Kara Walker na Basileia: 600 tons de desigualdade
A mostra Kara Walker no Kunstmuseum Basel foi a primeira vez que a artista revelou seu arquivo pessoal de desenhos em uma exposição de mais de 600 obras e peças que ilustram verdades dolorosas sobre os efeitos psicológicos da desigualdade.
A artista americana Kara Walker é conhecida por instalações com silhuetas recortadas em papel preto que evocam imagens grotescas e maravilhosas de afro-americanos e seus senhores de escravos. Por décadas, ela enfrentou insessantemente em suas obras o legado dos anos de escravidão em seu país.
SWI swissinfo.ch conversou com a curadora da mostra, Anita Haldemann, sobre como o Museu de Arte da Basileia (Kunstmuseum Basel) vem abordando as questões de diversidade e representação.
SWI swissinfo.ch: A exposição de Kara Walker é intensamente pessoal. Como você convenceu Walker a revelar tanto de seus desenhos inéditos?
Anita Haldemann: Foi uma conversa que tivemos quando ela veio aqui. Foi importante que ela conhecesse o nosso acervo e a tradição que temos como um museu tão antigo, principalmente no Kupferstichkabinett (departamento de gravuras e desenhos) – onde nos concentramos em guardar até o menor pedaço de papel. É um arquivo cultural. Isso a fez pensar em seus próprios arquivos.
Oferecemos uma plataforma para sua arte de forma séria e isso a encorajou a se abrir. Meus antecessores na Basileia organizaram grandes exposições com artistas como Beuys ou Rosemarie Trockel, nas quais exibimos 300 ou 400 peças, para realmente dar uma visão sobre a mente de um artista e mostrar como ele ou ela desenvolve suas ideias.
Kara Walker ia fazer 50 anos quando começamos a conversar, um momento propício para a artista fazer uma retrospectiva de sua vida. Depois de visitar a Basileia, ela começou a voltar a desenhar intensamente, trabalhando em um formato intimista de pequena escala para contrabalançar a produção de grandes obras, como a Fons Americanus para a Tate Modern.
SWI: Por que essa exposição agora?
AH: Eu estava interessada no trabalho dela há dez anos, mas na época ainda não tínhamos o novo prédio e a infraestrutura necessária para sua arte. E agora o momento foi certo. Ela fez parte de um desenvolvimento em nossas exposições. Mostramos Sam Gilliam e Theaster Gates. E começamos a nos aprofundar em um tipo mais diverso de arte americana, não apenas do homem branco.
SWI: Em seu ensaio para o catálogo, você escreve que ‘o desenho tem sido usado de forma particularmente intensa por artistas que se preocupam com questões de identidade e relações de poder’. Por quê?
AH: Porque é o meio onde você pode desenvolver ideias ou experimentar ideias novas. Em um desenho, você pode fazer qualquer coisa. Normalmente, um desenho faz parte de uma sequência ou melhor, de um processo, onde você vê o artista pensando e as ideias ganhando vida. Foi o que Kara disse para si mesma, que cada folha de papel é um local de reflexão.
SWI: Kara Walker faz uma crítica à apresentação dos artistas negros e às expectativas de como eles deveriam se comportar em um contexto de museu. Em um desenho, por exemplo, ela escreve ‘Tate liverpool [sic] tem o prazer de anunciar 10 maneiras de irritar uma negra’. O que ela chama de ‘mundo da arte branca’ faz parte da investigação da artista. Como você foi desafiada a realizar esta exposição?
AH: Nós realmente queríamos que ela se sentisse confortável em como foi representada, já que ela não gosta de ser exposta. Procuramos dar-lhe espaço para trabalhar, com privacidade. Como acontece com todos os artistas, mostramos a ela todos os textos e a seleção das imagens [utilizadas para mediar a exposição]. Mas tivemos discussões interessantes, como sobre o uso de Negro vs. Afro-americano. Ela sentiu que estava sendo levada a sério e que nos importávamos com a forma como lidávamos com sua arte.
SWI: Vários trabalhos na mostra incluiam recortes de mídia alemães. Havia também o desenho de uma garota emaciada com o texto ‘wenigger e wenniger’ [jogo de palavras com ‘weniger’, alemão para ‘menos’ e ‘nigger’] que é muito poderoso quando não se está esperando encontrar aquela ressonância alemã. Você discutiu o contexto da Basileia com Walker?
