João Gilberto: a ausência que preenche uma lacuna
O jornalista alemão Marc Fischer passou cinco semanas em 2010 obcecado com a ideia de encontrar e entrevistar João Gilberto, o recluso gênio da bossa nova. Fischer encontrou-se com amigos, ex-parceiros, familiares - sem sucesso. Sua busca acabou virando um livro que o documentarista franco-suíço Georges Gachot encontrou certo dia numa livraria em Berlim, mas o autor havia se suicidado pouco antes da publicação. Gachot decidiu seguir os passos de Fischer: o livro virou um filme, que estreia hoje em 12 cidades da Suíça alemã, e em outubro na Suíça francesa. Enquanto isso, João Gilberto continua sumido.
Mas o paradeiro de João Gilberto, homem e mito, inventor da Bossa Nova e uma das mais excêntricas personalidades da música brasileira, não é mistério algum. João vive num apartamento alugado na rua Carlos Góis, em Ipanema (Rio de Janeiro), mas encontra-se lá trancado, avesso a qualquer contato social, há décadas. Gachot, que já havia realizado três longa-metragens sobre música brasileira (com Maria Bethânia, Nana Caymmi, e Martinho da Vila), é suficientemente bem conectado para chegar perto de João Gilberto, mas a busca de Fischer lhe pareceu muito mais significativa.
Pela primeira vez em sua filmografia, Gachot deixa de lado o registro “fly on the wall” – mosca na parede, i.e., simples registro dos acontecimentos – e se joga para frente da câmera. Como personagem e narrador, seguindo os passos de Fischer e encontrando as mesmas pessoas que o alemão, Gachot transforma seu documentário quase numa ficção, num filme de detetive.
Aliás, era justamente como um detetive que Fischer se via, assinando suas mensagens para sua ajudante e intérprete no Rio, Rachel Balassiano, como “Sherlock”, e chamando-a de “Watson”. Gachot assume as fantasias e ansiedades de Fischer num jogo de identificação que chega a praticamente fundir as duas personalidades, o que rende ao documentário-ficção sequências espontaneamente poéticas, saltando do roteiro rigorosamente elaborado.
O filme foi recebido calorosamente no Brasil, assim como no último Festival de Cinema de Locarno. Pouco antes de sua estreia na Suíça, Gachot recebeu swissinfo.ch para um bate-papo em seu escritório em Zurique. Leia a seguir os principais trechos da conversa.
swissinfo.ch: No filme, há uma abundante mistura de línguas. Enquanto as conversas são um misto de francês, inglês e português, as leituras dos trechos do livro de Marc Fischer em off, assim como os seus pensamentos, são em alemão. Isso foi acontecendo naturalmente durante as filmagens, ou você já tinha essa voz em mente quando começou a realizar o filme?
Georges Gachot: Com Miúcha eu sempre falei mais francês que português, mas agora ela diz que meu português é melhor que o francês dela, e ela só fala em português comigo… o que é uma pena (risos). Mas a língua é uma forma de aprofundamento da nossa amizade, pois conheço Miúcha desde 2003, quando filmava “Maria Bethânia”.
Quanto ao off em alemão, bem… o livro que adquiri em Berlim era em alemão, a língua de Marc Fischer era o alemão, então era claro que eu deveria ler os trechos do livro no original, assim como meus comentários pessoais, afinal eu moro em Zurique há muitos anos, e falo alemão todos os dias, o que me agrada, e a linguagem de Fischer me tocou bastante.
Mas para o lançamento do filme no Brasil, pensamos em dublar todas as passagens em alemão para o português, só que depois de algumas projeções lá, percebemos que os brasileiros ficaram bastante tocados pela língua alemã. Como dizia Caetano Veloso (parafraseando Nietzsche), “só é possível filosofar em alemão”… além disso, só em alemão é possível traduzir a palavra ‘saudade’, ‘Sehnsucht’. Em francês não dá, seria ‘nostalgie’, mas não é a mesma coisa, não se trata de nostalgia, que é algo que remete ao passado, e em inglês muito menos. O alemão, assim, é muito mais próximo do sentido em português. Talvez seja por isso que Fischer se deixou cair nesse turbilhão de saudade, de Sehnsucht. O filme é levado pela língua alemã e pela língua portuguesa, e essa mistura é muito importante, inclusive para marcar a presença de Fischer.
swissinfo.ch: Esse tema de uma busca por uma pessoa elusiva é recorrente no cinema e na literatura, onde se faz da ausência uma presença constante…
G.G.: Exato, e mesmo que encontrássemos o que estamos buscando, isso não seria algo palpável. Há diversas pessoas que estão presentes pela ausência, como Bebel (Gilberto, filha de João), o próprio João Gilberto, claro, e Marc Fischer que aparece apenas em fotos e em seu livro. Isso tudo dá um tom bastante melancólico ao filme.
