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‘Não estou autorizada a sair daqui’

Künstlerin Lama Altakruri
A artista palestina Lama Altakruri fotografada no estúdio da Kronengasse em Aarau. Thomas Kern/swissinfo.ch

A artista palestina Lama Altakruri escreveu "Eu não estou autorizada a sair daqui" em um cartão postal em referência ao coronavírus. Altakruri, 38 anos, passou os últimos meses observando a vida cotidiana suíça.

No primeiro semestre deste ano, ela viveu e trabalhou na cidade de Aarau, no norte da Suíça. A residência artística oferecida pela Associação Gästeatelier Krone apresentou uma oportunidade para Altakruri de trabalhar longe das restrições e pressões de sua vida cotidiana.

Uma residência artística consiste em proporcionar tempo e espaço para que uma artista convidada possa desenvolver seu trabalho e explorar novas ideias. É um convite para passar um tempo em uma nova atmosfera e ambiente. Para Altakruri esta foi uma oportunidade para avançar alguns de seus trabalhos anteriores e desenvolver um novo projeto que foi apresentado em uma exposição no Forum Schlossplatz em Aarau.

O Gästeatelier Krone é dirigido por uma associação local há 25 anos. O espaço de dois andares em Aarau está disponível para artistas da Índia, Palestina e África. O processo de seleção se baseia em contatos já estabelecidos há muito tempo com as regiões convidadas. Durante sua estadia, os artistas recebem uma bolsa mensal e algum dinheiro para suas despesas de viagem. O Gästeatelier Krone é apoiado financeiramente pela Prefeitura Municipal de Aarau e pelo Kuratorium do cantãoda Argóvia.

Um aspecto igualmente importante é o intercâmbio com artistas suíços e o trabalho em rede com curadores, galerias e instituições suíças. Muito disso tem sido difícil de ser alcançado durante os últimos seis meses. Uma vez que as restrições relacionadas à Covid-19 entraram em vigor em meados de março, muitas das atividades habituais, como visitar outros estúdios de artistas ou se inspirar nas muitas exposições e museus, se tornaram impossíveis e Altakruri teve de enfrentar desafios inesperados.

Lama Altakruri ( nascida em 1982 em Abu Dhabi, EAU) é uma artista palestina baseada em Ramallah. Ela cresceu no Bahrein antes de se mudar para a Palestina em 1994. Ela é formada em Teoria e Prática da Arte pela Northwestern University e possui um BA em Arte Visual Contemporânea pela Academia Internacional de Arte-Palestina. Ela usa texto, escultura, performance e intervenções públicas para explorar bolhas neoliberais globais e os momentos de conforto, ansiedade, familiaridade e desapego encontrados em espaços de hospitalidade profissional.

As seguintes cenas são suas observações e breves notas sobre a vida cotidiana suíça. Elas poderiam ser trechos de seu diário. A pequena coleção de textos se intitula Awkward Interactions:

Beira-rio

O confinamento começou onde você mora, mas aqui ainda não começou. Eu fecho todas as páginas de notícias e vou lá embaixo. As pessoas estão sentadas do lado de fora nas mesas dos restaurantes. Elas parecem descontraídas. Tenho que caminhar entre as mesas para poder sair do meu prédio. Caminho até a beira do rio, espero que algumas pessoas estejam lá, mas não muitas. Muita gente está lá. Quando eu volto, tenho que caminhar entre as mesas para poder entrar no meu prédio.

Félix e seu cão

foto
Cartões postais, notas e material relacionado ao trabalho de Lama Altakruri durante sua estada na Suíça. Thomas Kern/swissinfo.ch

Um cão corre na minha direção, eu fujo, o cão corre atrás de mim, o dono do cão corre atrás do cão, eu corro atrás do dono do cão. Eu grito: “Vai me morder?” ele diz: “não, ela não vai te morder, ela está brincando com você, se você parar ela vai parar”. É mais fácil dizer do que fazer. Meu coração ainda está acelerado, ele fala comigo para me acalmar. “De onde você é? Oh, da Palestina! É um lugar que se fala muito. Talvez os países vizinhos devessem dar terras aos palestinos para que eles possam se mudar para lá”. Talvez eu devesse ter perguntado a ele se eles podem se mudar para cá.

O vizinho

Conheci meu vizinho apenas uma vez, mas sei muito sobre ele, coisas que não deveria saber, mas nossa parede é muito fina, e sua voz é muito alta. Sei a que horas ele vai trabalhar e a que horas ele volta, sei sobre seu relacionamento à distância, sei que eles brigam muito.

