O bilinguismo é uma herança de extremo valor
Como fazer para que crianças crescidas no exterior não percam a referência da língua portuguesa?
A paulistana Miriam Müller Vizentini ensina português a brasileirinhos da Suíça há 21 anos. Seu trabalho é considerado uma missão: ela tem prazer em ajudar as crianças a expandirem seu vocabulário, e contribuir para que respeitem e admirem a cultura dos pais.
Psicóloga e coordenadora Pedagógica da Associação Brasileira de Educação e Cultura (ABECLink externo), Miriam faz muito mais do é esperado para que o português seja de fato uma herança, e não uma língua desconhecida. Ela adapta literatura em peça de teatro, cria os cenários com os pais nos fins de semana, trabalha mensagens de valorização da cultura e das diferenças.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
Ajudou a organizar esse ano o III Simpósio Europeu do ensino de Português como Língua de Herança (SEPOLHLink externo). A ABEC foi premiada pela associação Brasil em Mente (BEM), de Nova York, no ano passado como Iniciativa do ano. “Quero que as crianças entendam o que os pais dizem quando demonstram o mais genuíno dos afetos e se possível, na língua do país de origem”.
swissinfo.ch: O que você aconselharia aos pais que desejam que os filhos falem português, mesmo que criados no exterior?
MM: Depende de muitas atitudes. Eu diria que o sucesso dependerá de uma política linguística familiar. Se a mãe, por exemplo, é brasileira ou portuguesa, e quer que o seu filho fale a sua língua, ela precisa ser consistente. Se essa é a decisão, que se cumpra. Eu quero dizer com isso que, após essa resolução, se faz necessário dizer tudo em português. E não se trata somente de linguagem de bebê, mas qualquer palavra, desde explicações mais complexas até a expressão da afetividade.
Eu segui isso ao pé da letra com meus dois filhos e agora repito com a minha neta, de três anos. Quando tinha um ano, prendeu o dedinho e sentiu dor. Na hora, ela pareceu querer comunicar que necessitava de ajuda e disse “dedo”. Ela percebeu que, falando, a mãe entenderia que ela estava em apuros. Minha filha foi além da palavra dedo: Ah, você prendeu seu dedo? Vou ajudar você, etc. É muito importante estender a conversa e não se ater só a palavras soltas. Apesar de o pai ser suíço e a mãe, minha filha, brasileira de segunda geração, ela tem um vocabulário muito rico para a idade.
A consistência funciona no sentido de a criança estabelecer uma relação com a pessoa naquela língua específica. Com os meus filhos, por exemplo, eu dizia: da porta de casa para dentro é Brasil. Nada de alemão. E assim a referência deles de família era o português.
swissinfo.ch: E para aqueles pais que ainda não estão convencidos da importância do bilinguismo, o que você diria?
MM: Crescer bilíngue é um presente. Nossas crianças vivem nesse mundo múltiplo e complexo, que é o de ter sua origem também em outro país. Se ela aprende a se comunicar bem nos dois idiomas é um ganho, primeiro porque têm mais oportunidades de estudo, viagens e trabalho. Atualmente, pesquisas da neurociência mostram que o falante de dois ou mais idiomas só tem a ganhar, por desenvolver competências de pensamento lógico que geralmente resultam em notas mais altas, entre outras coisas… ih, o tema é amplo.
Há muitos falantes de português aqui na Suíça, ponto muito favorável para os que ainda não se encorajaram a tomar esse caminho. No SEPOLH, eu escutei de estudiosos que o português é a segunda língua estrangeira mais falada nesse país, perdendo somente para o inglês. Fica mais fácil de manter, então. A criança ouve o idioma de um dos pais em outras situações na rua e fica estimulada a aprender. Trata-se de uma referência positiva, uma confirmação de que a língua é viva. Em outros países essa realidade não é a mesma. Temos que aproveitar essa vantagem.
swissinfo.ch: O que deve ser feito, na prática, para estimular o bilinguismo?
