Os bunkers discretos dos milionários
Os ricos e os ricaços investem cada vez mais em arte e outros tesouros, escondidos nos portos francos, que oferecem discrição, muita segurança e benefícios fiscais. Um novo relatório lança, porém, uma sombra sobre esses bem-sucedidos portos e zonas de isenção aduaneira.
Visto de fora, o cinzento prédio industrial situado na esquina de um movimentado cruzamento, no sudoeste de Genebra, parece indefinível. E tirando o regular vaivém de camionetes, nada revela o que se passa no interior.
Poucos sabem que o sombrio edifício de seis pisos abriga bilhões de francos suíços em obras de arte e outras riquezas. Segundo a revista especializada ‘Connaissances des Arts’, o porto livre de Genebra reunia, em 2013, cerca de 1.2 milhão de obras de arte.
O depósito, no bairro de La Praille, também acomoda a maior adega de vinhos do mundo, segundo seus diretores. Cerca de três milhões de garrafas das melhores marcas e safras, na maioria bordôs, nela envelhecem em temperaturas ideais, ganhando em maturidade e em cotação.
Dividido em dois locais – sendo o outro no aeroporto internacional – o porto franco completa neste ano de 2014 seu 125° aniversário. Majoritariamente propriedade do Estado de Genebra, o gigantesco armazém proporciona espaço equivalente a 22 campos de futebol, na maioria já alugado.
A demanda de depósitos de alto padrão por museus, ricos colecionadores privados e investidores é tanta que um novo espaço de alta tecnologia, de 10.400 metros quadrados, dedicado à arte, inaugurado em La Praille, em maio, já está quase todo lotado.
Genebra oferece muitas vantagens, afirma Jean-René Saillard, diretor de vendas do ‘British Fine Art Fund Group’. Sua empresa guarda a maioria de sua coleção em La Praille, de onde uma parte é exposta, comercializada, emprestada a museus ou restaurada.
“O porto franco de Genebra é um espaço bastante vetusto e pouco charmoso, mas se lá se vai para ver obra pela qual você não zela, se a luz for decente e se sabe que é guardada com segurança,” explica, “é muito prático, central e tranquilizador para as pessoas que gostam de discrição.”
De que Saillard não fala são os lucros. Originalmente, os portos livres eram destinados a estocar temporariamente mercadorias e, mais tarde, produtos manufaturados em trânsito. Mais recentemente, porém, são cada vez mais utilizados como locais permanentes de depósito por investidores e por colecionadores.
O qualificativo ‘franco’ de porto franco refere-se à isenção de tarifas alfandegárias e impostos. Os bens podem lá ficar por tempo ilimitado e por custos mínimos. Uma pintura, por exemplo, pode ser aerotransportada a Genebra e ficar no local durante anos e anos sem se pagar imposto. Enquanto os bens permanecem estocados e não chegam ao destino final, os proprietários não desembolsar um tostão em taxas de importação ou qualquer outro tributo. Se a obra for vendida no porto franco, o dono também não paga qualquer taxa de transação.
“Quando os bens saem do porto franco, eles são avaliados e tributados. Mas não acho que a transação seja financeiramente interessante para os proprietários,” diz a presidente do Porto Franco de Genebra, Christine Sayegh, descartando a ideia de que os bens são guardados no estabelecimento unicamente para se valorizarem.
Próximo do centro da cidade, o porto livre é de interesse estratégico para o Cantão de Genebra e contribui com o montante de 10 a 12 milhões de francos para os cofres do Estado.
Reputação em risco?
Apesar do sucesso financeiro do empreendimento, um relatório da Auditoria Federal das Finanças publicou, em abril deste ano, um relatório que lança uma sombra sobre as práticas dos dez portos francos da Suíça e as 245 zonas de isenção alfandegária.
O documento adverte para o perigo de eles serem usados inadequadamente para otimização fiscal ou para contornar leis sobre “bens culturais, materiais bélicos, remédios ou comércio de diamantes brutos.”
Eric-Serge Jeannet, vice-diretor da Auditoria, disse que, como o sigilo bancário, as zonas de isenção representam riscos para a reputação da Suíça.
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Crescimento dos portos francos
O crescimento dos portos francos parece predestinado a continuar, alimentado por ricos clientes dos países emergentes e um interesse generalizado pelos investimentos em arte e outros objetos de valor.
Segundo analistas de Wealth-X, em 2013, no mundo, o número de ‘ultra high net worth (UHNW), ou seja gente que ganha cerca de 30 milhões anualmente, chegou ao recorde de 199,235 pessoas, reunindo uma riqueza de 27.8 trilhões de dólares.
Wealth-X prevê que, nos próximos cinco anos, a Ásia vá gerar mais indivíduos UHNW e riquezas que a Europa e os Estados Unidos juntos.
A Suíça tem 6,330 indivíduos UHNW, ou seja a maior população UHNW da Europa, após a Alemanha e a Grã-Bretanha. E com 7.9 indivíduos UHNW por 10.000 pessoas, a Suíça dispõe da maior densidade de riqueza do que qualquer outro país focalizado.
“É óbvio que não se deve suspeitar de todo o mundo, mas não se pode negar que a possibilidade de evitar pagamentos de impostos e de lucrar seja um dos principais objetivos,” disse ele à swissinfo.ch.
