Hitler não foi eleito com a ajuda de democracia direta
Em várias partes do mundo surgem iniciativas para lançar ou reforçar os elementos de democracia direta. A associação alemã “Mais Democracia” se denomina a “maior do mundo” e orgulha de ter lançado vários plebiscitos bem-sucedidos. Em entrevista à swissinfo, dois dos seus representantes admitem, porém, que existem riscos no sistema de plebiscitos e o maior deles viria do próprio governo.
O prédioLink externo onde está localizada a associação “Mais Democracia”, no número 4 da rua Greifswalder em Berlim, tem o nome pomposo de “Casa da Democracia e Direitos Humanos”. Sua história começa em 1989, pouco depois queda do Muro de Berlim, quando dezenas de grupos e movimentos sociais se encontravam em um antigo edifício do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) para discutir o futuro do país. No outono de 1999, os grupos foram obrigados a abandonar o primeiro ponto de encontro e se mudaram para esse edifício não muito distante da famosa praça Alexanderplatz.
“Mais Democracia” ocupa uma das salas no prédio, onde atuam também dezenas de ONGs com as mais diversas orientações como Anistia Internacional, o partido feminista “As Mulheres”, a Fundação Ambiental Alemã ou a Livraria Anarquista. Anne Dänner é a porta-voz nacional do grupo e Oliver Wiedmann, o representante da seção de Berlim.
swissinfo.ch: Como surgiu a associação Mais Democracia?
Anne Dänner: A associação foi criada por pessoas ligadas ao Partido Verde e o Partido Socialdemocrata em 1988. O objetivo desde o início era ter um plebiscito na Alemanha em nível federal, o que não alcançamos até hoje. Porém também lutamos pela introdução de elementos da democracia direta em nível estadual, com resultados mais satisfatórios. Hoje já temos a possibilidade de organizar plebiscitos em nível comunal (município) e estadual em alguns estados da Alemanha.
swissinfo.ch: E o que tipo de plebiscito federal vocês propõem para a Alemanha?
A.D.: O ideal seria ter um plebiscito em três fases: a iniciativa popular, o plebiscito e a decisão popular. Na primeira seriam necessárias 100 mil assinaturas para concretizar uma iniciativa. Depois ela seria levada à consulta no Parlamento. Se a proposta não for aceita pelos parlamentares, então vai de novo à uma fase de recolhimento de assinaturas onde é necessário, dessa vez, ter um milhão delas. Se o número é alcançado, então a proposta vai à plebiscito e, se aprovada pelo eleitor, é então referendada no Parlamento.
swissinfo.ch: Segundo o artigo 146 da Lei Fundamental alemã (Constituição), ela perderia sua validade no dia em que uma nova Constituição entrar em vigor, após aprovação nas urnas. Porém isso nunca ocorreu. Não seria melhor começar a democracia direta resolvendo esse problema?
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Como a democracia direta se ampliou durante décadas
Oliver Wiedmann: Esse não é o nosso objetivo. Estamos satisfeitos com a Lei Fundamental, apesar de um detalhe: a falta de plebiscitos em nível federal. A casa onde estamos em Berlim também viveu debates, onde projetos de Constituição para ser votados nacionalmente chegaram a ser lançados, mas sem sucesso. Todavia, não podemos dizer que a Lei Fundamental ignora completamente a democracia direta. O artigo 20, alínea 2, determina que a “Toda a autoridade do Estado emana do povo”, ou seja, afirma a soberania popular. Além disso ainda acrescenta que ela é exercida através de eleições e plebiscitos. Ou seja, a Lei Fundamental inclui o plebiscito, mas é preciso uma mudança constitucional para regulamentá-lo. Isso já foi tentado várias vezes, mas sempre faltou a maioria de dois terços.
swissinfo.ch: Quando foi a última tentativa de incluir o plebiscito federal na Lei Fundamental?
