No combate à máfia, as investigações fazem a diferença
A comunidade internacional tomou conhecimento dos danos causados pela infiltração da máfia e 190 Estados, incluindo a Suíça, assinaram a Convenção de Palermo contra o crime organizado transnacional. Desde então, esses Estados têm tomado medidas cada vez mais expressivas e cirúrgicas para combater as máfias. No entanto, são necessários mais avanços, tanto em termos de legislação quanto de investigações.
Rosa Maria Cappa é formada pela Universidade La Sapienza de Roma. Durante sua carreira, ela foi promotora do Ministério Público Federal da Suíça de 2003 a 2015. Especialista em direito penal financeiro, ela é sócia de um escritório de advocacia em Lugano e se dedica a processos penais relacionados a crimes financeiros, corrupção e lavagem internacional de dinheiro.
A Itália tem adotado uma legislação cada vez mais eficaz, inclusive o código antimáfia de 2011, que prevê medidas preventivas que podem ser tomadas pela autoridade judicial (por exemplo, vigilância especial), mas também de forma autônoma pela autoridade de segurança pública (por exemplo, mandado de viagem obrigatório), bem como medidas preventivas patrimoniais (por exemplo, apreensão, confisco e administração pública de bens e empresas mafiosas) e a conversão de bens confiscados para uso público. A particularidade dessas medidas é que elas podem ser aplicadas com base na mera periculosidade social de um indivíduo, independentemente da prática de um crime e da abertura de uma investigação criminal. A aplicação de medidas patrimoniais também exige que haja uma desproporção entre o valor de um bem e a renda ou atividade econômica declarada da pessoa que o possui.
Na Suíça, tentativas de alterar o modesto artigo 72 do Código Penal – que prevê apenas o confisco dos bens à disposição da organização criminosa e a presunção de que os bens dos mafiosos estão à disposição da organização criminosa – fracassaram no Parlamento, por serem desnecessárias ou inadequadas e contrárias aos “interesses de nosso centro financeiro” (ver o parecer do Conselho Federal de 19/11/2014 sobre a moção 14.3846).
No entanto, o crime organizado, particularmente as organizações italianas, tem raízes profundas na Suíça. Isso fica evidente pelas várias detenções realizadas ao longo das últimas décadas a pedido das autoridades italianas antimáfia. As duas últimas detenções ocorreram em 15 de junho de 2021, em Aargau e Ticino, a pedido da Direção Distrital Antimáfia (DDA) de Catanzaro, no contexto da operação contra as gangues Anello-Fruci. Não é coincidência que o Departamento Federal de Polícia há anos considere a ‘Ndrangheta uma ameaça específica à sociedade suíça (ver relatório da Fedpol de 2015).
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A máfia na Suíça é um problema social e legislativo
O sistema suíço de combate à máfia também se mostra insuficiente em termos de opções concretas de políticas penais. A fim de conter o fenômeno da máfia, é essencial monitorar o território. Isso exige a presença da autoridade responsável nos locais onde a máfia tradicionalmente atua (segundo o Departamento Federal de Polícia, trata-se dos cantões que fazem fronteira com a Itália e a Alemanha). A divisão de crime organizado do Ministério Público Federal, contudo, está sediada em Berna há décadas.
Mas o que é inadequado é a falta de investigação na luta contra a máfia.
Desde a época do juiz Giovanni Falcone, a Suíça sempre executou cartas rogatórias italianas, mas raramente realizou suas próprias investigações. Os especialistas no assunto sabem que os mafiosos não são lobos solitários. Eles emigram com suas famílias, preferindo se estabelecer em pequenos vilarejos. Eles se camuflam no tecido social com empregos discretos, mantêm relações próximas com pessoas com tradições e costumes comuns, e participam de associações de imigrantes.
