Professora de balé dá aulas de dança e determinação
De crianças pequenas a aspirantes a bailarinas profissionais e coreógrafos ecléticos, ninguém deixa a Basel Dance Academy sem uma lição de coragem. A força motriz da academia, unindo bailarinos de todas as idades em duas apresentações anuais, é Galina Gladkova-Hoffmann.
A morena cheia de força de vontade desliza sobre as pistas de dança em vinil em uma cadeira de rodas, enquanto instrui seus alunos a como fazer “plie”, piruetas e aperfeiçoar o seu “pas-de-deux”. Ela os guia combinando sua voz aos gestos com as mãos.
Gladkova foi bailarina profissional no Basler Ballett antes de sofrer um acidente de cavalo que a paralisou do pescoço para baixo, sendo forçada a reconstruir sua vida do zero.
Ela é entrevistada por swissinfo.ch após passar semanas intensas preparando estudantes para se apresentarem no Theatre La Coupole, próximo a Saint-Louis, na França: duas noites de apresentação no mês de junho, sem qualquer imprevisto, que deixaram pais e filhos orgulhosos e realizados.
Gladkova observava seus dançarinos dos bastidores, enquanto eles executavam trechos do balé clássico de La Bayedère de Ludwig Minkus, além de uma suíte de tango estonteante ao som da banda russa Taverna Furor, que viajou da cidade de Tambov para a ocasião. O clima de cada cena se desenrolava em seu rosto: uma sinfonia de olhos cintilantes, olhares penetrantes e sorrisos arrebatadores.
Particularmente orgulhoso, naquela noite na plateia, estava o seu próprio pai, Nikolai Ivanovich Gladkoff.
“Galina é uma lutadora”, disse ele durante o intervalo para swissinfo.ch. “Ela gosta de definir e alcançar seus objetivos. É muito forte e motivada, tenho muito orgulho dela”.
Christine Stauffer, mãe de Marina, estudante que fez um estágio de quatro anos com Gladkova, também era só elogios. Ela creditou “a enorme quantidade de energia que [Gladkova] distribui, apesar de sua deficiência. Ela está sempre limitada, porém não se esquiva de todo o trabalho duro”.
Um pequeno exército de mães e pais ajuda a realizar o show nos bastidores, garantindo que as crianças se arrumem a tempo.
Tanto os estudantes de balé quanto os pais costumam usar a palavra família para descrever a comunidade que cresceu no estúdio de Gladkova, no quarto andar de um edifício de negócios em Holeestrasse, na Basileia. O local é estreito e simples, amplificado por uma parede estratégica de espelhos, mas tem a vantagem de ser acessível a cadeiras de rodas e não está longe da casa de Gladkova.
Dança, música, marcos e mentores
Dança e música são cromossomos sobrepostos no DNA de Gladkova. Nascida em Toronto, em 15 de junho de 1959, seu primeiro nome é uma homenagem à bailarina russa Galina Ulanova. A mãe de Gladkova, Adelaide, assistiu à performance final da lenda do século 20 na arena canadense Maple Leaf Gardens, pouco antes de entrar em trabalho de parto.
Um profundo amor pela dança corre nos dois lados da família. Seus pais –originalmente da Ucrânia, que se conheceram na Alemanha depois de fugir da repressão na Rússia Soviética – fizeram aulas de dança de salão juntos até os 80 anos de idade. Eles haviam migrado para o Canadá passando pela Bélgica, onde seu pai, que estudou medicina, trabalhou como mineiro de carvão por sete anos.
Quando menina, Gladkova praticava seus primeiros movimentos e se apaixonou pela música enquanto sua irmã mais velha tocava piano de cauda. Sua mãe a levou para a primeira de muitas aulas de dança com Lessia Tuhay-bey, uma bailarina do Tartaristão alçada à fama ao dançar com o Moiseyev Dance Ensemble.
Chegar às aulas envolvia uma viagem de ônibus de uma hora, que valeram a pena. A professora de piano já havia sinalizado o talento da pequena para Janet Baldwin, uma das pioneiras da dança profissional no Canadá, ao lado de seu marido Boris Volkoff. “Essa era uma educação adequada”, relembra Gladkova, que trocou de escola de balé aos 8 anos de idade. “Não era apenas uma aula de balé para passar o tempo”.
A virada seguinte veio naquele mesmo ano de 1967, quando Gladkova participou do primeiro de muitos acampamentos de verão de dança. “Isso implicava estar longe de casa pela primeira vez e também aprender a amar a minha arte. Eu tive uma infância muito, muito, muito ocupada”.
