos preços e à velocidade de produção. Essa é uma equação complicada. Muitos fornecedores acabam enganando. Enquanto as empresas continuarem a apenas adicionar um código de conduta e um sistema de controle, não veremos muitas mudanças.

swissinfo.ch: O senhor tem visto práticas inovadoras neste sentido?

G.P.: As empresas têm implementado diversas práticas. Por exemplo, a Nestlé tem trabalhado diretamente com agricultores para ajudá-los em sua atividade, aumentando assim a produção, e consequentemente seu retorno financeiro. Ou seja, é uma forma de motivar os agricultores. Há corporações que já entenderam que se querem que seus fornecedores operem de acordo com a regras, terão que estabelecer uma relação de longo prazo.

Guido Palazzo Cortesia

swissinfo.ch: Como fica então a equação do foco no lucro versus prioridade no bem-estar de todos os envolvidos no negócio, os chamados stakeholders?

G.P.: As empresas não podem mudar isso enquanto estiverem usando o modelo de valor acionário, em que os direitos dos acionistas prevalecem sobre outros direitos. Novos modelos de negócio – conhecidos como B Corporation, Empresa Social – estão mostrando que talvez seja possível combinar aspectos ambientais, sociais e econômicos e encontrar um equilíbrio entre eles. Mas enquanto as empresas continuarem a apenas focar nos lucros e os consumidores não ligarem para essas questões éticas, consumindo mais e mais a preços baixos, fica difícil mudar. É impossível você vender camisetas a 2 dólares e ao mesmo tempo garantir que tal produção ocorra em condições mínimas e respeitosas ao ser humano.

swissinfo.ch: O senhor acredita que esse a Iniciativa das Multinacionais Responsáveis pode efetivamente melhorar as condições de trabalho em muitos outros países?

G.P.: A Iniciativa defende que uma multinacional suíça deva responder em solo suíço pelos temas ligados aos direitos humanos e práticas ambientais em suas operações globais. Trata-se de um passo importante no que se refere à busca de leis globais. Precisamos de medidas legais transnacionais. E essa pode ser uma delas. O desafio é conseguir envolver os fornecedores nesses processos também.

swissinfo.ch: O senhor acredita que as multinacionais devam ser responsáveis pela conduta de seus fornecedores ou parceiros em outros países?

G.P.: Primeiramente, temos que considerar que o debate nesses termos – de políticas de direitos humanos – é algo relativamente novo. Há cerca de 20 anos as empresas vêm tentando administrar os direitos de seus trabalhadores e de seus fornecedores diretos. Mas tal esforço era mais focado na produção, e entrava pouco nas questões mais amplas dos direitos humanos. Agora o tema está ganhando novas dimensões. Por exemplo, na maneira com que uma empresa deve lidar com regimes políticos repressores. Ou mesmo como a organização lida com fornecedores indiretos, que fazem parte do início da cadeia. Questões do seguinte tipo estão ganhando espaço: “Que metais são utilizados no processo de fabricação dos produtos? Onde estão a mineradoras e que tipo de condições de trabalho essas pessoas têm ali?”

Mesmo que essa parte do processo esteja 5 ou 6 etapas distantes da cadeia de fornecedores diretos da multinacional. Existem também novas leis sendo criadas, como Dodd-Frank ActLink externo (que obriga as empresas a fazer diligência caso seus produtos sejam compostos de ouro, estanho, tungstênio, tântalo vindos da República Democrática do Congo ou países adjacentes). O que temos hoje é uma maior compreensão da responsabilidade corporativa. E esse é o novo paradigma que está surgindo. Mas ainda estamos bem início do processo. Poucas empresas têm essas políticas.

Como funcionará a Iniciativa

A fim de assegurar que todas as empresas exerçam suas obrigações de diligência, as empresas com sede na Suíça serão responsáveis por abusos de direitos humanos e violações ambientais causados ​​no exterior por empresas que estejam sob seu controle. Esta disposição permitirá que as vítimas de violações dos direitos humanos e de danos ambientais possam buscar reparação na Suíça.

