“A gente não podia imaginar que isso seria possível”
O engenheiro suíço Marc Besch foi um dos primeiros a revelar as irregularidades nos motores a diesel da Volkswagen. Em um primeiro momento ele não acreditou que a multinacional tivesse deliberadamente fraudado o processo de medição e violado as lei americanas.
Bieler Tagblatt (Diário de Biel): Marc Besch, você é um “nerd”?
Marc Besch: (rindo) Possivelmente sim, um pouco.
A revista “Spiegel” lhe descreveu assim.
M.B.: É bem verdade que na prática, em cada discussão que tenho com meus colegas, tratamos de trabalho.
Você, enquanto técnico, é realmente tão apaixonado pela medição de emissões de escapamento?
Eu sou um pesquisador e tenho uma grande fascinação pela tecnologia. Também me agradam aplicações práticas, e não apenas estudar a teoria. Eu vivo já há dez anos no campus, agora como professor assistente, e passo todos os dias junto aos estudantes.
Você é um dos três pesquisadores que descobriram o maior escândalo industrial da Alemanha do pós-guerra. Você acaba de chegar de um congresso em Berlim; como reagiram as pessoas que lhe viram lá?
M.B.: Conferências têm muitos especialistas. Nesses círculos, o nosso instituto é bem conhecido. A qualidade do trabalho está em primeiro plano, enquanto o interesse da mídia é menos importante. Mas as pessoas agora me reconhecem mais facilmente, vêm até mim e fazem perguntas.
Como você chegou às pistas que levaram a esse escândalo?
M.B.: Entramos na história por meio de uma licitação para um contrato de pesquisa. Para começar, observamos que as emissões de monóxido de nitrogênio em cidades europeias eram maiores do que previam os modelos matemáticos. Esperava-se que esses níveis caíssem com a introdução de normas mais estritas para emissões de escapamento, mas isso não ocorreu.
Isso levantou a seguinte questão: os EUA tinham os mesmos veículos a diesel no mercado, mas como eles tinham que satisfazer normas mais exigentes, isso não ocorria. A ideia fundamental foi então tentar descobrir como os carros a diesel nos EUA podiam ser menos poluentes.
Não deve ter sido fácil, uma vez que o orçamento de pesquisa foi reduzido.
M.B.: É verdade; ao fim tínhamos apenas uns 70.000 dólares à disposição. É pouco quando se quer testar exaustivamente veículos nas estradas. Além disso, transferimos os testes para a Califórnia uma vez que lá existem mais veículos a diesel, e nosso laboratório móvel já estava lá estacionado.
É também uma bela experiência poder dirigir ao longo da costa do Pacífico.
M.B.: Com certeza. Era fevereiro, na Virgínia do Oeste fazia frio e nevava enquanto a Califórnia estava quente e ensolarada. Nada mal!
As medições aparentemente não foram muito fáceis, vocês tiveram que improvisar e construir novos equipamentos.
M.B.: Nossos equipamentos foram desenvolvidos para medições em caminhões, e nós tivemos que adaptá-los a um VW Jetta e a um Passat. Tivemos que integrar um gerador cujos gases nós canalizamos para fora do carro, mas o gerador fazia barulho, produzia calor, e ainda havia um compressor funcionando. Bem, nós tentamos abafar o barulho com o rádio, mas ainda assim era um belo barulho.
Isso não soa como as longas e românticas viagens dos “road-movies”.
M.B.: É claro que o trabalho era excitante, mas depois de algumas horas naquele barulho ficávamos saturados.
O que lhe passou pela cabeça ao ver os resultados das primeiras medições?
M.B.: Nós já conhecíamos a tecnologia desde nosso trabalho com caminhões. Sabíamos que quando a temperatura do motor atinge um dado grau, os equipamentos são ativados e uma significativa variação na concentração de emissões era de se esperar, por exemplo, quando se passa do tráfego urbano para a autoestrada. E essa mudança nós não vimos.
Aí então nos perguntamos: será que fizemos algo errado? Será que não calibramos direito os equipamentos de medição? Nós checamos tudo e comparamos com os equipamentos do laboratório. Nossos equipamentos estavam funcionando perfeitamente; o erro tinha que estar em outro lugar.
Os valores de poluentes estavam até 35 vezes mais elevados do que o indicado pelo fabricante. Vocês não acharam suspeito?
M.B.: Tem-se que levar em consideração que testamos apenas dois veículos com duas tecnologias distintas. Do ponto de vista estatístico, isso poderia ser um resultado aleatório. No laboratório os carros funcionaram como deveriam. Pensamos então que seria um problema técnico. Esses sistemas são bem complicados e requerem extensa calibragem. Podia ser que algum erro tivesse ocorrido.
