O que a história nos diz sobre sanções
A invasão russa da Ucrânia está impelindo um conjunto de sanções sem precedentes. A questão de saber se elas terão um efeito no curso da guerra ainda está em aberto. De qualquer modo, a história mostra que elas têm sido utilizadas há séculos, com resultados variados.
Durante a Idade Média, os reis, quando em disputa com seus pares, expulsavam prontamente os comerciantes de lã estrangeiros. Eles reduziam ou aumentavam os impostos e, até mesmo, proibiam as importações, dependendo se se sentiam próximos ou não em relação ao país em questão.
Durante a Guerra Civil Americana e a I Guerra Mundial, foram impostos bloqueios físicos aos Confederados, e à Alemanha e seus aliados, em uma tentativa de impedi-los de obter suprimentos, incluindo alimentos, o que poderia alimentar o seu esforço de guerra.
Danos econômicos para uma mudança positiva?
A estratégia parece suficientemente simples. Os países que impõem um regime de sanções esperam que, ao minar a economia de um estado hostil, esse estado ponha então fim a atos percebidos como hostis. Poucos dias após a entrada dos primeiros tanques russos na Ucrânia, os governos ocidentais impuseram uma série de sanções à Rússia, de alcance inédito. Isso inclui a proibição de voos russos sobre os Estados Unidos e o espaço aéreo europeu, a proibição de exportação de bens de luxo para a Rússia, bem como medidas de grande alcance destinadas a paralisar o sistema financeiro do país.
Ou, como disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “a União Europeia e seus parceiros estão trabalhando para paralisar a capacidade de Putin de financiar sua máquina de guerra”.
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Além do efeito manchete do anúncio, sanções são realmente capazes de derrubar um regime? “Sou sempre cética em relação a essa questão”, admite Erica Moret, especialista em sanções do Instituto de Pós-Graduação de Genebra. “A pergunta é fácil, porém de difícil resposta”.
Moret concorda que as sanções podem por vezes ser uma ferramenta útil, principalmente quando a diplomacia esgotou todos os seus recursos e a ação militar não é uma opção. Mas ela ressalta que, embora exista uma literatura científica abundante sobre a eficácia das sanções, nenhum estudo foi capaz de tirar conclusões convicentes mostrando que as sanções, por si só, levaram a uma grande mudança na política. “Não temos como provar que uma mudança política aconteceu devido a sanções”, diz ela.
A África do Sul é frequentemente citada como um lugar onde as sanções econômicas trouxeram mudanças positivas. Nelson Mandela, quando questionado ao sair da prisão sobre se as sanções tinham ajudado a pôr fim ao apartheid, respondeu: “Oh, não há dúvida”. No total, 23 países impuseram sanções à África do Sul, incluindo um embargo de armas e petróleo, entre 1964 e a derrocada do regime em 1990.
De fato, explica Moret, havia “uma série de desenvolvimentos políticos internos” acontecendo ao mesmo tempo na África do Sul. As sanções, ela argumenta, devem ser vistas como apenas uma parte da equação, e “apenas tão boas quanto outros mecanismos, tais como a diplomacia, a mediação, e [até] a ameaça de ação militar”.
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Irã, Cuba, Coreia do Norte
Outro exemplo frequentemente citado, a fim de demonstrar os efeitos positivos das sanções, é o acordo nuclear iraniano assinado em 2015 pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações UnidasLink externo e pela União EuropeiaLink externo. Conhecido como JCPOA, o acordo foi concebido para assegurar que o Irã não desenvolvesse armas nucleares. É amplamente aceito que Teerã foi encorajado a aceitar o acordo devido à perspectiva de ter as sanções atenuadas.
Mais uma vez, diz Moret, isso era muito provavelmente parte da equação, mas não necessariamente o quadro completo. “Houve também uma mudança no governo, uma mudança no sentimento público”.
Entretanto, Cuba, ou Coreia do Norte, sofrem sanções dos Estados Unidos há mais de meio século. Contudo, ambos os países não mudaram significativamente de curso. Vários cientistas políticos argumentam inclusive que a imposição de sanções a um país pequeno e antidemocrático pode até mesmo torná-lo mais isolado, e mais intransigente.
Preocupações humanitárias
Acrescentadas à questão de saber se as sanções são eficazes, há mais perguntas sobre o seu impacto exato em um país, e quem sofre mais.
Nos anos 1990, as sanções internacionais contra o Iraque em protesto contra a invasão do Kuwait foram consideráveis. Incluíam medicamentos e equipamento para o tratamento de câncer, peças sobresselentes para estações de abastecimento de água, o cloro necessário para sua purificação, e ainda vacinas contra doenças infantis. Os governos que bloquearam as entregas argumentaram que todas elas poderiam ser usadas para desenvolver armas de destruição em massa.
“Foi incrivelmente controverso”, lembra Moret, referindo-se às sanções. Tal foi a preocupação das agências de ajuda que vários altos funcionários das Nações Unidas se demitiram, incluindo o coordenador humanitário da ONU no Iraque, Denis Halliday, e a diretora do Programa Mundial de Alimentos para o Iraque, Jutta Burghardt. “Cinco mil crianças morrem todos os meses”, disse Halliday na época.
Burghardt argumentou mais tarde, em uma análise aprofundada das sanções, que, sob os princípios do direito internacional, elas poderiam até ser classificadas como genocídio. “Não pode haver qualquer dúvida de que a imposição de sanções ao Iraque pelo Conselho de Segurança está levando à destruição parcial ou total de uma nação”, escreveu ela em seu relatórioLink externo.