MM: Ser consequente, como já disse, e lançar mão de algumas ferramentas. Fazer uso da literatura brasileira ou portuguesa infantil, contar historinhas. Mas não pode ser um monólogo, os pais devem estimular a criança a se expressar, falar o que ela entende da história. Música é essencial nesse processo. Ritmo ajuda muito e leva à repetição. Então, cante junto com seus filhos. Lembre-se, o processo de comunicação é bilateral.
Como professora de português e coordenadora pedagógica, defendo incondicionalmente os cursos complementares oferecidos pela ABEC aqui na Suíça (de língua alemã). Mesmo que o idioma seja falado em casa pelos pais, a criança não consegue expandir tanto o vocabulário se não houver ajuda especializada. Na sala de aula, os professores trabalham a língua de forma contextualizada, com textos de apoio e informações integradas ao plano de aula. Nós desenvolvemos o nosso material didático, porque não podemos trazer livros das escolas do Brasil, onde as aulas de português são diárias e a exposição das crianças à língua em tempo integral e aplicar em crianças que vivem uma realidade totalmente diferentes.
Trata-se de um trabalho adaptado a cada grupo. Trabalhamos com pedagogia de projeto, que escolhe o tema e atividades combinadas previamente com os alunos.
A criança não vai aprender em casa a falar que o cachorrinho é um animal quadrúpede, mamífero, etc., por exemplo. Mas na escola, isso é possível. Dessa forma, os alunos aprendem não só a língua quanto a cultura do país de origem. Na ABEC, nós fazemos questão de trabalhar as lendas brasileiras, textos de Monteiro Lobato, Maria Clara Machado, e tantos outros autores importantes que os pais admiram e conhecem. Ainda acaba por aproximar os filhos dos pais, já que os escritores são geralmente referência da infância deles.
swissinfo.ch: Já ouvi alguns pais dizerem que seus filhos não falam português porque não querem ou não gostam. Qual seria a estratégia a ser utilizada com essas crianças?
MM: Antes de responder à pergunta, eu preciso dizer que, em primeiro lugar, eu preciso questionar o porquê de essa criança não gostar. Será que a cultura de um dos pais está sendo respeitada dentro dessa família? É importante que as culturas sejam tratadas sempre de uma fora igualitária, nunca se desfazer de nenhum grupo social. Trabalho muito esse tema com meus alunos. Além disso, é muito importante valorizar a cultura de um dos pais, para que a criança sempre se sinta bem e desenvolva uma identidade positiva com suas culturas.
É possível que uma criança crie uma aversão à língua por exemplos negativos que já tenha experimentado. Meus filhos quando eram pequenos, por exemplo, viram um grupo de pessoas falando português muito alto no zoológico. Ficaram com vergonha e me pediram para nunca falar com eles naquela língua quando estivessem fora de casa. Eu tive que desconstruir essa imagem, dizendo que existem pessoas que falam mais alto e mais baixo, sem criticar a cultura de ninguém.
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De qualquer maneira, caso alguém passe por isso, eu aconselharia a procurar coisas interessantes ligadas à cultura do país de origem, que só existam em Portugal ou no Brasil. Valorizar o que é seu, pertencente às suas raízes é uma boa estratégia. Eu não aconselho aos pais dizerem: “você tem que gostar de português”. Procure, ao contrário, algo que os estimule a gostar.
Eu conheço o caso de uma criança, criada no Japão, que se recusava a falar português com a mãe. Esta criou um fantoche de uma capivara (que é um animal tipicamente brasileiro). O animal, claro, só falava português. A criança, que adorava o bicho, interagia sem problemas com o boneco.
Minha experiência de professora me mostra que teatro é uma excelente ferramenta. Os alunos querem aprender mais. Outra característica muito interessante é o envolvimento dos pais no processo teatral, já que eles ajudam a montar o cenário, dão opinião nos ensaios. A presença da família é primordial, já que os pais são os principais mantenedores do idioma.
swissinfo.ch: Você diria então que é um processo mais difícil?
MM: Eu diria que se os pais iniciam o procedimento desde bebê, torna-se mais fácil. Acho muito interessante usar todas as oportunidades para conversar com seu filho na sua língua, aproveitando para demonstrar afeto no seu idioma. Nós, pais, se fizermos a nossa parte, o idioma sobrevive. Mas como já disse, é uma decisão de cada família.
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