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Júlio Bressane, ou o cinema radical contra a mediocridade

O diretor Julio Bressane em Locarno
O cineasta carioca Júlio Bressane em Locarno, onde exibiu seu novo filme, "A Sedução da Carne" Locarno Festival/Samuel Golay

No último festival de cinema de Locarno, o diretor brasileiro Júlio Bressane trouxe seu mais recente trabalho, “A Sedução da Carne”, para o programa de filmes experimentais (Signs of Life), arrancando reações diametralmente opostas. “Orribile!”, exclamava um casal italiano de meia-idade na saída da sessão; já o grupo de jovens críticos internacionais convidados pelo Festival saiu querendo conhecer mais da obra desse artista que, aos 72 anos de idade e mais de meio século de cinema, continua sendo um resistente “enfant terrible” do cinema brasileiro.  

O cinema de Bressane atravessa, e é atravessado, por todas as outras formas de arte. A música, a literatura, artes visuais, poesia, ciência: sua mente continua inquieta, curiosa, incansável. E seu compromisso com o espectador também é honesto: Bressane não faz concessões para obter favores, sorrisos fáceis ou uma resenha mais favorável. Tem quem considere seu cinema “difícil”, hermético. Ele dá de ombros. Seu compromisso é com a arte, ou melhor, com o poder transformador da arte, como diz.

Não era fácil catar Bressane de jeito. O cineasta tinha apenas três dias em Locarno, e queria usar seu tempo para assistir o máximo possível de filmes da retrospectiva de Leo McCarey, cuja obra fora resgatada pelo festival. Compreensível, assim, que Bressane estivesse tão arredio a compromissos ou entrevistas – mas para swissinfo.ch o cineasta deu a graça de um café-da-manhã, antes de começar a maratona de sessões do dia.  

swissinfo.ch: O que passa pela sua cabeça agora, há algum assunto que ocupe o seu pensamento em especial? (o jornalista tinha em mente os descalabros cotidianos em curso no Brasil, no Rio de Janeiro, as eleições chegando, o desmonte dos incentivos à cultura, a censura às artes. Bressane, porém, mesmo afetado por tudo isso, trafega em outras esferas).

Julio Bressane: Minha preocupação sempre foi de levar minha vida. Notícias, essa questão do que é ou não real, para mim não é questão alguma. A realidade para mim é tudo. A realidade é toda a imaginação, a literatura, toda a música, toda a poesia, o que você sonhou hoje, tudo isso é real. Isso faz parte da sua vida. A preocupação de estar vivo, a dificuldade de estar vivo. Você não leva nada da vida.

Cineasta, profissão inventor

O carioca Júlio Bressane iniciou sua carreira no cinema como assistente de Walter Lima Júnior, em 1965, mas logo assumiu uma trajetória própria, antenado aos movimentos contra-culturais dos anos 60, no Brasil (Tropicália) e no mundo, tornando-se um dos principais expoentes do chamado ‘cinema marginal’, junto com Rogério Sganzerla (de “O Bandido da Luz Vermelha”, entre outros). “O Anjo Nasceu” e “Matou a Família e foi ao Cinema”, ambos de 1969, são alguns dos clássicos assinados por ele. Depois de voltar do exílio em Londres, no início dos anos 1970, Bressane deixou para trás o rótulo de ‘marginal’ e sua obra, contando hoje 32 filmes, é marcada pela independência e liberdade total (de meios e temáticas) – e continua: este ano, Bressane pretende ainda terminar seu próximo filme, “Capitú e o Capítulo”. 

swissinfo.ch: E agora você está em Locarno apresentando um novo filme pela terceira vez em seis anos…

J.B.: A primeira vez que eu vim a Locarno foi em 1968. Eu apresentei meu primeiro longa-metragem, “Cara a Cara” aqui, eu tinha 21 anos. E o filme foi muito mal recebido. Era uma época em que dominava uma crítica italiana, francesa muito… digamos, partidária. Se não partidária, então com um mesmo pensamento. Era uma época com um pensamento bastante obscuro. E isso apesar de haver exibido “Cara a Cara” em mais de dez festivais aqui na Europa; o filme veio para Locarno depois de Cannes e Berlim. Dessa data até seis anos atrás, todos os filmes que mandei para cá foram recusados. Depois houve uma mudança de entendimento…

swissinfo.ch: Com a vinda de Carlo Chatrian (diretor artístico do Festival de Locarno, que assumiu o posto seis anos atrás)?