No caso, por exemplo, da prisão de nove mafiosos em Frauenfeld, em 2014, filmados pela polícia criminal federal praticando ritos de iniciação “ndranghetistas”, a única coisa que foi feita foi repassar o vídeo para a Direção Distrital Antimáfia de Reggio Calabria e extraditar as pessoas detidas. Na Suíça, por sua vez, não há notícias de investigações sobre a máfia local, embora ela tenha pelo menos 18 filiais e esteja atuando em nosso território há mais de 40 anos. O fato é que, para cada membro da máfia extraditado para a Itália, quatro ou cinco permanecem na Suíça para continuar suas atividades ilegais. O promotor antimáfia de Reggio Calabria, Nicola Gratteri, declarou na ocasião que, além da localizada de Frauenfeld, pelo menos outras vinte células ‘ndranghetistas haviam sido identificadas na Suíça.
A ideia de que, para frear a atividade da máfia na Suíça, basta prender, extraditar e executar cartas rogatórias da DDA italiana constitui uma abordagem inadequada ao problema. É necessária uma mudança de paradigma: iniciar investigações autônomas na Suíça e, quando necessário, trocar informações com as autoridades italianas. É igualmente necessária uma mudança de direção no campo investigativo e processual, pois não podemos nos resignar a ter uma certa dependência das investigações italianas para obter provas. O fato de os mafiosos estarem na Suíça significa que eles estão atuando (e, portanto, cometendo crimes) em nosso território e é nele que devemos ser capazes de reunir provas para tentar conseguir sua condenação.
A experiência italiana nos ensina que, para montar uma investigação sobre a máfia, é necessário começar analisando dados e monitorando os setores nos quais ela se desenvolve. Na Suíça, estes são principalmente os setores de construção, restaurantes, transporte privado e venda/reparo de veículos motorizados. Para isso, é essencial o exame dados de fontes públicas que possam conter vestígios das operações dos sindicatos mafiosos. Por exemplo, através do cruzamento de informações provenientes de órgãos oficiais – como o Departamento de Controle Populacional, o Registro Comercial, o Departamento de Registro Imobiliário, o Departamento de Execução e Falências e os Departamentos de Impostos – com a presença de personalidades relacionadas à máfia, bem como o monitoramento de suas atividades, relações pessoais e padrão de vida, é possível obter informações essenciais para abrir investigações sobre a máfia que podem ser levadas ao tribunal.
Além disso, é fundamental que a atividade de controle policial seja direcionada para atividades e crimes que são indicadores de operações mafiosas, tais como irregularidades nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos, crimes de falência, violações das normas de proteção dos trabalhadores e de previdência social. Também é necessário monitorar a forma como as empresas são financiadas, pois um empresário que não tem as condições necessárias para obter um empréstimo nos bancos é uma presa fácil para aqueles que emprestam dinheiro sem pedir garantias, mas com taxas de juros altíssimas. O nível seguinte de investigação consiste em conseguir ligar esses crimes à presença de uma organização criminosa mafiosa, fazendo um certo esforço para monitorar aqueles suspeitos de pertencerem a ela.
Por fim, a Suíça precisa de uma formação constante na área da legalidade. É necessário informar e sensibilizar a população, mas também as próprias instituições, que – no âmbito de uma comunicação politicamente correta – às vezes minimizam a dimensão do fenômeno, contribuindo assim, de forma não intencional, para sua expansão. É importante entender que a máfia na Suíça não é mais composta apenas por transações bancárias e transporte de drogas e armas, mas por atividades comerciais e empresariais e investimentos concretos no país. Com o dinheiro da máfia, também se estabelece o método mafioso que – a médio prazo – pode corroer a economia e os valores de uma comunidade tão segura como a Suíça.
No dia 3 de novembro de 2021, o Tribunal de Apelação de Reggio Calabria absolveu os nove réus acusados de fazer parte de uma célula ‘ndrangheta atuante em Frauenfeld, no cantão de Thurgau.
Na primeira instância, em Locri, os acusados haviam sido condenados a penas de 10 a 13 anos de prisão, mas o Tribunal de Apelação os inocentou, invocando uma disposição do artigo 530 do Código de Processo Penal italiano, que diz que “o fato não existe se o acusado não o cometeu, se o fato não constitui uma infração penal ou se a infração penal foi cometida por uma pessoa que não pode ser indiciada”.
As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente da autora e não refletem necessariamente a posição da SWI swissinfo.ch.
Adaptação: Clarice Dominguez
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