Há porém um lado um tanto burlesco mais pro final, e há várias cenas que os brasileiros morrem de rir, como na sequência do banheiro em Diamantina onde João Gilberto ‘inventou’ a bossa nova, ou os diálogos com seu empresário Otávio Terceiro. Nessa hora até parece uma ficção, pois Otávio é uma figura. Mas tudo isso saiu naturalmente, e o filme é cheio de ausências, é um filme sobre o ‘hors champ’, sobre o que está fora do quadro, fora da imagem.
E num filme como este, que trata da saudade, essa abordagem se faz ainda mais importante. Há diversos planos longos, sem closes – coisa que irritou o co-produtor alemão, que queria uma linguagem mais televisiva, mas este não era o objetivo. Eu procurei sempre criar uma distância com o objeto do filme.
“Se a gente finalmente chegasse nele (João Gilberto), mostrando como ele é de fato, o filme simplesmente afundaria”
swissinfo.ch: Você considerou a possibilidade de João Gilberto de repente concordar em lhe receber? Isso não destruiria a intenção original do filme?
G.G.: O ponto de partida do filme era respeitar o fato de que Marc Fischer não conseguiu encontrar João Gilberto, assim em princípio eu também não queria me mostrar como mais esperto e mais inteligente que Fischer. E quem sabe eu poderia mesmo tê-lo encontrado, mas ao longo de todo o filme o mais importante era construir uma relação entre Fischer e eu até o ponto em que eu gostaria que ele escrevesse um capítulo sobre um encontro de nós dois, pois no fim ele era como um irmão que eu nunca conheci, com quem eu queria partilhar certas coisas, como o eventual sucesso em finalmente encontrar João Gilberto.
Mas quando eu contava aos meus amigos brasileiros como tivemos sorte durante as filmagens com a luz, com as brumas e efeitos de fotografia que aconteciam exatamente como desejávamos, eles diziam que era o espírito de Marc Fischer que estava dando uma mãozinha.
Isso tudo era muito bom, mas também me causava uma certa ansiedade, pois havia a presença desse fantasma, que já habita esse livro, esse filme, que está em todos os lugares em que íamos filmar, e dá para ver no filme como sou afetado por essa ausência, pelo fato que estava seguindo o mesmo caminho que ele, e tentando não cair nas mesmas armadilhas que ele caiu.
E se eu realmente quisesse encontrar João Gilberto – e evidentemente eu sempre quis encontrar com ele, até o último minuto… mas o problema é que o filme constrói um mito e o espectador constrói por sua vez uma ideia deste gênio, e toda a sua música remete a uma porção de coisas, mesmo para o espectador europeu que não conhece quase nada de João Gilberto.
O filme trabalha o imaginário do espectador, e se a gente finalmente chegasse nele, mostrando como ele é de fato, seja gordo, magro, assim ou assado, o filme simplesmente afundaria. E o modo como o filme por fim o encontra se dá de uma maneira cinematográfica, mágica até, eu diria.
O final, aliás, eu considero como um presente de João Gilberto a Marc Fischer.
swissinfo.ch: Mas no fim das contas, você desmistificou a figura de João Gilberto…
G.G.: Sim, mas com respeito. Afinal, é difícil, senão impossível fazer uma entrevista normal. Quando fiz o documentário sobre Martha Argerich, a pianista argentina, a coisa se deu como um bate-papo, a gente trocou ideias, experiências e gostos em comum, e ela estava à vontade. Se fosse uma entrevista seca, de perguntas e respostas, Martha jamais teria concordado em fazer.
Com João Gilberto, imaginei o mesmo. Eu iria a seu apartamento e conversaríamos sobre Bach e sobre Mozart, e ele me falaria de Tom Jobim ou de paralelos musicais e tal. Porém, no meu filme aprende-se bastante sobre João Gilberto, mas de uma maneira alegórica.
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Gachot e suas obras
swissinfo.ch: Você começou fazendo filmes de música clássica, e aí descobriu a música brasileira. Este já é seu quarto filme sobre o assunto, mas você jamais deixou de lado a música clássica. As duas coisas andam em paralelo na sua cabeça?
G.G.: Na verdade, hoje em dia eu escuto bem menos música clássica, mas quando eu escuto, eu o faço de maneira muito mais forte, mais intensamente. Minha sensibilidade musical mudou. Por exemplo, é muito difícil para mim ouvir ópera hoje em dia. Quando ouço Puccini, Don Giovanni, eu desmonto, não consigo mais (de tanta emoção).
Mas eu acho importante a gente diversificar nossa cultura, pois a gente nunca esquece nada, as coisas vão e voltam. E nem é o caso que deixei a música clássica para escutar mais música brasileira, afinal você vai achar traços de Rachmaninoff ou Tchaikovsky em Tom Jobim, por exemplo, e outras influências clássicas em Chico Buarque. Isso só demonstra a universalidade da arte.
swissinfo.ch: Você tem alguma ideia por que Marc Fischer se suicidou?
G.G.: Ele não deixou muitas pistas. Cronologicamente, isso aconteceu pouco depois de seu retorno do Brasil, poderia-se dizer que há uma relação entre as duas coisas. O que é certo, e isso está bem claro no livro, é que ele havia caído em depressão após acabar de escrever este livro, que ele escreveu muito rapidamente, em janeiro de 2011, e depois há uma acumulação de doenças ligadas à depressão. E ele ainda tinha medo que João Gilberto não fosse gostar do livro, pois não é um livro factual, jornalístico, há várias anedotas pessoais, e ele trata João Gilberto como um fantasma, como alguém que uiva para a lua.