J.B.: Não necessariamente, acho que houve uma mudança de entendimento quanto aos meus filmes de uma maneira geral. Houve uma apresentação mais ampla deles em 2002 numa mostra retrospectiva em Turim (Itália). De lá para cá houve um entendimento diferente: aceitou-se esse meu ‘capricho’ de fazer cinema e nesses últimos seis anos eu apresentei 3 filmes aqui. “Educação Sentimental”, “Garoto”, e agora “A Sedução da Carne”.

swissinfo.ch: Como você vê o Festival de Locarno em comparação com os outros? Há algo aqui que o distingue dos outros festivais europeus?

J.B.: Tem uma coisa especial aqui que é o núcleo de pesquisadores, com quem tenho uma relação próxima, e com quem colaboro quando posso, pessoas como Roberto Turigliatto, Sergio Grmek Germani, etc. E nesses seis anos tenho visto aqui retrospectivas espetaculares, como esta que está sendo apresentada agora do Leo McCarey, cuja pesquisa vem sendo feita há mais de dez anos. Isso que eles fazem aqui em Locarno, com novas cópias e tal, é uma coisa esplêndida, permite que você veja ao mesmo tempo as particularidades e o conjunto de uma obra.

swissinfo.ch: Por falar em conjunto de obra, qual a sua relação com sua própria filmografia?

J.B.: Comecei a fazer cinema muito cedo, eu era bem menino, tinha 11, 12 anos, quando ganhei de minha mãe uma câmera 16mm e um projetor numa viagem aos EUA. E comecei a brincar, fazer filmes, mas só vim a tomar conhecimento do que é o cinema 50 anos depois (risos). Eu logo percebi que a força que o cinema tinha comigo, era uma força de transformação. Um instrumento radical de transformação, ainda mais considerando a dificuldade [de se fazer um] filme. 

A maneira com que eu sentia o cinema era como um organismo sensível que cruza, que atravessa outros organismos. E a cada cruzamento, cada uma dessas passagens pela pintura, pela música, pela dança, pelo próprio cinema, em cada uma dessas passagens é que se cria a imagem, e a imagem se renova a cada passagem. 

Para mim o cinema sempre foi um experimento de transformação, um instrumento radical para você tentar se livrar do destino da mediocridade a que estamos condenados. Pois estamos condenados à mediocridade. Tem um esforço para esse destino ser contrabalançado, e o cinema é uma arma radical para isso, ou pelo menos foi para mim. E para mim, todos os filmes que fiz foram muito importantes, todos eles foram uma maneira de eu ver uma coisa ou outra e fazer essa coisa impossível e a mais difícil de todas, que é conhecer você mesmo. 

O cinema para mim é uma grande força afetiva. Nunca pensei nesse sentido de considerar a “obra”, ou se pensei foi uma coisa ocasional, um momento de descuido. A minha força, a minha energia eu sempre coloquei em continuar essa transformação que o cinema possibilita.

Cena de A Sedução da Carne
A Sedução da Carne: Mariana Lima em pleno diálogo com seu papagaio, símbolo de pureza tropical, com a tentação no prato ao lado. Locarno Festival / Divulgação

swissinfo.ch: Tenho a impressão que fazer filmes para você, desde o início, é uma coisa bastante pessoal, talvez até familiar, ou seja, parte das suas próprias relações pessoais (nos créditos de “A Sedução da Carne”, Bressane inseriu um retrato filmado de toda a equipe como se fosse uma foto de família). É isso mesmo?

J.B.: Quando se fala ‘pessoal’, dá a ideia de que é [o trabalho] de uma pessoa só. É que o cinema tem uma coisa, que talvez seja uma herança da pintura, que é uma coisa feita por muitas mãos, como os antigos ateliês de pintura, de quando existia a pintura. 

O ateliê era um lugar onde trabalhava um monte de gente, cada uma fazendo uma coisa, para produzir o mesmo quadro. O cinema tem essa herança da pintura, ele é feito por muitas pessoas. Se há neste sentido um eu no cinema, ele é um eu multiplicado. E se existe esse sinal de pessoa unitária, ele é involuntário. 

E outra coisa: quando você faz um filme, na verdade você está filmando o que está à sua volta. Se for fazer um filme sobre a vida de Napoleão, com 4 mil atores que seja, o que você está fazendo é documentar aquilo que está em volta de você. A participação, a psicologia, de todos aqueles que estão lá ao seu lado fazendo aquilo.

swissinfo.ch: Mas você nunca caiu na produção industrial (seja lá como for a indústria de cinema no Brasil)…

J.B.: O cinema tem de qualquer maneira uma coisa industrial, porque depende de câmeras, equipamentos, de todo um processo. Não se pode cair nessa coisa de ser contra o cinema industrial etc. Isso não faz sentido. Isso tudo se dá pelo resultado da falta de meios. Não é uma questão de ser contra ou a favor do cinema “industrial”, até porque no Brasil não há indústria. O que há é um grupo de publicitários que faz a coisa, então agora… essa posição anti-indústria, eu acho isso termos muito gerais.

swissinfo.ch: Essa posição seria uma atitude ultrapassada?

