Genebra internacional no fogo cruzado da guerra da Ucrânia
Há um ano a Rússia invadiu a Ucrânia. Foi em 24 de Fevereiro de 2022. Porém ainda não há sinais de que o conflito terminou. E em Genebra, organizações internacionais lá sediadas vivem o dilema: como isolar Putin e aumentar a pressão sobre o país para que retire suas tropas?
A guerra na Ucrânia mudou a abordagem diplomática no seio das organizações internacionais genebrinas. Ao mesmo tempo que avançam com a sua própria agenda para resolver questões internacionais como a saúde ou o fluxo de refugiados, diversos países se preocupam com a continuação do conflito. Alguns deles buscam medidas drásticas: a Ucrânia, apoiada pelo bloco de países ocidentais liderado pelos EUA, continua a pressionar a Rússia e isolá-la das negociações internacionais.
A Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) suspendeu a colaboração com a Rússia. Em abril de 2022, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) expulsou a Rússia. Nas eleições para o posto de secretario-geral da União Internacional de Telecomunicações (UIT), em setembro de 2022, o candidato russo perdeu para Doreen Bodgan-Martin (EUA).
Até as organizações ambientais estão sendo afetadas. A Rússia foi um dos países mais criticadosLink externo pelos delegados presentes na reunião anual dos membros da Convenção sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional (mais conhecida por Convenção Ramsar), em novembro de 2022.
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Isolamento diplomático da Rússia – uma estratégia complicada em Genebra Internacional
Bathsheba Nell Crocker, embaixador americano na ONU em Genebra, pensa que “a comunidade internacional se uniu em Genebra e em outros órgãos multilaterais para condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia”. “Ela está isolada no cenário mundial, uma vez que suas ações são vistas como uma clara violação aos acordos firmados na Carta das Nações UnidasLink externo“, declarou o diplomata.
Seu homólogo britânico, Simon Manley, tem a mesma impressão. “Depois de anos ultrapassando os limites com ações como a invasão da Crimeia ou o atentado de Salisbury, o presidente russo Vladimir Putin paga finalmente o preço pelo flagrante desrespeito à Carta da ONU”. “Se você se informa nos meios, verá que a capacidade da Rússia de conduzir sua diplomacia foi restrita”, analisa Manley ao abordar o esvaziamento da presença russa nas organizações internacionais em Genebra.
Mas nem todos apoiam essa estratégia de isolamento. A China diz que continua a defender “uma posição objetiva e imparcial”. O embaixador Chen Xu declara a importância de “continuar trabalhando com todos os países amantes da paz para defender a solução de conflitos através de negociações e consultas”. “Encontrar uma saída para a crise na Ucrânia através dos meios políticos é do maior interesse dos países envolvidos. E do interesse comum de todos os países do mundo”, acrescenta o diplomata.
Amigos da Ucrânia
Em uma reunião da Comissão agrícola da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em novembro de 2022, a Ucrânia e um grupo de autoproclamados “amigos do país” (Japão, Reino Unido, Noruega, Canadá, Japão, Austrália, União Europeia, Islândia e Suíça) culparam a Rússia de ser “a única responsável pela grave insegurança alimentar no mundo”.
Alguns consideraram a declaração contraproducente. A ONU já tinha alertado, de fato, para a situação de insegurança alimentar – ou mesmo uma possível estiagem na região do Corno da África ou no Madagascar – muito antes da invasão da Rússia.
Um funcionário admitiu à swissinfo.ch que tal pressão política – e o tom duro das negociações por parte do Ocidente – “não é tão forte como antes” em meio ao receio de que a demasiada pressão possa pôr em risco o Acordo de grãos do Mar NegroLink externo, que visa facilitar a exportação de cereais e fertilizantes russos e ucranianos (vitais para o abastecimento e produção alimentar em toda a África) a partir dos portos do Mar Negro, bloqueados por navios militares russos e minados pela Ucrânia.
O funcionário especula que a participação da Rússia no acordo possa ser colocada em questão se o Ocidente aumentar a pressão sobre os líderes em Moscou.
Nem todas as organizações, países-membros e especialistas acreditam que pressão sobre a Rússia traga frutos. A guerra completou um ano e não sinaliza que irá terminar em breve. As organizações internacionais, que tradicionalmente operam em consenso em Genebra, encontram-se em dificuldades.