É curioso que em seu laudo final os resultados são descritos, mas não comentados ou interpretados.
M.B.: Nós sabíamos apenas que algo não estava funcionando como deveria. Elucidar as causas dessa discrepância não fazia parte do nosso contrato de pesquisa. Não encontramos nenhum outro estudo que confirmasse ou explicasse nossos resultados.
Do ponto de vista científico, tem-se que ser cuidadoso com as conclusões a que se chega. Afirmações além do que publicamos teriam sido apenas suposições, e não resultados cientificamente baseados.
Não lhe ocorreu que poderia se tratar de fraude?
M.B.: Entre nós brincamos que poderia se tratar de um ato deliberado. Sabíamos, contudo, de um caso parecido ocorrido nos EUA em 1998 onde, no teste de caminhões, um erro de software nos equipamentos do laboratório indicava níveis de emissões melhores do que aqueles observados durante medições feitas em operação nas ruas. Esses fabricantes foram penalizados com bastante severidade. Nós não podíamos acreditar que o maior fabricante de automóveis do mundo fizesse algo assim de maneira deliberada.
A agência californiana de inspeção ficou bem interessada depois que vocês apresentaram seus resultados.
M.B.: Nós já tínhamos tido contato com eles durante o projeto. Nosso relatório deu a eles a oportunidade de entrar em ação. A agência tinha os meios para levar a cabo uma investigação mais ampla.
Quando você soube afinal do que se tratava?
Nós soubemos em janeiro de 2015 de um “recall” de certos modelos de veículos da Volkswagen, e pensamos então que nosso trabalho tinha aparentemente ajudado a identificar um problema técnico. No dia 15 de setembro de 2015 nós soubemos então da verdadeira razão através da mídia.
O que lhe passou pela cabeça?
Eu lamentei. A tecnologia dos engenheiros alemães era, também nos EUA, muito admirada. Eu jamais teria pensado que engenheiros alemães lançariam mão de tais ardis para melhor colocar seus produtos no mercado.
Eu tenho colegas que trabalham como engenheiros na GM. Os executivos da GM fizeram grande pressão sobre eles para que eles apresentassem um produto que igualasse os níveis de emissão da Volkswagen mas, a despeito de seu grande empenho, eles não conseguiram.
É também uma pena que alguém pegue atalhos para conseguir vantagens econômicas. Em si, a tecnologia é boa, como vimos no caso dos caminhões.
A Volkswagen já gastou 25 bilhões de Euros como consequência dessa fraude, e pessoas se encontram presas. Com certeza a Volkswagen não vai lhe oferecer um emprego tão cedo.
M.B.: Possivelmente ninguém do nosso grupo. Mas também é verdade que existem firmas de software que contratam “hackers”.
A Volkswagen mostrou uma considerável intenção criminosa. Na Europa existem anualmente 4500 mortes prematuras devido a emissões de poluentes. Quando um carro emite 35 vezes o nível permitido, estamos falando aqui na verdade de risco à vida das pessoas.
M.B.: Certo. Mas considerando o longo prazo, nós temos também que relativizar as coisas. Os níveis de emissão absolutos efetivos de hoje são menores do que os de há 10 anos, ou seja, ocorreu também progresso.
Mas a manipulação deliberada de níveis de emissão, ciente das consequências para as pessoas e para o meio-ambiente, além da deliberada violação de leis, isso é sim criminoso.
Será que temos que ver o setor de automóveis como vemos o ciclismo dos anos 1990? Estão todos trapaceando?
M.B.: Esse setor é extremamente competitivo, e tenta economizar gastos em todos os cantos. Não é nenhum segredo que os fabricantes tentam obter vantagens onde puderem. Pode-se até dizer que o legislador não compreendeu como as tecnologias realmente funcionam e se omitiu de definir regras de controle efetivas.
Apenas após o escândalo do diesel ficou clara a urgência da situação. Desde o dia 1° de setembro de 2017, carros têm que ser certificados rodando nas estradas, e não apenas na pista de testes.
Você se refere à ética dos engenheiros; como explicar então que na Volkswagen a coisa tenha ido tão longe? Não eram apenas alguns poucos indivíduos que sabiam da fraude.
M.B.: Eu pensei a respeito com frequência. Um advogado me disse em uma conversa: é com os contadores que pode-se encontrar a resposta sobre como isso pôde acontecer. Eu suponho que o risco envolvido e a expectativa de ganho foram calculados e postos em uma balança. Ao final das contas, cada envolvido tem sua própria história, sofreu talvez suas pressões, e considerou o sustento de sua própria família.