J.B.: Não necessariamente, na verdade pode ser até bastante atual, mas são questões muito genéricas. Como medo de andar de avião, coisas assim.

swissinfo.ch: Você tem acompanhado as produções brasileiras mais recentes, fora do eixo Rio-São Paulo?

J.B.: Sim, acompanho. Eu vejo cinema todos os dias. Mas deixe-me dizer uma coisa. Eu acho isso tudo muito bom, mas não quero entrar nesse tema, não quero dar opinião sobre o trabalho dos outros. Um conhecido meu, um velho diretor de cinema que já morreu, o Claude Chabrol, uma vez um jornalista lhe perguntou sobre um certo filme e ele respondeu: olhe, eu não falo sobre diretores vivos. Pois isso sempre acaba em mal-entendidos.

swissinfo.ch: A minha pergunta, porém, tem mais a ver com essa descentralização da produção no Brasil, graças à tecnologia, entre outros fatores. O diretor Kleber Mendonça Filho, quando apresentou o seu “O Som ao Redor” aqui em Locarno em 2012, apontou para o seu Macbook e disse que, graças a ele, pôde montar o seu filme em Recife mesmo. Ninguém mais precisa ir ao Rio ou São Paulo para fazer seu filme. Assim, o cinema brasileiro parece estar mais diversificado… ou o termo “cinema brasileiro” não faz sentido para você?

J.B.: Eu moro no Brasil, falo português, vivo lá há 72 anos, e se eu dissesse que não tenho nada a ver ou que não penso o cinema brasileiro, teria que ser internado num asilo. Mas olha só: essas perguntas, que são perguntas imensas, que exigem respostas também imensas, são perguntas que eu precisaria de uns cinco, seis dias para pensar. Não tenho como dizer “ah, eu acho isso bom, ou acho aquilo ruim”, ou seja, só iria dizer besteira, pois não senti a coisa de fato, e acabaria te dando, como sempre, uma ideia totalmente inútil… ou melhor, de uma utilidade espantosamente gratuita sobre nada.

Me lembrei agora de uma observação de um escritor que já morreu há muitos anos, escritor de língua francesa, que dizia que “a entrevista é uma necrose da linguagem”. Porque você acabava naquele determinado momento, naquela oportunidade, naquele encontro, pegando alguma coisa que parece feita para outro tipo de raciocínio e cinco minutos depois você está pensando de outra maneira, ou em outra coisa. E necrose é uma coisa que já chega estragada. Não tenho essa facilidade de síntese.

swissinfo.ch: Voltando ao chão então. Este seu último filme você fez praticamente com recursos próprios, não?

J.B.: Exatamente. Ele foi produzido pela TB Produções, que é uma produtora fundada em 1998 e que já produziu 19 longa-metragens e uns 10 curtas e médias, e todos eles feitos dentro de uma ideia de “invenção de produção”. 

O cinema é antes de tudo uma invenção de produção. Desde o início: Lumière, Meliés, Griffith, eles eram todos inventores de produção. Eles conheciam a economia, o que podia ser feito. Que textura obter com essa força que você tem aqui. Assim que essa história de baixo orçamento, alto orçamento, isso aí é coisa de uma mentalidade bancária. Isso não quer dizer nada em cinema. 

Determinada produção produz determinado tipo de textura, essa é que é a questão. Essa é a questão do cinema. O resto é questão da propaganda, da publicidade, é outra coisa. Agora o filme é a produção de uma textura. Ou seja, é sempre uma invenção, você inventa a economia dos meios. A TB neste sentido tem sido uma produtora muito fiel à essa ideia, de persistir nesses filmes muito vivos. E você precisa de um esforço de criação para inventar uma produção. 

A questão da direção é ainda outra coisa. A questão inicial, e o que define o todo, é justamente inventar a produção. Essa reunião de pessoas em volta da TB é o que tem possibilitado a produção de todos esses filmes.

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swissinfo.ch: Podemos dizer que essa maneira da TB trabalhar é uma evolução de processos que você experimentou há 40 anos atrás, com a Bel-Air…? [A Bel-Air foi uma produtora criada por Bressane, Rogério Sganzerla e Helena Ignez, que produziu sete filmes entre fevereiro e maio de 1970, quando foi fechada por pressão do regime militar].  Eram também tentativas de se inventar produções fora do esquema tradicional, não?