MH: Sim, porque eu estava com medo de que as pessoas pensassem ‘Oh, isso é um tópico americano, isso é interessante, mas não nos diz respeito’. Fiquei muito feliz em ver aquelas peças alemãs em seu arquivo. Acho que foi interessante para ela voltar ao contexto alemão, mas não na Alemanha.
Ela também disse que tinha dúvidas se todos se envolveriam com o assunto. Mas os protestos do ano passado, Black Lives Matter, e eventos recentes, como a comemoração da história de Tulsa, estiveram muito presentes na mídia, e o público suíço está mais atualizado do que antes da pandemia. Não se trata apenas de escravidão e história, é também sobre como como lidamos com uma história unilateral hoje.
Ao mesmo tempo, não queríamos que fosse uma exposição totalmente didática. Poderíamos ter mostrado a história dos Estados Unidos, a Guerra Civil e o Movimento dos Direitos Civis, e para fazer isso seria necessário explicar muito. Tentamos nos concentrar em dar passeios e workshops para que qualquer pessoa que queira saber pudesse obter as informações.
SWI: Uma crítica recente do jornal WOZ criticou o enquadramento e a mediação da exposição e como a construção da raça, por exemplo, não foi discutida. Onde você começou o trabalho de mediação?
MH: Trabalhamos, por exemplo, com alunos da ZHdK [Universidade de Artes de Zurique] na área de mediação e eles conduziram visitas especiais e workshops que tratavam desse assunto. Mas foi um desafio. Tenho certeza de que nem todos os suíços estão familiarizados com a história americana. A própria Kara Walker diz que nem sempre você precisa estudar tudo em detalhes antes de entender um desenho.
SWI: O trabalho de Kara Walker geralmente mostra o ponto de vista de um indivíduo. A tensão entre o indivíduo e as estruturas maiores é irresistível. Que papel um museu pode desempenhar ao abordar questões como racismo ou desigualdade?
MH: Nós trazemos isso à tona em nossas exposições, mas isso realmente iniciou um processo de reflexão. No ano passado, antes da inauguração inicialmente marcada, tivemos uma oficina anti-racismo para a equipe do museu. Era importante começar a discussão dentro do museu. Também estamos participando de um programa do cantão da Basileia-Cidade com a Literaturhaus e outras instituições, no qual discutimos a diversificação de nossas atividades dentro e fora.
Diversificar não é apenas sobre racismo, tentamos incluir outras perspectivas, por exemplo, mostrei artistas como Leiko Ikemura, que é uma artista nipo-suíça, ou Rozà El-Hassan, uma artista húngara-síria com formação muçulmana e cristã. Procuramos diversificar em diferentes áreas; temos um departamento inteiro, um curador [Daniel Kurjakovic] de programação e educação, com atividades que vão em várias direções diferentes.
SWI: Este ano, o Kunstmuseum Basel está liderando o caminho com artistas femininas em pé de igualdade com seus colegas masculinos. Isso vai continuar nos próximos anos?
AH: Sim, absolutamente. Já é uma estratégia há um tempo, mas conseguimos intensificar nos últimos cinco anos. Temos um grande foco nas mulheres não só nas exposições, mas também na coleção. Isso é ainda mais importante a longo prazo.
SWI: Os museus tradicionais enfrentam enormes desafios para reexaminar suas coleções em relação ao desequilíbrio de gênero. A política de aquisições do Kunstmuseum Basel evoluiu nos últimos anos?
AH: Definitivamente, sim. Principalmente na arte contemporânea, onde é mais fácil; não há desculpa para não encontrar boas mulheres artistas. Fizemos ser possível comprar obras de Kara Walker, mas também estamos tentando olhar para trás e incluir mais mulheres em outras áreas. Começamos a adquirir Sari Dienes, ou Shirley Jaffe, que foi redescoberta e em breve terá uma importante retrospectiva. Para alguns artistas, como Lee Krasner ou Helen Frankenthaler, é realmente difícil – os preços são tão altos que é difícil cobrar ao contrário. Mas ainda existem posições interessantes nas quais tentamos nos concentrar.
SWI: Existem cotas na política de aquisição?
AH: Não há cotas definidas específicas, pois há outros critérios além do gênero, como a diversidade no sentido geográfico ou cultural. Queremos nos envolver profundamente com essa perspectiva e esse processo terá um efeito mais duradouro do que simplesmente seguir números.
Adaptação: Clarissa Levy
Adaptação: Clarissa Levy
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