O.W.: A última tentativa foi feita pelo partido Die Linke (A Esquerda) no ano passado em um projeto de lei apresentado no Parlamento alemão.
swissinfo.ch: Um dos argumentos mais utilizados na Alemanha contra a democracia direta é a experiência trágica da República de Weimar (1919-1933). A participação do povo nas decisões políticas na forma de plebiscitos não teria provocado seu fracasso e permitido à ascensão de Hitler?
O.W.: Até mesmo o Partido Cristão-Democrata (CDU, maior partido e de posição contrária à democracia direta) já refuta esse argumento histórico – a experiência com o Nacional-Socialismo durante a República de Weimar e os plebiscito populares em nível federal. Os historiadores também não acreditam mais que Hitler tenha assumido o poder devido aos plebiscitos populares. A verdade é que sua ascensão ocorreu através de um processo parlamentar. A existência da palavra “plebiscito” na constituição do pós-guerra mostra que não havia também uma recusa completa da democracia direta. A não inclusão de um plebiscito em nível federal deveu-se ao medo da Guerra Fria, que já se tornava evidente na época, e uma forma de evitar que os comunistas na Alemanha se aproveitasse desse instrumento. Os legisladores decidiram então deixá-los de lado. Setenta anos depois da II. Guerra Mundial, podemos já questionar se a realidade do país mudou e se os alemães hoje não estão finalmente maduros para a democracia (risos).
swissinfo.ch: Especialistas veem plebiscitos como ocorridos há pouco na Suíça – a iniciativa contra a construção de minaretes (2009), a de expulsão dos estrangeiros criminosos (2010) e, mais recentemente, a contrária a imigração em massa (2014) – como exemplos dos riscos da democracia direta através de propostas radicais…
O.W.: De fato existe esse risco. Sempre depois desses plebiscitos somos questionados em relação à nossa posição. Porém é necessário analisar a prática na Alemanha. Não é que não tenhamos nenhuma experiência com a democracia direta. A realidade é que não existe no país nenhuma experiência de utilização dela por parte da extrema direita, mesmo se já existem esses instrumentos em nível comunal e estadual. Em Berlim houve tentativas, ou também na Renânia do Norte-Vestfália, de lançar uma iniciativa pedindo a proibição de construção de mesquitas. Em alguns casos essas tentativas fracassaram por não conseguir ultrapassar os obstáculos legais. Em outros, elas foram consideradas ilegais.
swissinfo.ch: Isso significa que a Alemanha está mais bem aparelhada do que a Suíça em termos de democracia direta?
O.W.: Existe uma diferença fundamental entre a Suíça e a Alemanha. Na Alemanha, antes de chegarmos a um plebiscito, as iniciativas são avaliadas segundo uma legislação superior, ou seja, é preciso saber se a iniciativa não fere o direito internacional ou a Lei Fundamental. Uma iniciativa contra a construção de minaretes fere a Lei de liberdade religiosa, que é garantida na Lei Fundamental.
swissinfo.ch: Se o plebiscito popular em nível federal for introduzido na Alemanha, quem julga se uma proposta é válida ou não?
O.W.: Em primeiro lugar, o ministério do Interior, que julga a sua admissibilidade. Se este então declarar a inadmissibilidade de uma iniciativa, então é levada automaticamente ao Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht).
swissinfo.ch: Um dos ex-líderes do movimento anti-islâmico alemão Pegida criou recentemente uma nova associação chamada “Democracia direta para a Europa”. Seu objetivo é combater a imigração através de um plebiscito. Vocês não consideram válido permitir o povo votar uma questão semelhante?
O.W.: Questões ligadas à imigração não deveriam ser lançadas em nível federal, mas sim europeu. É preciso ter um plebiscito popular europeu para colocar esse tema em voto. Mesmo se pessoalmente não concordar com isso, acho legítimo que ocorra.
Biografias
Anne Dänner estudou ciências da cultura, história e jornalismo na Universidade de Leipzig. Desde 2008 atua como porta-voz nacional da associação Mais Democracia
Oliver Wiedmann estudou sociologia na Universidade de Carl-Von-Ossietzky em Oldenburg. Durante o estudo participou do movimento antiglobalização Attac. Desde 2006 atua na Mais Democracia, hoje como representante da filial de Berlim.