Quando ficou mais velha, ela também frequentou o curso de verão na Escola de Belas Artes de Banff, em Alberta, no Canadá. Lá ela teve a sorte de aprender com dois professores russos da Academia Bolshoi. Então imediatamente mudou seu status de estudante comum para estudante com responsabilidades de tradutor, um feito que lhe rendeu uma bolsa de estudos completa em dois verões consecutivos.
Duras escolhas
Um de seus anos mais difíceis, porém bem-sucedido, foi o ano de 1978. Ela havia sido aceita na Faculdade de Medicina da Universidade de Toronto, completara seu exame final da Academia Real de Dança e alcançara o 8o grau no exame de Contrabaixo. Tudo isso combinando sua agenda de treinamento intensa com o ensino de dança, além do estudo de russo nos finais de semana.
Havia, então, chegado a hora de fazer uma escolha: tornar-se uma dançarina profissional, musicista ou realizar o sonho antigo de seu pai sendo médica?
A escolha foi fácil: ela partiu em um pequeno Honda Civic para o Harkness Dance Center de Nova York, com um contrabaixo no assento do passageiro. Lá, ela trabalhou como “au pair” e fez a transição para o American Ballet Theatre, outra vez com uma bolsa de estudos.
Em Nova York, ela frequentou a escola de manhã e absorveu a cultura à noite, observando os grandes dançarinos de seu tempo, incluindo a dupla Natalia Makarova e Mikhail Baryshnikov. “Minha vida foi nada menos do que uma incrível bomba cultural”, lembrou Gladkova. “Foi uma vida fantástica”.
A lenda da dança suíça Heinz Spoerli viu Gladkova em 1981 e lhe ofereceu um contrato na Suíça. Ela cruzou o Atlântico e se juntou ao Basel Ballet. Sua primeira experiência de cinco anos na companhia foi sob a orientação de Spoerli. Foi uma época de grandes conquistas, incluindo a primeira turnê internacional da companhia de dança e uma apresentação na Brooklyn Academy of Music (BAM).
“Há uma foto na ponte de Brooklyn de Heinz Spoerli, e se você olhar para a foto e a cena de dança na Europa… há um punhado de membros que são todos diretores de grandes companhias de dança na Europa hoje em dia”, diz Gladkova, listando os nomes daqueles que alcançaram a grandeza. “Spoerli deve ter tido algum tipo de faro”.
Em 1985 ela se casou com Bernd Hoffmann. Depois de uma pequena pausa, voltou a dançar novamente no Basel Ballet, desta vez sob o comando de Youri Vámos. Os destaques do período incluem uma performance de Carmina Burana em Jerusalém, um pequeno incidente em Lucerna – quando um assistente de palco se esqueceu de trazer uma lingerie durante uma troca rápida entre atos –, e parar toda a companhia de dança atrás das cortinas durante uma pausa para ajudá-la a encontrar as lentes de contato perdidas.
Fora dos palcos em uma sela
Foi também durante esse período que ela começou a andar a cavalo, uma paixão de infância que compartilhava com seus primos no Canadá, abandonada por décadas, em parte porque como dançarina, não podia se dar ao luxo de sofrer um acidente. Em seus 30 e poucos anos, no entanto, lhe ocorreu que não iria dançar para sempre, se permitindo correr o risco de retomar o esporte, descobrindo que gostava de adestramento.
“Achei fascinante os seus paralelos com a dança”, afirmou.
No dia do acidente, na casa de verão de sua família, em 1995 na França, tudo o que poderia dar de errado aconteceu. Os trabalhadores que deveriam chegar de manhã apareceram somente mais tarde, forçando a renunciar ao seu passeio matinal com Blackjack, um belo cavalo anglo-árabe cuja confiança em Gladkova era absoluta. O animal, ela lembra, poderia se manter firme enquanto ela suava e tremia no momento em que um trator os ultrapassava em uma ponte estreita.
Mas naquele dia quente ele estava diferente. Enquanto marchavam ao longo de um campo aberto, Blackjack levantava pedaços de terra. As vespas estavam se aninhando nos buracos de ar do solo seco do verão. Perturbadas, elas picaram o cavalo enquanto ele galopava. Blackjack puxou a cabeça para baixo e Gladkova, que usava luvas antideslizantes, voou da sela.
Ela deu uma cambalhota sobre o cavalo e aterrizou com seu pescoço no chão, em posição oposta do sentido de sua marcha.