As empresas que não cumprirem suas obrigações de diligência serão responsabilizada frente aos tribunais suíços. A implementação da iniciativa, portanto, não depende de qualquer burocracia estatal adicional.

Além disso, quando uma empresa puder demonstrar ao Tribunal que realizou a devida diligência e que tomou todas as medidas necessárias para evitar as violações, será isenta de responsabilidade. Portanto, a iniciativa tem um efeito preventivo, uma vez que proporciona às empresas um incentivo real para que cumpram suas obrigações.

Fonte: Texto traduzido do website http://konzern-initiative.chLink externo

 swissinfo.ch: Os executivos de hoje têm um perfil adequado para lidar com essas questões?

G.P.: Não tenho certeza se a questão seja o perfil, mas sim a mentalidade. Todos esses líderes, que tomaram decisões nos últimos anos, atuaram e fizeram carreira num contexto no qual essas não eram as questões em foco. E agora, dar esse passo, aceitando que esses temas ligados à responsabilidade corporativa são fundamentais, é algo que a maioria não tem feito. Portanto, acredito que precisamos de um programa de educação que atenda essas novas demandas. Hoje, engenheiros, administradores vão para a universidade e aprendem sustentabilidade. Estão conscientes desses desafios e pedem instrumentos para lidar com tais temas.

swissinfo.ch: Por outro lado, temos os consumidores. Como é possível melhorar as decisões de consumo considerando todos esses desafios?

G.P.: Temos que considerar duas motivações diferentes no que se refere ao comportamento de consumidor. Há, sim, um aumento no consumo de produtos locais e green, mas na maioria dos casos, não é algo inspirado em preocupações com o planeta. Mas, sim, por interesses de saúde de cada um. Agora, pagar um pouco a mais na blusa que compra, a fim de que o trabalhador que a produz deixe de sofrer, é algo diferente. E aqui, estamos na idade da pedra. Pouquíssimas pessoas consideram esses aspectos éticos quando tomam decisões de compra.

swissinfo.ch: Se não pelo poder dos consumidores, por onde vem a mudança?

G.P.: Precisamos de iniciativas que considerem as diversas partes envolvidas no processo. Precisamos de incentivos criados pelos governos. A empresas precisam compreender que têm um papel de educador do consumidor. Se as empresas fizerem investimentos em melhorias em seus processos e o consumidor não se importar, então, valeu pouco. Mas se o consumidor der preferência às empresas que têm uma atitude ética, sustentável, então o investimento funcionou. Portanto, é de próprio interesse das empresas educar e promover um comportamento de consumo diferente.

swissinfo.ch: E o nível de consumo?

G.P.: Outro aspecto fundamental quando falamos de consumidores, e talvez o mais crítico, é a necessidade de redução de consumo. A questão é como convencer os consumidores a comprar menos. A pergunta é: ‘será eu preciso de mais uma t-shirt?’ Nós precisamos de um mundo com menos crescimento. Isso, é claro, não é de um dia para o outro. Mas é um fato.

swissinfo.ch: Mas não vamos então entrar em colapso se crescermos cada vez menos?

G.P.: Veja o caso da China. Eles tiveram que reduzir o crescimento, porque os efeitos colaterais estão lá: água tóxica, ar poluído, comida contaminada. Eles não podem continuar assim.

swissinfo.ch: Mas não é possível crescer de forma sustentável?

G.P.: Se perguntar a biologistas, muitos vão responder: não, não é possível crescer o tempo todo. Há um limite de recursos neste planeta. Não há como os chineses, por exemplo, consumirem o mesmo volume de carne que consumimos. Então, quando falamos das decisões éticas dos consumidores ao comprar uma camiseta, por exemplo, isso não é nada se comparado ao desafio de como reduziremos o nível de consumo.

LINKS

Konzern Initiative: http://konzern-initiative.ch/Link externo

University of Lausanne: https://www.unil.ch/Link externo

Danwatch: https://www.danwatch.dk/en/Link externo

Brot für alle: https://brotfueralle.ch/Link externo

Fastenopfer: https://fastenopfer.ch/Link externo


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