Enfim, Fischer entrou dentro de sua própria história e se perdeu lá dentro. Mas sua vida era assim, plena de nostalgias, creio. Ele era uma pessoa que viajava o mundo inteiro, seus autores preferidos eram pessoas que também haviam se suicidado, como Hemingway, por exemplo. Ele tinha uma afinidade com a morte muito especial, era um sujeito muito inteligente e que tinha escrito vários livros. Ele almejava fazer “la grande littérature”, mas aí chegou na crise dos 40 anos, e enfim…
Quando conheci os pais dele, eles se deram conta de que eu estava seguindo um caminho idêntico ao dele, mesmo que fôssemos pessoas muito diferentes, mas eu senti uma grande responsabilidade em relação aos pais, por toda a confiança que eles depositaram em mim. Na verdade, com este filme eu assumi um monte de grandes responsabilidades: com João Gilberto, sua música, com a sua biografia, com Fischer…
swissinfo.ch: E os pais de Fischer gostaram do filme?
G.G.: Sim, eu fiz uma projeção para eles em Hamburgo, foi um momento bastante tenso, principalmente para mim, pois eles não sabiam o que esperar, eles não tinham conhecimento de todo o material que levantei sobre Fischer, seus vídeos, e sua mãe me disse que ela até então não tinha conseguido entender por que ele havia feito tudo aquilo, e que de certa forma o filme lhe deu uma resposta.
swissinfo.ch: O senhor tem outros projetos de filmes relacionados à música brasileira?
G.G.: Depois das primeiras exibições no Rio e em São Paulo, algumas pessoas me procuraram com ideias, mas fazer um filme é uma coisa muito complicada. E eu gostaria de me lançar na ficção agora. Este filme tem um lado bem ficcional, mesmo sendo um documentário. Quer dizer, ele não é como o filme de Maria Bethânia que é um documentário no sentido estrito, com a câmera ligada o tempo todo registrando tudo, observando. Este filme é diferente, muitas vezes você não sabe se ele é real ou irreal, e a gente fica meio perdido nos conceitos. E isso tudo me deu ainda mais vontade de fazer ficção.
swissinfo.ch: A trilha original, composta por João Donato, também surgiu espontaneamente?
G.G.: Sim, todas as músicas de detetive foi ele quem compôs, a gente gravou no apartamento dele lá na Urca, ele tocou quase todos os instrumentos, o piano, a guitarra, bateria. Foi uma super aventura trabalhar com esses músicos tão geniais. João Gilberto também fez duas gravações para o filme, ‘Obalalá’ e ‘Valsa’, esta última sem editora, assim que o próprio João Gilberto assinou a cessão dos direitos desta e das másters, o que foi outro grande milagre. Pois tudo que tem a ver com João é mistério.
swissinfo.ch: E você se sentiu mais próximo de João Gilberto ao fim das filmagens?
G.G.: Eu nunca tive a ambição de ficar amigo de João Gilberto. Eu sei que existem muitos artistas que precisam de pessoas que consagrem toda sua vida a eles, que se ofereçam de corpo e alma a eles, mas para mim estava claro que assim que terminasse este filme, iria partir para outro projeto, outro artista, outra história.
swissinfo.ch: Você não costuma criar um laço emocional mais forte com seu objeto?
G.G.: Não necessariamente. Com Maria Bethânia nos tornamos “irmãos”, a gente troca mensagens de whatsapp frequentemente, o mesmo com Miúcha, com Naná Caymmi, Caetano. Quando vou ao Rio sempre os visito, e nem preciso fazer qualquer plano pois logo na primeira noite alguém me chama para um show, no dia seguinte a mesma coisa, sempre tem algo rolando.
swissinfo.ch: Se você fosse fazer um filme novo de MPB, quem seria o biografado?
G.G.: Adoraria fazer um filme sobre Caetano Veloso, o que não é nada simples. Mas eu não gostaria de fazer uma biografia tradicional, me interessa achar um ângulo inusitado para explorar a vida de um artista. Um jornalista no Brasil me contou que encontrou um roteiro escrito por Glauber Rocha sobre João Gilberto, algo que pouquíssima gente sabe, e isso me interessaria bastante. Quero misturar esse lado ficcional no documentário, nada muito biográfico, e tenho certeza que Caetano também gostaria de uma coisa assim.
swissinfo.ch: Quando você fala em ficção, que tipo de ficção seria?
G.G.: Neste filme de João Gilberto, a minha vida real se transformou numa projeção que eu fiz de mim mesmo através do livro (de Fischer), ou seja, como se eu tivesse fundido a minha vida com a de Fischer, como se eu tivesse emprestado minha voz a Fischer, e é aí que a coisa se torna ficcional. Em um certo momento, você não sabe mais se é Fischer ou Gachot que fala. Acho que seria nesse sentido.
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