Percepção da Rússia
“O principal problema da diplomacia em Genebra é a excessiva politização do trabalho da ONU e outras organizações internacionais graças aos esforços dos EUA, seus aliados e a Ucrânia”, critica o embaixador russo Gennady Gatilov. “Em vez de abordar questões prementes ligadas aos seus mandatos específicos, que são de extrema importância para todo o mundo, se perde muito tempo discutindo a crise ucraniana”, diz o embaixador, dando o exemplo da União Internacional das Telecomunicações (UIT), que segundo ele, não tem mandato para discutir temas políticos. “As querelas sobre questões políticas que não se enquadram no mandato ou na agenda das organizações internacionais em Genebra e prejudicam gravemente sua eficiência”, argumenta Gatilov.
Reações negativas
Ao mesmo tempo, defensores dos direitos humanos na ONU intervieram no debate sobre a participação de atletas russos em competições desportivas internacionais.
Em setembro passado, relatores especiais do Conselho dos Direitos Humanos criticaram o Comitê Olímpico Internacional (COI) por impor proibições aos atletas russos e bielorrussos. “Manifestamos nossa preocupação com a recomendação de proibir estes países de participarem de competições internacionais com base apenas na nacionalidade dos seus atletas, o que fere as regras da não discriminação”, declaram os relatores em cartaLink externo enviada ao COI.
Os relatores consideram que uma proibição poderia constituir uma violação aos direitos humanos. Mas muitos países-membros acreditam que o banimento dos atletas pressionaria Moscou. O presidente do COI, Thomas Bach iniciou debates internos para discutir a possibilidade de permitir a participação dos atletas dos dois países sob a condição de não utilizarem bandeiras ou hinos nacionais.
Bach declarou em janeiro de 2023 que não queria proibir os atletas de competir “apenas com base na cidadania”. O presidente do COI considera que a politização do esporte é “perigosa” e argumenta que a exclusão de atletas russos ou bielorrussos dos Jogos Olímpicos, e não de outros países afetados por guerras como Iémen, Iraque ou Líbia, não é justificável.
Próximos desafios
Jürg Lauber, embaixador suíço na ONU, considera que “a guerra na Ucrânia se juntou a uma série de conflitos e crises. E eles têm um forte impacto no trabalho dos diplomatas e nas atividades das organizações internacionais, especialmente as humanitárias sediadas em Genebra”. “A necessidade de respeitar o direito internacional e o desejo do direito de prevalecer sobre o poder tornou-se ainda mais forte”, afirma o diplomata.
O embaixador francês Jérôme Bonnafont acredita que a guerra na Ucrânia apresentou a Genebra “uma tripla necessidade”: a primeira é condenar as ações da Rússia e assegurar que os crimes cometidos não fiquem impunes”. Este é o papel do Conselho dos Direitos Humanos. Em segundo lugar, apoiar a Ucrânia para que possa superar as consequências econômicas e humanitárias do conflito. Terceiro, manter o sistema multilateral, assegurando que os esforços dedicados a esta guerra não nos desviem das nossas outras missões”, diz.
Para o embaixador russo, o principal desafio para Genebra internacional é “fazer com que o Ocidente compreenda que há um tempo e um lugar certos para tudo”. Gatilov pensa que as discussões sobre a Ucrânia devem ser levadas à Assembleia Geral da ONU ou ao Conselho de Segurança da ONU, e não perante agências especializadas como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). “A ONU tem de voltar a ser uma plataforma internacional neutra e imparcial, centrada nas formas de abordar as questões prementes do mundo, em vez de ser uma plataforma de ajuste de contas políticas”, diz Gatilov.
Todos os embaixadores contatados pela SWI concordam que outras questões urgentes não devem ser negligenciadas. Uma vez que a guerra está em curso, estas discussões entre organizações multilaterais em Genebra vão continuar. “É um aniversário triste”, lamenta Alessandra Vellucci, porta-voz da ONU em Genebra. “Além do sofrimento do povo ucraniano, a guerra teve profundas implicações globais nos preços dos alimentos e da energia, no comércio e nas cadeias de abastecimento, na segurança nuclear e nos fundamentos do direito internacional”.
Segundo ela, a guerra na Ucrânia teve também um grande impacto no trabalho quotidiano das Nações Unidas. “A ONU trabalha na organização e apoio de operações humanitárias, facilitando as exportações de alimentos e fertilizantes da Ucrânia e Rússia, sendo muitas destas operações supervisionadas e implementadas por agências da ONU sediadas em Genebra.”
No meio de todas as estratégias diplomáticas e políticas relacionadas com a guerra na Ucrânia, o braço humanitário da ONU cumpre sua missão. Muitas organizações internacionais localizadas em Genebra continuam a trabalhar para apoiar as vítimas da guerra e refugiados.
Adaptação: Alexander Thoele
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