Representantes do porto franco de Genebra garantem seguir a lei e escolher judiciosamente os locatários, mas como uma agência que cuida de bens alheios eles não têm obrigação de saber exatamente o que seus clientes depositam no local. Dizem geralmente saber o que entre e sai, mas os controles detalhados dos inventários e dos bens são efetuados por funcionários das aduanas suíças, sediados no porto franco.
“Não podemos subestimar um possível risco para a reputação. Mas não achamos que esse perigo se tenha concretizado, principalmente com as medidas adotadas,” disse em Genebra o ministro da Economia e Segurança, Pierre Maudet que acolheu favoravelmente o relatório ‘preventivo’. “Falar de otimização fiscal é exagero e devaneio,” Segundo Maudet.
A alegação não convence Eric-Serge Jeannet: “Em simples termos, eles colocam um instrumento à disposição de pessoas (instalações, serviço), mas não assumem responsabilidade pelo que acontece lá dentro.”
Medidas preventivas
Os portos francos comerciais em diferentes pontos do mundo são fiscalizados por outras organizações. Em 2010, o Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro – organismo intergovernamental localizado em Paris, na mesma sede que a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento), publicou um relatório afirmando que zonas de livre comércio – nas quais se incluem os portos francos – representam uma ameaça de reciclagem de dinheiro e financiamento terrorista, em consequência, pelo menos em parte, de proteção inapropriada, acentuado descuido e fracas inspeções.
Os autores do relatório da Auditoria Federal das Finanças indicam estarem particularmente preocupados com os controles efetuados por funcionários de alfândegas.
“Representantes do porto franco de Genebra garantem que funcionários de alfândega marcam acentuada presença nas instalações do edifício. Mas o simples fato de pessoal aduaneiro trabalhar em porto livre não significa que ele realize, de fato, controles eficazes,” observa Jeannet.
A administração das Aduanas Suíças disse à swissinfo.ch que os controles nos portos francos eram realizados com base em análises de risco nos diferentes locais, sendo os recursos atribuídos da maneira mais razoável possível.
Mas em geral a repartição tem levado muito a sério as recomendações do relatório e estava analisando as medidas necessárias a serem adotadas, disse o porta-voz das Alfândegas, Walter Pavel.
“Os conteúdos dos inventários serão verificados com maior diligência,” acrescentou.
Escândalos
No passado, as investigações levaram aos portos francos. Em 1995 descobriu-se que o porto livre de Genebra era um refúgio para antiguidades saqueadas – no âmbito de uma rede internacional – no Museu Getty de Los Angeles. Em 2003, as aduanas suíças descobriram 200 tesouros egípcios antigos, incluindo duas múmias, no porto franco de Genebra. Todos foram restituídos ao Egito.
Depois desses escândalos, a Suíça decidiu fazer uma limpeza nos portos francos e fortaleceu leis sobre lavagem de dinheiro e transferência de bens culturais. Os portos livres passaram a ser submetidos às mesmas normas que se aplicam às importações, com a obrigação de declararem a propriedade, origem e valor de todos os bens importados. E desde 2009, um inventário completo é igualmente exigido.
Mas ainda aparecem casos desonestos. Em 2010, por exemplo, um sarcófago romano foi descoberto por funcionários de alfândega no porto franco de Genebra. Havia alegações de que pudesse ter sido saqueado num sítio arqueológico, no Sul da Turquia.
“Se alguém deseja trapacear sempre encontrará meios de contornar a lei,” diz Jeannet. “Temos o ‘Kimberley Process’ e certificados para diamantes, mas será que os controles permitem descobrir problemas e casos de fraude? Não estou convencido…”
Sua repartição tem sublinhado uma série de recomendações destinadas a melhorar as vistorias nos portos francos da Suíça e nas zonas de isenção aduaneira; e, a propósito, uma nova estratégia global deve ser apresentada ao governo suíço no fim de 2015.
Novos portos francos
O ‘FreePort’ de Cingapura foi inaugurado em maio de 2010. O prédio de 4 andares totaliza 25.000 metros quadrados de espaço, dos quais 40% está ocupado pelos ‘Christie’s Fine Art Storage Services.’
Em Luxemburgo, a inauguração de um porto franco de 20.000 metros quadrados está prevista para dia 17 de setembro deste ano de 2014.
Pequim deve abrir um porto franco em 2015 e, mais tarde, um outro poderia ser realizado em Xangai.
Os suíços estão intimamente envolvidos no desenvolvimento de portos livres no mundo. Yves Bouvier é o maior acionista do Porto Franco de Genebra. Sua empresa ‘Natural Le Coultre’ lidera o armazenamento de arte e as operações logísticas do setor. Ele seria o principal dono e promotor do ‘Luxembourg Free Port’, um dos acionistas de empreendimento similar em Cingapura e consultor para o porto de Pequim.
Os arquitetos suíços Carmelo Stendardo e Bénedicte Montat, do Atelier d’Architercture 3BM3, projetaram a expansão do porto franco de Genebra e os ‘free ports’ de Cingapura e Luxemburgo.
Adaptação: J.Gabriel Barbosa
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