A.D.: Se essa questão não for barrada por esses sistemas legais de prevenção, então a questão poderia ser, de fato, colocada em voto. Existe uma zona cinza nisso. Sendo um pouco mais filósofa, digo que uma parte da democracia direta é saber que você também pode perder. No Parlamento as decisões também são tomadas na base da maioria e minoria. Uma grande vantagem da democracia direta é que quando essas perguntas incômodas são feitas, sabe-se que elas não vêm ao acaso. É preciso primeiramente convencer um grande número de cidadãos para poder concretizar um plebiscito. Eu suponho que o Pegida não teria conseguido lançar o tema e hoje vemos que eles se dissolveram em pequenos grupos. Mas se tivessem conseguido, isso seria como o espelho de um problema que existe de fato.
swissinfo.ch: Quando a população de Stuttgart (sul da Alemanha) saiu às ruas em 2010 para protestar contra um grande projeto ferroviário, a intensidade dos protestos obrigou o governo a organizar um plebiscito, no qual os eleitores acabaram aprovando o projeto. Muitos políticos diziam que em breve não seria possível mais realizar nenhum grande projeto n a Alemanha. Essa crítica à democracia direta era válida?
O.W.: Trata-se de um problema de percepção. Onde os protestos são mais fortes, é onde todo mundo olha. A impressão era de que por todos os lados explodiam protestos e que não seria mais possível realizar uma grande construção na Alemanha. Mas a realidade é que todos esses projetos são concretizados sem ninguém poder dizer nada.
swissinfo.ch: É um problema do sistema político alemão de delegar aos representantes eleitos essas decisões?
O.W.: Na Suíça existem os plebiscitos financeiros, ou seja, projetos públicos que ultrapassam determinado valores devem ser obrigatoriamente levados à plebiscito. Na Alemanha isso não ocorre, pois quando tratamos de finanças, não existe democracia direta. Eu considero isso um grande problema. Além disso, ainda existe outro problema: até mesmo os planos diretores das obras ou o planejamento urbanístico de muitas comunas também não são votados pelo eleitor em vários estados alemães. Já aonde isso é permitido, como na Baviera, você já percebe que a situação é bem diferente e que muitas vezes ocorrem referendos populares para tratar dessas questões.
swissinfo.ch: O eleitor não seria muito imediatista? Teoricamente os parlamentares teriam uma visão mais à longo prazo dos problemas…
O.W.: Eu tenho as minhas dúvidas que os políticos pensem mais no futuro (risos). Em si eles só pensam até as próximas eleições…
A.D.: Os políticos tomam suas decisões mais com base em estratégias dos partidos, o que não pode ser dito do eleitor. Em lugares onde a democracia direta é vivida como em Berlim, quando as pessoas são questionadas, elas se preocupam mais com um tema. As informações são transmitidas através das brochuras do plebiscito ou pelas mídias. Por isso acredito que o eleitor está bem informado e é capaz de dar a sua opinião.
swissinfo.ch: A baixa participação eleitoral é vista hoje com uma grande ameaça à democracia. Nos últimos plebiscitos na Suíça, por exemplo, de 14 de junho de 2015, a média foi de 40%, o que foi considerado uma boa marca…
O.W.: Sinceramente não vejo isso como um perigo ou problema. Talvez seja um desenvolvimento natural. Se não preciso mais preencher a cédula eleitoral só de cinco em cinco anos, mas sim for questionado quatro vezes ao ano, então é óbvio que exista uma pressão na participação eleitoral. O ideal seria analisá-la não pontualmente, mas sim no espaço de tempo de um ou dois anos. Talvez o eleitor participe pelo menos de um plebiscito por ano. Na Suíça isso corresponderia a uma participação de 80%. Os suíços têm uma quantidade incrível de oportunidades de se expressar politicamente e dessa forma cai a participação nos plebiscitos isoladamente. Como não existe essa possibilidade na Alemanha, o índice de participação nas eleições é muito mais importante e aqui está caindo cada vez mais.
swissinfo.ch: E o que explica esse desenvolvimento?
