Raffaela Perucchi, ou a elegância (quase) sem sotaque
De viajante curiosa a poderosa "trendsetter" da moda - a trajetória da estilista Raffaela Perucchi está intimamente ligada à evolução dos editoriais de moda e estilo no Brasil dos últimos 30 anos. De volta à Suíça definitivamente, Perucchi recebeu swissinfo.ch em seu apartamento em Lugano, abrindo seus arquivos e impressões sobre a Suíça e o Brasil.
“Brasil: país do futuro“, foi com essa frase na cabeça, título do livro de Stefan Zweig (Brasilien, Ein Land der Zukunft, de 1941) , que a suíça Raffaella Perucchi embarcou em janeiro de 1981 no navio Costa, no porto de Gênova, para atravessar o oceano Atlântico rumo a Santos.
A parada de um dia no Rio de Janeiro só aumentou as expectativas. Lá estavam todos os clichês: a paisagem deslumbrante de praias e morros cobertos pela densa floresta tropical, belos corpos bronzeados circulando pela orla em trajes de banho minúsculos, o calor do verão carioca. Um dia depois, já em Santos, Perucchi entrava numa kombi de estofado puído e dava de cara com um objeto exotiquíssimo para um europeu: um câmbio de carro revestido por uma bola de vidro com um caranguejo morto em seu interior. “Lança Perfume”, de Rita Lee (https://www.youtube.com/watch?v=GDS5dDQ4_LI)Link externo ecoava no veículo, num volume suficiente para ser ouvido por toda Santos.
Horas antes, Perucchi vira todas suas malas descerem do navio mas só encontrou uma à sua disposição. As outras foram roubadas. O choque de realidade continuou e progrediu com a entrada em São Paulo pela via Anchieta. O Brasil país do futuro, do Carnaval grandioso e do Rio charmoso, havia se transformado numa grande periferia caótica, algo totalmente inesperado.
O Brasil real
Passado o impacto com o Brasil verdadeiro, que nem de longe parecia o país do futuro, foram trinta e dois anos de trabalho no país que lhe renderam um português quase perfeito, sotaque mínimo e um humor totalmente brasileiro.
A ideia inicial era passar dois anos no Brasil, país que conhecera através de uma colega de curso em Paris. Logo após se formar em Design Têxtil no CSIA (Centro Scolastico per le Industrie Artistiche) em Lugano, Perucchi seguiu para a capital francesa para cursar Moda no então famosíssimo Studio Berçot. Foi lá, em 1979, que uma brasileira soprou o canto da sereia que não saiu mais da cabeça de Peruchi: “Brasil, o país do futuro”.
“Fiquei encantada com o que ela contava do Brasil, ela repetia que o país estava precisando de profissionais estrangeiros, formados e especializados. Dois anos depois de me formar no Berçot, decidimos, eu e meu então companheiro, um suíço de Lugano como eu, realizar uma experiência no Brasil. Marie Rucki, a diretora do Studio Berçot, já costumava ir para São Paulo desde 1975 a convite da Rhodia, seus workshops eram cobiçadissimos e famosos, então tudo parecia realmente conspirar a favor”.
Perucchi, nascida em Lugano de pai ticinese e mãe zuriquenha, tinha vinte e três anos quando desembarcou no Brasil. Das aulas de português que frequentou no Migros Klubschule percebeu que efetivamente não aprendera muito mais do que o básico “bom dia, boa tarde, boa noite, por favor, obrigada”.
“A professora era uma brasileira, e nós dois éramos os únicos alunos. Ela adoeceu logo em seguida e ficamos sem curso. Chegando no Brasil não foi fácil a comunicação, mas a maioria das pessoas entendia um pouco de italiano. Fiquei impressionada como, por exemplo, todos os taxistas paulistanos diziam : “ah eu sou descendente de italiano, minha avó era italiana”, etc. Percebi que ser italiano era maravilhoso, o brasileiro simplesmente adora e tem imediata empatia e simpatia. Era muito complicado explicar que eu era da Suiça, para todos eu era ‘a italiana’”.
Além da língua, Perucchi teve que enfrentar o sumiço dos brasileiros no verão. Para quem não está habituado, no Brasil as férias de verão começam no Natal e muitas vezes só terminam depois do Carnaval. “Assim que chegamos em São Paulo, fomos para o apartamento dessa brasileira que conhecíamos do curso em Paris, a mesma que nos convenceu de que o Brasil era o país do futuro. Era janeiro, a cidade estava vazia, todo mundo estava viajando de férias. O primeiro mês foi de quase pânico, pensei algumas vezes: meu Deus onde fomos parar?“
Foi um outro amigo brasileiro, que também morava em Paris na mesma época, que a resgatou das intermináveis férias de verão brasileiras e mudou o rumo de sua trajetória no país. “Já que todos estavam de férias, esse amigo nos levou para passar uns dias na fazenda da família no interior de São Paulo, em Araçatuba. Foi ali que meu contato com o país começou de verdade, o Brasil em sua melhor essência, as pessoas carinhosas, acolhedoras, divertidas e muito generosas. Tudo me deixava fascinada naquelas paisagens, até as churrascarias de estrada. Parecia que eu estava nos Estados Unidos, no Texas. Até o sotaque do interior para uma leiga recém-chegada tinha um quê de americano”.