Cupcake

Há uma pequena loja de cupcakes perto daqui, a loja é rosa com duas cadeiras brancas do lado de fora. Eu entro na loja e peço um cupcake, ela me diz que só tem um, é um cupcake de queijo, meu favorito. Ela o coloca em uma caixinha branca, eu lhe dou meu dinheiro, ela pede desculpas, ela não pode aceitar dinheiro, só cartão, por causa da pandemia. Eu não tenho nenhum cartão, peço desculpas e deixo para trás o bolinho cheesecake na caixinha branca.

Ele pergunta de onde eu sou, eu digo Palestina, ele diz: “Eu estive perto, eu fui em Israel, muitas vezes, muitas vezes”. Não sei por que ele disse isso duas vezes.

Cientologia

Um homem na rua me para, ele pergunta se eu gosto de ler, eu digo que sim, ele pergunta em que língua, eu digo inglês ou árabe, ele vai para a mesa e volta com um livro pesado, ele diz que é sobre uma nova técnica para o cérebro, e aqui está nosso website. Eu olho para onde ele aponta e reconheço a palavra Cientologia, eu lhe digo que não posso comprar o livro pesado, mas vou olhar o site, ele pergunta de onde eu sou, eu digo Palestina, ele diz: “Eu estive perto, eu fui em Israel, muitas vezes, muitas vezes”. Não sei por que ele disse isso duas vezes.

Maracujá

Estamos diante da balança de alimentos do Coop, ele é um senhor de idade, ele diz que é canadense. Eu deixo ele pesar sua sacola antes de pesar a minha. Ele coloca sua sacola na balança, olha para mim e abre ela, pega uma fruta e me mostra, ele diz: “isso se chama maracujá, tenta pegar os feios, eles têm um sabor melhor, você abre com uma faca e come”.

Self-service

Eu me aproximo do balcão e pergunto em inglês à mulher do caixa como me servir neste restaurante self-service. Ela diz: “Então, você escolhe uma torta daqui, depois um café de lá, depois você volta aqui e paga, depois de terminar, você devolve esta coisa lá, como você chama aquilo?”. Eu respondo: “Uma bandeja?”, ela diz: “Sim, bandeja”.

“Café Crème”

A estação de trem está quase vazia, estou esperando meu trem e um homem anda ao meu redor enquanto fala zangado com ele mesmo. Meu trem chega em 20 minutos, não posso ficar aqui mais tempo enquanto este homem fica andando para frente e para trás na minha frente. O que será que ele vai fazer, será que ele está com raiva de si mesmo, será que ele vai ficar com raiva de mim? Tem um Starbucks na plataforma, talvez seja melhor ir lá e esperar, eu peço um Tall Coffee, o barista diz: “aqui, nós o chamamos de Café Crème”.

Meditação

Ouvi dizer que há uma chamada urgente para um momento de meditação global, algum tipo de portal astrológico se abrirá, milhões irão meditar juntos para acabar com a rede 5G e apagar o vírus. Eles também dissolverão a estrutura mundial. Será que eles terão sucesso? Será que eles irão travar a Internet? Perderei o contato com vocês? Esta conversa sobre meditação me deixa angustiada!

Casa de bonecas

Art Material
A obra dela está embalada, pronta para ser colocada na mala. Após 6 meses na Suíça, Lama está voltando para Ramallah. Thomas Kern/swissinfo.ch

Todas as bonecas do museu dos brinquedos estão olhando para mim, elas me fazem sentir como uma estranha entrando no espaço privado de alguém. Muitas delas estão em lojas miniaturas, separadas e congeladas enquanto vendem tecidos, cortam um pedaço de carne, ou assam doces. Em uma loja, uma boneca vende outras bonecas. Em uma outra seção, eu espreito as casas das bonecas, uma família de bonecas está tendo uma refeição juntos, enquanto uma boneca está sentada no quarto. Em outra casa, uma criada de bonecas está pendurando a roupa no sótão, enquanto outra está dando banho a um bebê de boneca. Eu percebo que gosto mais das casas de bonecas quando elas estão vazias.

Hospital

Pela primeira vez na minha vida, eu desmaio. Já faz duas semanas que estou doente. Estou acostumada a ficar doente, mas nunca desmaio. Eu ligo para a linha de emergência e eles mandam uma ambulância. Dois paramédicos apertam minha mão. No hospital, um jovem médico também me aperta a mão. Na minha cama de hospital, ouço uma senhora atrás da cortina, ela soa com dor, não sei o que ela quer, ela continua repetindo as mesmas palavras, não entendo a língua dela, não sei o que fazer, não consigo me mexer. 

Adaptação: Fernando Hirschy, swissinfo.ch

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