Seria necessário um código de conduta para engenheiros que prescrevesse que eles jamais utilizem sua capacidade para a fraude?
M.B.: Ao final de meus estudos em Biel me foi dito que eu não deveria usar meu trabalho de forma a causar danos às pessoas como, por exemplo, desenvolvendo armas. O etos fundamental dos engenheiros deveria ser o de melhorar as coisas.
O chefe do seu instituto, Dan Carter, foi escolhido pela revista Time em 2016 como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Ele também deveria agradecer essa distinção a você, não?
M.B.: Nós vimos isso como um reconhecimento para o grupo inteiro. Nosso time funciona como uma família. Quando não trabalhamos juntos, passamos nosso tempo livre juntos. Depois do expediente não vamos direto para casa, mas sim tomamos algo juntos e discutimos os resultados.
O setor automobilístico alemão se saiu bem no recente encontro de cúpula do diesel. Ao invés de uma custosa troca de componentes dos carros, os fabricantes tiveram apenas que fazer uma atualização de software. O que se deve pensar a respeito?
M.B.: Com a atualização do software, as emissões ficam aparentemente dentro dos níveis permitidos na Europa. Nos EUA, por outro lado, uma parte dos veículos não pode mais ser vendida no mercado, por não ter a tecnologia requerida para alcançar os níveis prescritos. Outras categorias de veículos têm que ter componentes trocados. A solução final ainda não foi definida. Para a VW essa estória ainda não acabou.
Em todo caso tem-se a impressão de que os políticos na Alemanha lidam com a questão com demasiado cuidado, em se tratando da VW. Há uma sensível colusão, sendo que até discursos de governadores de estados alemães foram escritos e/ou editados pela VW. Como você vê essa relação?
M.B.: Com certeza é melhor que o legislador, o regulador e o produtor mantenham uma distância clara e suficiente um do outro. Isso vale para qualquer sistema.
Como você vê o futuro dos motores a diesel?
M.B.: No setor de transportes o motor a diesel vai continuar sendo a principal tecnologia de propulsão, ao menos no futuro próximo. Ainda não há substituto economicamente viável. Com grande probabilidade, o diesel vai desaparecer em carros leves, haja vista que os custos para as requeridas reduções nas emissões são demasiado altos.
Eu li que você tem um velho Jeep.
M.B.: Não, é um novo Jeep. Eu o comprei por puro interesse na tecnologia.
Boa resposta!
M.B.: (rindo) Eu gosto de carros.
Mas é um carro bem grande.
M.B.: Sim, mas para o contexto americano, nem tanto. A razão da compra foi realmente a tecnologia: o carro tem uma tecnologia de emissão na mesma linha da minha pesquisa.
Dirigir um carro elétrico não lhe apetece?
M.B.: Sem dúvida existem aplicações para as quais o motor elétrico faz muito sentido. O problema é que quase ninguém está disposto a abrir mão do conforto usual, como a frequente necessidade de recarregar o carro.
Para mim, um carro existe basicamente para me levar de A até B, com a maior eficiência possível e o menor impacto negativo sobre o meio-ambiente e as pessoas. A tecnologia que melhor servir a esse propósito deve prevalecer.
Com essa atitude, você se distingue de alguns moradores da sua região na Virgínia do Oeste. Um hobby popular lá é desmontar os filtros das pick-ups e cobrir de fumaça pedestres e ciclistas nos cruzamentos. É difícil imaginar que num tal lugar o futuro esteja sendo desenvolvido.
M.B.: Eu também fico irritado quando vejo uma coisa dessas. É insalubre e, para mim, difícil de entender porque alguém prejudicaria um inocente. A despeito disso, nosso instituto é muito renomado pelas medições aplicadas de emissões.
Como você vê o futuro?
M.B. A atmosfera universitária me agrada, lá posso pesquisar, ser mais livre e flexível. Gosto do trabalho com estudantes vindos de todo o mundo, e com quem eu sempre aprendo novas coisas. Do ponto de vista da minha carreira, não seria uma má ideia adquirir um pouco de experiência na indústria.
Você pensa em voltar à Suíça?
M.B.: Minha ideia inicial era fazer o meu mestrado de dois anos nos EUA; entrementes, já se foram dez anos. Algum dia eu gostaria de voltar à Europa ou à Suíça, sobretudo se você já viu a pequena cidade universitária de Morgantown.
Sua saudade de casa não parece ser arrebatadora.
M.B.: E não é mesmo, yeah.
Adaptação: Danilo von Sperling
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