Depois da temporada no interior de São Paulo, na fazenda, terminado finalmente o Carnaval, as coisas começaram a acontecer. Os amigos brasileiros de Paris apresentaram novos amigos paulistanos e Perucchi foi chamada para fazer estampas de camisetas em uma grande confecção. Uma coisa leva à outra, um amigo lhe apresentou a outro, e logo ela estava trabalhando como figurinista de teatro e de carnaval, como designer têxtil, estilista, arquiteta de interiores, e professora de moda ao lado do então conhecidíssimo e cultuado performer Patricio Bisso – e nas horas vagas, ainda fazia ilustrações.
Em paralelo, Perucchi começou a trabalhar como produtora para a revista Casa Vogue. Foi na Vogue e suas revistas que Perucchi construiu uma carreira consistente de 1984 a 2011, primeiro como produtora, e depois galgando os degraus como coordenadora de produção, editora de fotografia e, finalmente, editora de Estilo, uma função bastante cobiçada nas revistas.
“Com o tempo meu papel se firmou como editora de Estilo, e passei a fazer parte das reuniões de pauta propondo diretamente minhas ideias e conceitos. Após muitos anos na Casa Vogue passei para a Vogue Jóias, Vogue Noivas e Vogue RG, sempre como Editora de Estilo”. Era ela quem dava a linha de “chiqueza“ para as publicações, era a partir da estética dela que as revistas Vogue influenciavam o gosto das leitoras numa época em que internet era ficção.
Perucchi passou a figurar, como personagem, nas revistas e colunas sociais. E num passe de tempo, de muito trabalho mas também de muita diversão, a suíça que mal falava “por favor, obrigada” em português quando deu de cara com aquele câmbio exótico no porto de Santos, havia se transformado num ícone de estilo no Brasil, ao lado de Costanza Pascolato, Gloria Kalil e Regina Guerreiro.
“Foram anos sensacionais nas Vogues, conhecer os bastidores é sempre revelador e um privilégio. Conheci pessoas interessantíssimas, do Brasil inteiro, e personagens internacionais; posso dizer que a vida numa editora, quando vivida full time, 24 horas, se torna a tua família. Aliás neste trabalho é melhor não ter família pois a dedicação e os horários são totalmente fora do padrão”.
A morte súbita do pai, em 2005, foi o início do retorno às origens. “Antes de voltar para a Suíça quis tentar um sonho, ou seja, morar meio aqui e meio lá. Fiz isso por sete anos. Vinha para Lugano três ou quatro vezes por ano. Não deu certo. O ritmo de trabalho e de vida no Brasil foram muito abalados pelas interrupções. Aqui na Suíça também não funcionou. Eu criava uma virada dos ritmos da minha mãe e da minha irmã, não conseguia me encaixar de uma maneira proveitosa e produtiva, e apesar da felicidade de estarmos juntas, era na verdade inconveniente. Financeiramente foi um desastre!”
Em 2010, Perucchi decidiu-se pela Suíça. “Com a morte do meu pai, eu queria aproveitar e curtir a minha pequena família, com a qual tinha convivido muito pouco. No Brasil não tinha formado uma família minha, portanto a decisão de voltar para a Suíça não foi difícil”.
Lugano
Perucchi mora hoje num confortável apartamento de frente para o lago de Lugano cheio de referências brasileiras, com a mãe, a irmã e Jackie, a cadela xodó da raça corgi. Trabalha num projeto que começou ainda no Brasil, em 2007, de ilustrações feitas no computador em cima de fotos de cachorros, e acaba de concluir um calendário, onde fez todas as fotos, para a fundação Fiordaliso.
Não se arrepende de ter voltado à Suíça e nem de ter partido para o Brasil. “Eu sempre fui suíça, mas integrada perfeitamente no Brasil. Me definiam como a suíça mais brasileira ou a brasileira mais suíça que conheciam. Nunca me deixei levar pelas coisas tentadoras, as muitas mordomias brasileiras. No Brasil, sentia muita falta de ter estações definidas como temos na Suíça. Aqui sinto falta da liberdade e leveza do brasileiro, com todos os seus defeitos e qualidades. E dos espaços… Meu Deus, como tudo é pequeno e às vezes sufocante aqui! Sinto até falta, paradoxalmente, do amadorismo profissional brasileiro, pois o mundo não é mais engessado ou rígido, precisamos nos virar com o que temos e isso os brasileiros fazem muito bem. No Brasil, porém, era do profissionalismo suíço que eu mais sentia falta!”.
Entre Brasil e Suíça, Perucchi fica com os dois. “Desde muito pequena meu pai me ensinou um ditado: tutto il mondo é paese. Não existe lugar perfeito. Cada pessoa tem mais afinidades com uma ou outra cultura. Eu posso dizer que tenho absoluta e total afinidade com o Brasil, que eu nunca enxerguei como um país típico da América Latina. O Brasil é único e inimitável, exatamente como a Suíça. Dois países sui generis, peculiares, que fazem parte de continentes bem definidos e ao mesmo tempo têm vida própria”.
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Raffaela Perucchi
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