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Sanções específicas
O clamor sobre a questão iraquiana conduziu a uma mudança – não nos países sancionados, mas naqueles que impõem as sanções. Liderado pela Suíça, Alemanha e Suécia, o que ficou conhecido como Processo Interlaken desenvolveu um modelo de “sanções inteligentes”, concebido para atingir governos, déspotas ou grupos terroristas e não civis por eles dominados.
Para o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), é fundamental pensar a respeito das possíveis consequências humanitárias adversas das sanções. Enquanto as Convenções de Genebra nada dizem sobre o efeito das sanções sobre os civis, o CICV, bem como outras agências humanitárias, não esconde sua preocupação quando vê a população civil sofrer os impactos negativos de um conflito que não escolheu. “Ainda hoje, se não se tiver cuidado, se não se elaborar cuidadosamente tais sanções, elas podem ainda ter esse impacto negativo”, adverte Svoboda, diretora-adjunta de direito e política internacionais do CICV.
Restrições para as organizações humanitárias
Particularmente preocupante para o CICV é o risco de que as sanções também possam restringir sua ação em campo. “As sanções não devem minar, criminalizar ou de qualquer outra forma inibir o trabalho das agências humanitárias”, diz Svoboda.
Este é um risco com as atuais sanções contra a Síria ou o Iêmen – ambos estão sujeitos a sanções desde 2011 e 2014, respectivamente. Svoboda e Moret apontam para o “efeito assustador” que um regime de sanções pode ter sobre empresas que tradicionalmente fornecem às agências de ajuda os suprimentos humanitários de que precisam. “Algumas empresas privadas podem alimentar o sentimento de que não estão autorizadas a fazer negócios… por isso, se quisermos adquirir peças de reposição e enviá-las para um local sob sanção, elas podem relutar”, explica Svoboda e completa. “Isso pode significar, por exemplo, que talvez não possamos manter um abastecimento de água porque não conseguimos obter as peças sobressalentes”.
Outros desafios impostos pelas sanções incluem o treinamento em primeiros socorros que o CICV proporciona frequentemente às comunidades locais em zonas de conflito, ou o tratamento médico que oferece aos feridos, incluindo ex-combatentes.
Essas são atividades padrão para o CICV, e fazem parte de seu mandato ao abrigo das Convenções de Genebra. Mas sob sanções concebidas para negar apoio a grupos ou estados terroristas, tais atividades podem ser consideradas ilegais.
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Isenções humanitárias
Entretanto, há também temores de que a unidade em torno das sanções específicas alcançadas por meio do Processo Interlaken possa estar desmoronando. No ano passado, após a retirada dos EUA e da OTAN do Afeganistão, a amplitude de sanções contra Kabul provou ser tal, afetando pessoas e organizações, que muitas agências de ajuda humanitária mal puderam operar.
Moret, do Instituto de Pós-Graduação, argumenta que as sanções que isolam todo um sistema bancário nacional – uma realidade na Coreia do Norte, uma ameaça no Afeganistão –, podem não ser uma boa estratégia. “O sofrimento da população civil não é sinônimo de ganho político”, diz ela. “Não há nenhum caso em que a destruição [econômica] de um país se tenha traduzido em benefícios políticos”.
Moret avalia que talvez seja hora de relançar um fórum semelhante ao de Interlaken, e espera que a Suíça, que desenvolveu experiência em sanções direcionadas, possa convocá-lo novamente.
E quanto à Rússia?
Mas quais são as implicações do que foi dito até agora para a Rússia? As sanções, todos concordam, têm sido rápidas e de longo alcance – e estão produzindo um efeito dominó. Empresas que teoricamente poderiam continuar a operar, como é o caso do McDonald’s ou da H&M, estão saindo. A Nestlé, sob pressão da Ucrânia, teve de conceber suas próprias isenções humanitárias, pondo fim à venda de KitKats na Rússia, mas permitindo que as vendas de leite em pó continuassem.
Bens de consumo diário, como iPhones ou Big Macs, já não estão disponíveis. Isto pode fazer com que a população reflita sobre o porquê dessa situação, mas é pouco provável que afete sua sobrevivência básica.
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Tampouco afetará a “máquina de guerra de Putin”, que precisa de dinheiro e peças de reposição. Estas últimas serão difíceis de obter se vierem dos EUA ou da União Europeia, mas não da Índia ou da China. Quanto ao dinheiro, continua a fluir graças à dependência da Europa do gás e do petróleo russos, pelos quais desembolsa milhões de euros todos os dias.
Tanto Moret como Svoboda apontam que as sanções são apenas uma “ferramenta na caixa de ferramentas”. Mas com a Rússia, onde a diplomacia é praticamente inexistente e a intervenção militar foi descartada, elas parecem ser a única ferramenta. E aqueles que pedem o fim imediato do uso de gás e petróleo russos pela Europa argumentam que essa ferramenta é mais fraca do que deveria ser.
O que esperar
Como Moret apontou em nosso recente podcast Inside Geneva, “não devemos ver as sanções como uma espécie de bala de prata que vai entrar e resolver a situação”. No entanto, ela acrescenta que “essas sanções são tão sem precedentes, que é difícil ver qual será o resultado. Para a Rússia, porém, certamente aumentam o custo da guerra”.
O que deveríamos atentar por causa das sanções, acredita ela, não são para mudanças dramáticas de regime no Kremlin, mas antes para desenvolvimentos mais modestos, “mais matizados”, em que “as partes retornem à mesa de negociações, ou a guerra na Ucrânia abrande porque a Rússia está encontrando dificuldades para financiar a guerra”.
Adaptação: Karleno Bocarro
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