J.B.: Não, não é isso. Esse tipo de concepção de cinema nasceu com o próprio cinema. Não dá para comparar a Bel-Air com a TB, sobretudo porque eram momentos culturais totalmente distintos. A TB é muito mais avançada que a Bel Air, que foi uma coisa feita naquelas condições e naquelas possibilidades que estavam ali naquele momento. 

Uma coisa feita 40 anos depois é obviamente muito mais avançada, sofisticada que aquilo ali. Mas existe uma realização, mais que uma ideia, desde o nascimento do cinema. Mesmo o Leo McCarey que a gente está vendo aqui no festival, foi um dos pioneiros do cinema, e ele tinha uma frase muito conhecida que dizia que “saía de manhâ cedo do estúdio com o negativo debaixo do braço e voltava à noite com o filme pronto”, ou seja, fazia o filme em um dia. 

Nunca se cogitou se ele era um diretor assim ou assado, ele simplesmente ia lá e fazia o seu filme com a produção que eles inventavam ali. Definir um filme pelo tamanho do seu orçamento é uma visão argentária, totalmente estúpida do cinema. Não dá para querer fazer um filme maior do que as condições que você tem nas mãos. E isso não vale só para o cinema, mas também para qualquer arte. Há uma hipertrofia hoje gigantesca da questão do acúmulo e do domínio do capital, isso entrou em todos os poros, e a leitura mesmo imperfeita, mesmo errada, é sempre feita a partir deste ponto de vista.

swissinfo.ch: E com essa multiplicação de canais de distribuição, streaming, divulgação, mídias sociais, contratos por espaços geográficos ou mídias, isso não come muito do tempo criativo? Como isso te afeta?

J.B.: Eu procuro distribuir meu tempo de outra maneira, mas sou afetado por tudo isso como qualquer outra pessoa. Tudo isso te interrompe, tudo isso te atrapalha. Mas o cinema para mim é uma continuidade, não é uma percepção que se interrompa. Enquanto você ainda tiver a força, a coisa segue. As pessoas têm os seus limites, seus temperamentos, e é muito difícil você perceber a coisa contemporânea. 

Como dizia um outro velho escritor, “o contemporâneo é o inatual”. Inatual no sentido de que o contemporâneo é preso em diversos anacronismos de ontem. O ontem está muito presente no contemporâneo. Então o acesso ao contemporâneo você tem que fazer por uma via arqueológica, para poder compreender o que seja essa coisa contemporânea. 

O contemporâneo não é só uma preocupação minha, é uma preocupação de muita gente. Te digo isso como resposta a essa questão sobre a Bel-Air, meus trabalhos antigos, essa percepção contemporânea do agora tem que ter uma visão do anacronismo. E a gente tem que fazer todo um caminho lá para trás para compreender esses impactos, essas derrapagens…

swissinfo.ch: E quando você revisita o Padre Antonio Vieira, Machado de Assis etc., você não está preocupado com o passado…

J.B.: Mas isso é óbvio. Se você faz algo hoje, o que conta é o agora. Você não tem como saber como era exatamente o Padre Vieira, o neolítico, ou como São Gerônimo segurava a pedra na mão. Existem referências iconográficas, mas quando você cria algo hoje você faz com o seu sentimento, com a sua cultura, o seu gestual de agora. Não tem essa coisa de filme de época, isso é um absurdo.

Agora, essa coisa de escolha de temas é um movimento emotivo. Esses filmes que você citou são escolhas afetivas, coisas que me atraem, coisas antigas que eu vi, li, às vezes há muito tempo atrás. Não tenho propriamente uma ideia do tempo neste sentido. 

O tempo no cinema é a coisa central. Mas não esse tempo, se o filme é de época ou se passa no século 2 ou no século 18. A questão do tempo está ligada à questão do fotograma. A produção do tempo no cinema é a possiblidade de transformação do tempo. 

O cinema tem ao mesmo tempo o seu elemento filosófico ao lado da técnica, e ele se reduz ao entendimento do fotograma. Esse é o tempo que está fixado e que se passa no filme. Ele se repete, se move. E justamente este é um dos mistérios do cinema, nós não sabemos o que é o tempo. Você não é mais aquele que você foi, mas também nunca deixa de ser aquele que foi.

swissinfo.ch: E para você, ler um filme também significa ler o que está fora do quadro?

J.B.: Essa é uma velha questão, talvez uma das questões mais antigas da própria filosofia, que é como ler o que está fora de campo, ‘hors champ’, como se dizia no caso da pintura. Se você não conseguir imaginar o que está fora de campo você não consegue realizar o que está dentro dele. Essa ideia de buscar o que não é visível é muito importante. Tudo que está visível é um indício enganoso do todo, pois você precisa ainda ter uma outra percepção, precisa se submeter a uma outra duração.

 

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