“Estou olhando para direção errada”, foi seu primeiro pensamento quando viu a cena do chão, segundos depois. “Percebi que estava em apuros. A única coisa que eu pude fazer foi virar os meus pulsos”.
Uma vizinha encontrou o cavalo na beira da estrada. Ela reconheceu os sinais clássicos de um cavaleiro desaparecido – rédeas e estribos caídos – e acabou encontrando Gladkova. Ela estava caída ao lado das margens de um rio. O corpo de bombeiros chegou inicialmente ao local, mas ficaram inseguros sobre o que fazer. A viagem de ambulância até o hospital foi cheia de medos, principalmente pelo receio de asfixia caso vomitasse.
A primeira semana em uma clínica não-especializada na França é um capítulo que ela se recorda como o inferno. Gladkova foi mantida neste local até que pudesse ser transferida para o Centro Paraplégico Suíço em Nottwil, com muito medo de que pudesse morrer a qualquer momento devido a uma complicação.
“Me lembro de ter visto da minha janela o helicóptero Rega [Swiss Air-Rescue] com a cruz vermelha suíça, e realmente me recordo da sensação de que meu salvador tinha vindo e estava saindo de lá. Eu estava indo para casa”.
Começando do zero
Os dois anos seguintes foram imensamente entediantes e ela prefere os ignorar. Dias, semanas e meses preenchidos com todos os tipos de tratamentos e fisioterapia; aprender a funcionar – tentando funcionar – de novas maneiras. “Depois de uma lesão na medula espinhal, você dorme cerca de 18 horas por dia”, conta Gladkova. “Você é um vegetal. Tem que aprender a fazer tudo. Eu não conseguia nem segurar uma colher”.
Levou tempo e algumas situações para que saísse de seu casulo. Durante quatro anos regeu um quarteto de cordas, aproveitando ao máximo suas habilidades no idioma (fala francês, alemão, russo e inglês). Ela também atuou um breve período como gerente de palco do Mariinsky Ballet, que veio de São Petersburgo para a Suíça, onde era a perfeita intermediária entre os russos e os técnicos e engenheiros suíços.
Neste momento, mais de duas décadas após o acidente, ela pode digitar 12 e-mails em menos de 30 minutos com os polegares, navegar suavemente pela música, dirigir usando um volante especial e dançar em volta de seus alunos em sua cadeira de rodas. “A prática leva à perfeição”, é uma lição que se aplica à sua carreira de dança, tanto quanto ao seu processo de recuperação.
Ela ainda precisa de ajuda para se vestir e realizar atividades diárias básicas. Porém, nada disso a impediu de abrir um curso de verão de dança na França em 1999 – uma tentativa de transformar a cena do crime em algo positivo – e administrar a Basel Dance Academy desde 2006.
Em 2014, ela chegou a expandir a academia ao unir um antigo estúdio de salsa no mesmo andar, instalando equipamentos de última geração com a ajuda do Conselho de Educação da Basileia. Sergey Baranov, um professor convidado, a auxilia no projeto. Eles criam coreografias que consideram a participação de alunos de várias idades, mas que também permitem que os melhores talentos brilhem.
“Nossa academia não serve apenas como um passatempo, ela prepara os alunos para uma carreira como dançarino profissional”, afirma Baranov. “É claro que, no início, as crianças pequenas vêm por prazer, mas assim que aprendem um pouco, assistem aos dançarinos mais velhos e acabam por se apaixonar pelo balé. Temos garotas muito talentosas e fazemos muito para ajudá-las em suas futuras carreiras, seja em um teatro, em um grupo de balé ou em uma companhia de shows na Suíça, ou onde quer que elas possam conseguir um contrato”.
Gladkova está particularmente orgulhosa da proporção de um menino para cinco meninas entre seus alunos. Cada apresentação inclui uma coreografia especial que permite que os garotos floresçam. Este ano, foi a coreografia do tango que reuniu o trabalho de seis coreógrafos e seis compositores. Ela também convidou o astro de dança russo Artur Baranov para se juntar às suas melhores bailarinas. O show acabou e ela já imaginou as cenas e os passos para a próxima temporada.
“Dançar é uma dádiva. A dança leva para o público algo que eles podem sentir. Fazer os passos certos, a coreografia certa, é obviamente importante, no entanto se você não der um presente do seu coração, se não der um pedaço do seu coração ao seu público, eles não dançam de jeito nenhum”.
Adaptação: Renata Bitar
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