O.W.: O grande problema na Alemanha é a confiança na política. Segundo pesquisas de opinião, os partidos merecem apenas entre 20 e 30% de confiança por parte da população, mas também a situação de instituições como o Parlamento alemão ou o governo não é melhor. É preciso levantar a questão: será que os parlamentares realmente trabalham pelo nosso bem-estar quando sabemos que mais da metade dos eleitores não confiam neles?
swissinfo.ch: O que a democracia direta poderia fazer para contrapor esse desenvolvimento?
O.W.: A democracia direta seria uma forma de controle. Por exemplo, eu como eleitor não confio mais no Parlamento e utilizo assim meu direito de veto para anular determinadas decisões, o que faz mudar a cultura política dos nossos representantes eleitos. Ou seja, nossos parlamentares se obrigam a prestar mais atenção nos anseios dos eleitores.
swissinfo.ch: A iniciativa contrária a imigração em massa (2014) foi lançada pelo partido União do Povo Suíço (SVP, em alemão), a direita nacionalista. A sua aprovação nas urnas colocou o país num dilema devido aos acordos bilaterais com a União Europeia e a dificuldade de transformar a iniciativa em lei. A democracia direta também não tem esse potencial de paralisar um país?
O.W.: O risco existe, de fato. Por outro lado, por que excluir os partidos desse instrumento? Afinal, partidos são parte da sociedade civil. Especialmente os partidos de oposição devem utilizá-lo. O fundamental é que todos votem. Em minha opinião, os abusos ocorrem quando os plebiscitos são lançados do andar de cima, ou seja, o governo ou uma maioria parlamentar. Então é preciso desconfiar, pois o potencial de abuso é bastante elevado. Governos têm interesse em legitimar seus projetos através de um plebiscito.
swissinfo.ch: Um exemplo disso não seria o plebiscito duplo na Irlanda do Tratado de Lisboa? O primeiro voto foi “não” em 2008 e, no segundo (2009) finalmente a favor…
A.D.: Na época também criticamos esses plebiscitos pela impressão de terem sido lançados até o povo dar a resposta correta. O problema ocorre quando o referendo vem do andar de cima. Não aconteceria se fosse necessário primeiro recolher as assinaturas para permitir a realização do plebiscito. Quando você analisa os plebiscitos bem-sucedidos na Alemanha, organizados em nível comunal e estadual, percebe que foram organizados graças à iniciativa de grupos da sociedade, mas também de um partido. Todavia não é comum que um partido lance sozinho uma ideia de plebiscito. O interessante é que se um partido tentar fazê-lo, isso é até possível, mas as chances de sucesso são mínimas comparado a uma proposta surgida da união de diversos grupos da sociedade.
Associação “Mais Democracia”
A associação Mais DemocraciaLink externo sem fins lucrativos foi fundada em 1988 com o objetivo de apoiar e reforçar a democracia direta na Alemanha, dentre outros: introdução de plebiscitos em nível federal (ainda não permitido pela Lei Fundamental), reformas da democracia direta em nível comunal e estadual, reforma do direito de voto e do parlamentarismo na Alemanha, democratiza4ão da União Europeia e reforço da liberdade de expressão e participação política do cidadão.
Ela possui sete mil membros e financia-se através de doações e contribuições dos membros. Aconselha cidadãos, desenvolve campanhas e já lançou também várias iniciativas.
A associação se define como a maior ONG do mundo dedicada ao tema democracia direta. Tem 13 grupos estaduais e 40 funcionários.
Na Alemanha ocorrem plebiscitos em nível comunal (município) e estadual. De 1956 a agosto de 2013 já foram organizados 5.500 plebiscitos.
A associação declara ter organizado já 19 plebiscitos e iniciativas.
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